segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

O indigno negócio do infortúnio

Lampedusa
por Serge Halimi
"Há trinta anos, fugir do sistema político opressivo do seu país valia aos candidatos ao exílio os elogios dos países ricos e da imprensa. Nessa altura considerava-se que os refugiados haviam «escolhido a liberdade», isto é, o Ocidente. Assim, um museu em Berlim honra a memória dos cento e trinta e seis fugitivos que pereceram entre 1961 e 1989, quando tentavam transpor o muro que dividia a cidade em dois.
As centenas de milhares de sírios, somalis e eritreus que, neste momento, «escolhem a liberdade» não são acolhidos com o mesmo fervor. Em Lampedusa foi requisitada uma grua, a 12 de Outubro último, para carregar um navio de guerra com os despojos de cerca de trezentos deles. O Muro de Berlim destes boat people foi o mar; a Sicília foi o seu cemitério. A nacionalidade italiana foi-lhes concedida a título póstumo.
A sua morte parece ter inspirado alguns responsáveis políticos europeus. No passado dia 15 de Outubro, Brice Hortefeux, antigo ministro do Interior francês, considerou, por exemplo, que os náufragos de Lampedusa obrigavam a responder «a uma primeira urgência: fazer com que as políticas sociais dos nossos países sejam menos atractivas» [1]. E atacou as prodigalidades que atraem os refugiados para as costas do Velho Continente: «A ajuda médica do Estado permite que pessoas que chegam ao território sem respeitar as nossas regras [sejam tratadas gratuitamente], enquanto para os franceses pode haver até 50 euros de franquia».
Só lhe resta concluir o seguinte: «A perspectiva de beneficiar de uma política social atractiva é um elemento motriz. Deixámos de ter meios para fazer isto». Não se sabe se Brice Hortefeux imagina também que foi por se sentirem atraídos pelas ajudas sociais paquistanesas que 1,6 milhões de afegãos encontraram refúgio neste país. Ou que foi para beneficiarem das larguezas de um reino cuja riqueza por habitante é sete vezes inferior à de França que mais de 500 mil refugiados sírios já obtiveram asilo na Jordânia.
O Ocidente valia-se, há trinta anos, da sua prosperidade e das suas liberdades como de uma lança ideológica contra os sistemas que combatia. Agora, alguns dos seus dirigentes utilizam a desgraça dos migrantes para precipitar o desmantelamento de todos os sistemas de protecção social. Pouco importa a tais manipuladores do infortúnio que a esmagadora maioria dos refugiados do planeta seja quase sempre acolhida por países quase tão miseráveis quanto eles.
Quando a União Europeia não intima estes Estados, já próximos do ponto de ruptura, a «acabarem com o indigno negócio das embarcações improvisadas» [2], ela ordena-lhes que se tornem a capa que a cobre, que a protejam dos indesejáveis, perseguindo-os ou detendo-os em campos [3]. O mais sórdido é que tudo isto será passageiro. Porque, um dia, o Velho Continente vai voltar a fazer apelo a jovens imigrantes para travar o seu declínio demográfico. Nessa altura os discursos vão inverter-se, os muros vão cair, os mares vão abrir-se…"
Sábado 9 de Novembro de 2013” Le Monde Diplomatique,Novembro 2013
Notas
[1] RTL, 15 de Outubro de 2013.
[2] Tuíte de Cecilia Malmström, comissária europeia dos Assuntos Internos, acusando a Líbia e a Tunísia, a 11 de Outubro de 2013.
[3] Ler Alain Morice e Claire Rodier, «Como a União Europeia enclausura os seus vizinhos», Le Monde diplomatique – edição portuguesa, Junho de 2010.

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