quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

Descansar as angústias na letra redonda

DESCANSAR AS ANGÚSTIAS NA LETRA REDONDA
Por Eugénio Lisboa
"Miguel Torga, de quem se celebra este ano o centenário do nascimento, ficará, na história literária de Portugal, como um dos mais eminentes representantes da brevidade e da concisão: a narrativa curta, o poema relativamente curto, o poema curto ou o muito curto, ou as “entradas” no já célebre Diário, quase sempre breves, acutilantes e certeiras. Nos Contos da Montanha, nos Novos Contos da Montanha, na Rua ou em Pedras Lavradas, do mesmo modo que na poesia (seja a inserida no Diário, seja a publicada em livros assumidamente só de poesia), Torga investe de sentido profundo a ousada e discutível proposta de Claude Roy, quando este afirma que “toda a mestria tende a condensar-se.” Isto só em parte é verdade: eu diria antes, sendo mais cauteloso, que alguma mestria tende a condensar-se, como de resto o reconhece o próprio Claude Roy, quando observa: “Nada é mais admirável que as obras de grandes dimensões que não são grandes máquinas. A não ser, talvez, as obras muito curtas, cuja brevidade nunca dá a impressão de secura, cuja concisão se repercute lentamente, longamente, que se prolongam em harmónicas.” E acrescenta estas palavras que parecem assentar como uma luva no avaro protocolo torguiano: “Exprimir muito em poucas páginas é uma grande delicadeza. A delicadeza e a obra de arte têm de comum o serem uma e outra uma economia. As verdadeiras boas maneiras e o verdadeiro bom estilo poupam-nos tempo e forças.” Eis como o agreste e rude contista da montanha se transfigura no delicado propiciador de condensados a rebentar de conteúdo pelas costuras, só porque subtilmente atento à economia da nossa disponibilidade.
Médico, interventor cívico intemerato, “vocação contrariada de vagabundo”, auscultador atento e não batoteiro das virtudes, manhas e vícios do povo português, com o qual mantém uma relação de curiosidade fraterna mas não adocicada, Torga vaza, com vigor e, não raro, com fulgor, dentro dos moldes apertados e exigentes da criação breve, o muito que tanto a vagabundagem como a vida sedentária lhe foram ensinando.
O homem Torga, carregando consigo todo um teor de anedotas, mitos, lendas e, provavelmente, invenções malévolas, não convidava muito ao convívio. Quantas vezes, estudante de engenharia, em Lisboa, não fantasiei ir passar uma semana ou duas a Coimbra, com o fito de cocar, de longe, de muito longe, enquanto fingisse ler um livro de Unamuno, o vulto do homem que esculpira o Alma-Negra ou a Mariana. Mas sempre temi o confronto entre “o homem que fez a obra e o homem que a obra faz supor”. O mítico autor do Diário, que eu devorava nos escassos ócios que me deixava um exigente curso de engenharia, era por certo alguém que melhor fora deixar a vaguear, caçador solitário, na montanha que, para nós, bichos da cidade, desenhara com minúcias amorosas de campeador agreste e convencido. “O Torga” foi-me, durante muitos anos, uma tentação. Mas recusei sempre e, se calhar fiz mal, ceder ao chamamento. Parece que, afinal, o caçador implacável e manhoso era um tipo abordável e até cordial. E que teria gostado de conhecer. Desencontros que a vida tece, quando o receio de uma decepção em nós mina a possibilidade de um entendimento. De modo que o Torga de que aqui vos vou falar, com a brevidade que ele tanto amava e tão eminentemente cultivava, é aquele que transparece dos seus livros de criação pura e dos outros que, mesmo não parecendo de criação pura, o são afinal também, porque de todo o barro que vem às mãos de um bom escultor sai sempre obra asseada e perene: o Diário, o Portugal ou o Traço de União exibem tanto a marca do criador como qualquer bom conto da montanha ou qualquer ode das melhores que nos deixou.
