quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

2380 ANO CAMÕES


"Ele assoma à paisagem antiga: aqui onde os cristais se declinam ao vento, por entre vultos que o não vêem, que não é deles o olhar. «Há quatrocentos anos, os lagos e as planícies e os rios e as florestas e os mares sobre este rosto de velho pergaminho' o nosso, o do chão por onde vamos.» «Os caminhos estão juncados de lanças partidas/ O cabelo espalha-se por toda a parte/ As casas estão sem telhado/ De paredes avermelhadas./ Os vermes pululam nas ruas e praças/ E as paredes acham-se salpicadas de miolos./ As águas estão vermelhas, como que pintadas./ E quando bebemos/É como se bebêssemos salitre.» Levantam-se colunas de fogo à sua passagem; as cidades solidificam, de incessantes escadarias, terraços que nenhum pássaro sobrevoa. Ele prossegue, de folhas cingido, cada vez mais de arame e cobalto, por desnudos fantoches escoltado, a poeira lhe descendo sobre os vidros, esse instante odor a borracha derretida. «Luís» – repete o relógio; «Luís» – o relógio. À sombra de um escasso ramo branco de coral, o homem faz desandar os parafusos da esquerda; os torrões esboroam-se a seus passos, aqui e além uma fenda se descerra para as salas liminais. Os indicadores mudam-lhe a rota, comunicam-lhe a última decisão, enquanto as nuvens lentas se acastelam nos longes. «Luís» – repete o relógio; «Luís» – o relógio. As hélices perpassam num enorme fragor; ele parece hesitar um pouco; faz rodar, apressado, o manípulo de baixo. E a noite ou são as nuvens que avançam?
Contra as rochas se dilaceram os seios dessas tágides: aqui onde os cristais se declinam ao vento. Solicitas, as que circulavam entre a música e o esplendor das vitrinas, esquecidas de seu fado, vagueiam agora pela terra estendida sobre os jazigos do sémen. «Em farrapos, gritam-me pragas, testemunhas do silêncio em que sigo: Francisca Gomes, Isabel Nunes, Antónia Brás, Isabel Barbosa.» Outra vai subindo, de algas paramentadas, os degraus de pórfìro. «Luís» – repete o relógio; «Luís» – o relógio. Ele continua, por decreto reduzido ao ultra-som em seus ouvidos. Um diagrama se lhe desenha e apaga no peito; um hálito de néon lhe vai definindo a boca. «À direita, uma figura de perfil posa rigidamente, uma lança na mão, sob um rolo de nuvens; na parte inferior de seu rosto, vê-se uma espécie de cobertura, enquanto ao seu toucado se prende uma tira que o ata ao queixo. Em frente, há duas estelas de glifos, consistindo os da direita em pouco mais do que cartuchos vazios, possivelmente destinados a serem pintados.» A erva ardida, onde os pés nus decorreram, perde-se-lhe da vista acertada para os infinitos possíveis. «Falava convosco, partilhávamos os mesmos lençóis, os sexos se uniam sob o halo da candeia presa da trave do tecto.» Ninguém o persegue, a ninguém procura. Aperta só um pouco a terceira válvula; recobra a coragem, mas sem que se aperceba do sentido que leva. «Luís» – repete o relógio; «Luís» – o relógio. Avista a fímbria das praias, os cactos, o delicado esqueleto inabitado. A memória lhe volta, à medida que o ar se vai saturando de águas e fuligem. «Era pelo tempo das maçãs...» Mas quem lhe pede contos?
Como se não houvera mais do que este horizonte: aqui onde os cristais se declinam ao vento. «Em Macau, junto ao Grande Templo, os escribas transpiravam o dia todo, afadigando-se sobre cartas sem resposta; os condenados sentavam-se, mendigando, a cabeça enfiada num jugo de ferro; os mercadores benziam-se, partiam e regressavam; os juncos afastavam-se, as largas velas de caracteres enfunadas.» «Luís» – repete o relógio; «Luís» – o relógio. Ele esforça-se em sua estrada de negros calhaus semeada. Vai sem mapas nem agulhas-de-marear, num vácuo onde as galáxias o envolvem por todos os lados. Nem das entranhas da baleia ele precisa, nem das asas de cera. A cada esguicho da chaminé em sua narina esquerda, o universo o conhece, ele o conhece, num milímetro o percorrendo, em muitos outros o ultrapassando. «Luís» – repete o relógio; «Luís» – o relógio. Em braças mede a distância dos lábios ao coração, ansioso do fogo-de-santelmo, perdido entre amarras de zinco e oceanos que o escavam por dentro. Não há nome que lhe fique na memória, vindo do cesto-da-gávea. Só o simum zumbe em seus fios soltos, as rodas dentadas dão de girar em falso, o olho cego emite a luz intensa e gelada dos séculos sem crónica.
Quais os livros que este limite descrevem: aqui onde os cristais se declinam ao vento, sem texto nenhum mais que os registe? Ele recorda, no intervalo dos versos de Petrarca no gravador do esófago, amigos que o levam por esta ainda selva escura: o que sabia do amor como os bichos, o que dissera de uma rainha se dilacerando entre cortinas em frente do mar. «As cenas e hieróglifos eram pintados em superfícies, revestidas de cal, de longas e estreitas fitas produzidas a partir da fibra da figueira brava. Essas fitas eram pintadas de ambas as faces e dobradas como as pregas de um leque. Os três livros sobreviventes tratam de astronomia, adivinhação, aritmética, mas sabe-se terem existido livros de história.» Caminha, desamparado, através de inumeráveis páginas virgens, um pisco de galena em cada ombro. «Luís» – repete o relógio; «Luís» – o relógio. Mas tudo ignora, menos este vocativo sem sequência, liberto enfim da fala dos outros e da sua, no cárcere do medo. «Foi pelo fim da tarde, em Goa: passeavam sob os pálios, os vestidos soltos, uma pulseira de guizos nos artelhos. Eu levantava os olhos da leitura.» Mas o freio de seus lemes enlouquece, e o tempo corre e se prolonga, e um relâmpago lhe rasga o baixo-ventre. «Luís» – repete o relógio; «Luís» – o relógio.
De si eis o que se desprende: reis e poetas, aias e pastoras, nautas e ninfas. E enquanto a última caravela se desconjunta numa chuva de enxofre, o quadrante lhe revela o código: «Tudo o que muda se muda; a mudança permanece».
Mário Cláudio, in "Itinerários", Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1993
Referências: León Portilla – Visión de Los Vencidos; Michael D. Coe – The Mayas; J. Eric Thompson – The Civilization of the Mayas.

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