sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

Às vezes tenho desejos

Quando o cabelo cai e os olhos se turvam

quando o cabelo cai e os olhos se turvam. E
as coxas esquecem (quando os relógios sussurram
e a noite grita) Quando as mentes
se enrugam e os corações se tornam mais frágeis a cada
Instante (quando numa manhã a Memória se levanta,
com desajeitados e murchos dedos
vertendo a cor da juventude e o que foi
num copo sujo) Poções para as Indisposições
(uma receita contra o Riso a Virgindade a Morte)


então querida o
modo como as árvores se Fazem em folhas
as Nuvens abertas tomam o sol as montanhas
permanecem E os oceanos Não dormem não interessa
nada; então (então as únicas mãos por assim dizer são
aquelas sempre que rastejam devagar sobre qualquer
rosto numerado capaz do maior inexpressivo olhar do
menor sisudo sorriso
ou do que quer que seja que as ervas sintam e os peixes
pensem)
E.E. Cummings, in “Livro de Poemas”, trad. Cecília Rego Pinheiro, Assírio & Alvim
1999


Mania do suicídio

Às vezes tenho desejos
de me aproximar serenamente
da linha dos eléctricos
e me estender sobre o asfalto
com a garganta pousada no carril polido.
Estamos cansados
e inquietam-nos trinta e um
problemas desencontrados.
Não tenho coragem de pedir emprestados
os duzentos escudos
e suportar o peso de todas as outras cangas.
Também não quero morrer
definitivamente.
Só queria estar morto até que isto tudo
passasse.
Morrer periodicamente.
Acabarei por pedir os duzentos escudos
e suportar todas as cangas.
De resto, na minha terra
não há eléctricos.

Rui Knopfli, in “Memória consentida : 20 anos de poesia 1959-1979”, Imp. Nac. , Casa da Moeda,1982


Sóis desfiados

Sóis desfiados
sobre o deserto cinza-negro.
Um pensamento alto-
como-árvore
capta o tom da luz: ainda
há canções para cantar do outro lado
dos homens.
CELAN, Paul. "Sopro, viragem", in "Sete rosas mais tarde. Antologia poética",  Edição bilingue. Selecção, tradução e introdução de João Barrento e Y.K. Centeno. Lisboa: Cotovia, 1996.
Evolução

Fui rocha, em tempo, e fui, no mundo antigo,
Tronco ou ramo na incógnita floresta...
Onda, espumei, quebrando-me na aresta
Do granito, antiquíssimo inimigo...

Rugi, fera talvez, buscando abrigo
Na caverna que ensombra urze e giesta;
Ou, monstro primitivo, ergui a testa
No limoso paul, glauco pascigo...

Hoje sou homem – e na sombra enorme
Vejo, a meus pés, a escada multiforme,
Que desce, em espirais, na imensidade...

Interrogo o infinito e às vezes choro...
Mas, estendendo as mãos no vácuo, adoro
E aspiro unicamente à liberdade.
QUENTAL, Antero de.”Sonetos”, Edição organizada por Antonio Sérgio. Lisboa: Sá da Costa, 1963.

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