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Como todos os grandes escritores, Miguel Torga acolheu e acarinhou, dentro de si, um mundo de contradições. Lega-nos uma vasta obra feita de palavras apetecidamente trabalhadas, ao mesmo tempo que nota, poucos anos antes de morrer, que “sempre a experiência [lhe] ensinou  que os momentos mais significativos da nossa condição, por embargo ou pudor, são mudos”. Dito de outro modo, o cultivo continuado e apaixonado do verbo levou-o à descoberta do valor insigne do silêncio. Por outro lado, tendo passado toda uma vida a comunicar com o leitor, em prosa e em verso, conclui, numa anotação do seu último volume do Diário (com data de 10.9.1991), que: “Ninguém sabe nada de ninguém. Morremos inéditos. Tanto que tenho dito de mim, por palavras e obras, e pasmo diariamente diante da incompreensão dos mais íntimos. Foi inútil e inglório todo o meu esforço para ser transparente aos olhos do mundo. (...) Fiquei a ser, não o poeta que realmente sou, mas o monstro que me inventaram.” Ou ainda, e de forma mais sucinta e acutilante: “Vamos para a sepultura secretos como viemos. E sempre a fazer, laica ou religiosamente, sinceras confissões.” Inutilidade de toda a escrita? Futilidade de toda a intervenção? Conclusão final – pessimista – de um escritor que arriscou a liberdade na luta pelo ideal de uma pátria a viver em democracia? É verdade que, no mesmo  Diário, e em data muito próxima, Torga regista isto: “Afirmei recentemente que o meu verdadeiro rosto, presente ou futuro, está nos livros que escrevi.” Mas que “verdadeiro rosto” s é, como ele próprio insinua, mais do que provável que o irão desfigurar? Esta obsessão relativa ao indecifrado segredo que todos nós – e em especial, ele, Torga – levamos para o túmulo irriga-lhe, de resto, as páginas do último volume do Diário. Noutro ponto, volta à carga, com ênfase reveladora: “E cada novo livro que publico”, sublinha ele, “é apenas mais um S.O.S. que, por descargo de consciência, lanço engarrafado ao mar das montras. Se o embrulho for encontrado em qualquer praia por alguém, e a mensagem lida e entendida, óptimo. Se não for, paciência. Nunca as nossas inquietações e angústias podem ser inteiramente partilhadas. Ao fim e ao cabo, todos vivemos e morremos em segredo. O mais profundo e significativo de nós em nenhuma circunstância vem à luz do solo. Principalmente ao bico da pena dos que mais se explicam e confessam mascarados de penitentes, e são quase sempre mestres consumados do disfarce. Santos Agostinhos há poucos.” A inculcação do número reduzido de Santos Agostinhos, isto é, de confessados dilacerantemente sinceros, aliados à verificação assumida de que “o mais profundo de nós em nenhuma circunstância vem à luz do sol” [sublinhado nosso], leva à conclusão não demasiado abusiva de que o autor de Bichos se não inclui entre os pares do autor de A Cidade de Deus.
Permitam-me juntar a este acervo de proclamações de um cepticismo radical quanto à possibilidade de uma efectiva comunicação – não desfigurada – entre autor e leitores,  permitam-me juntar, dizia, esta acutilante passagem lançada no mesmo Diário, por ocasião dos seus 84 anos: “Todos sabemos [reparem: “Todos sabemos”], clara ou brumosamente, que nascemos sós, vivemos sós e morremos sós. E que, até nas horas menos infelizes, no mais fundo do nosso inconsciente, lateja, cruciante, a dor incurável dessa condenação. Mas sabemos também que a Bíblia, o livro dos livros, nos ensina que não há homem sem homem, e que o próprio Cristo teve, a caminho do Calvário, a fortuna de um Cireneu para o aliviar do peso da cruz. O que, trocado por miúdos, significa que a solidão radical de cada existência – que, nos poetas, a cegueira de Homero ilustra premonitora e paradigmaticamente – é mitigada por uma força que, se não vence os destino, inconformadamente desde sempre o desafia.”
Neste texto fundamental, o autor de O outro Livro de Job, faz – ou retoma – três afirmações fundamentais: 1) Toda a existência humana é afligida por uma “solidão radical”; 2) essa “solidão radical” pode, às vezes, ser “aliviada” por terceiros (como o Cireneu que “aliviou” Cristo a caminho do Calvário), mas não pode ser definitivamente “curada”; 3) a força promotora de tal alívio pode “desafiar” a incurabilidade do destino solitário do homem, mas não pode vencê-la ou resolvê-la. A rebeldia de Orfeu é, em suma, um “panache” que lhe dá aura e dignidade mas não lhe resolve nenhum problema essencial da existência. Torga é, nisto, muito claro, saturninamente explícito, repetidamente afirmativo.
Eduardo Lourenço apontou, há muito, um dedo certeiro, àquilo a que chamou “desespero humanista” em Miguel Torga, com o que quis significar a desconfiança do autor de Poemas Ibéricos." Eugénio Lisboa

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