segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

Ai, América

América, América...
                                    Manoel de Andrade
Trago ainda na alma o mapa dos caminhos...
Meus versos riscam teu dorso para cantar um tempo único e perfumado.
América, América,
ali, entre os ramos e o penhasco, o abismo florescido,
acolá, o milho semeado e a colheita rumorosa.
Entre serras e quebradas vai o colla dedilhando sua flauta,
é seu hino à pachamama modulando o silêncio do altiplano.

Canto meu enredo de viandante,
passo a passo rumo ao norte e à alvorada.
Quantos atalhos, meu Deus, quantas fronteiras!
A travessia ao entardecer no Titicaca,
o Illimani batido pelo sol,
e aquela noite sob as estrelas em Macchu Picchu!
Ah! este aguaceiro vem agora molhar minha saudade,
e tudo me chega como um recanto do passado...
e se hoje digo amigos e digo hermanos,
ouço nossos passos ecoar pelas vielas seculares de Quito e de La Paz.

Ai, América, ainda não disse de ti quanto quisera,
abre teu cântaro, ó Poesia, e dá-me o frescor do rocio,
dá-me a magia e o lirismo...,
que canção para mim soará mais bela que tuas sílabas de encanto?
América, América,
Lembro-me do fulgor do teu rosto renascido da utopia,
tuas bandeiras de sonhos
feitas de plumas e veias transparentes.
Os campos todos semeados
e o porvir tatuado em cada gesto.
Tudo era aroma na gleba cultivada,
nos brotos germinava a esperança
e nossas pálpebras se abriam para o amanhã.

Canto a América que vivi,
entre alegrias e lágrimas, canto o continente ao sul de Anahuác.
Falo de uma América primeira,
asteca, quiché, chibcha, quéchua, mapuche e guarani,
essa América materna,
botânica e mineral,
sangrada por Cortez, Pizarro e por Valdivia.
Falo de uma só pátria,
a grande pátria de Bolívar,
pilhada e violentada,
submetida pelas garras perversas do Império.
Vi tuas trincheiras abertas
e depois as densas trevas caírem sobre o sul.
Sobreveio o chumbo cruel,
os labirintos da dor e as atrocidades.
Na penumbra gemiam os cravos, gemiam as rosas,
e agonizava a vida ainda em botão.

Canto para denunciar a verdade sufocada,
e eis que mancho este verso para nomear Garrastazu, Bordaberry, Videla, Pinochet
e seus rastros genocidas num tempo silenciado.
Canto para dizer das valas clandestinas,
das ossadas do Atacama
e dos “voos da morte” para o mar,
Meu réquiem para trinta mil argentinos,
meu canto para as “crianças da ditadura”,
para os sobreviventes e suas cicatrizes,
para a viuvez e a orfandade
para las Madres de Plaza de Mayoe suas lágrimas perenes.

América, América,
quarenta anos se passaram
e tuas feridas ainda emergem da tragédia!
E aqui declino a “operação” perversa dos “condores”
e os seus generais malditos.
Canto por ti, América,
por tuas aldeias de bravos e por teus calvários,
por teu nevado esplendor tantas vezes torturado,
América de tantos massacres e patíbulos,
ouço-te ainda na voz melancólica dos charangos, quenas e zamponhas,
chorando por la matanza de San Juan, em Potosi.
Uma América de martírios,
estrangulada em Cajamarca,
esquartejada em Cusco,
sacrificada em La Higuera.
executada em Trelew e El Frontón,
e nos rituais da morte em Villa Grimaldi e no Dói-Codi.

Por tanta dor nessas memórias
eu vos peço perdão pelo meu canto.
Ele é também assim: um áspero clarim no entardecer.
Distante, tão distante,
no tempo e nos andares,
e hoje, em busca de mim mesmo,
ainda abrigo o mesmo combativo coração.
Não sei o que te espera, América,
os anos correram inquietantes e velozes
restando um mundo com seu som intolerável.

Busco meu íntimo silêncio,
e, por um momento, digo basta...,
meu pensamento em prece, e num lampejo, viaja ao sul do Chile.
Lá, muito além do Bio-Bio, há um golfo deslumbrante.
Vou em busca de Arauco,
lá lutaram meus heróis, Caupolicán e Galvarino.
Foi lá onde viveu Lautaro e onde vive Frederico.
Vou para rever o cone nevado do Antuco
rever o vale e a Cordilheira,
o seu dossel verdejante, onde se gesta a vida.
Vou para relembrar uma baía de barcos,
para construir uma paisagem na alma,
uma tenda de luz para um amigo.

                                                               Curitiba, 22 de dezembro de 2.013
Manoel de Andrade, poeta brasileiro

2 comentários:

  1. Que bom que ainda existem cantos a América. Ela merece e ainda precisa muito deles, de poemas-história, poemas-vida, poemas-coração, tal como muitos a cantaram. Lembrei-me muito de Neruda. Divulgarei entre os alunos e os professores da UERJ.
    Abraços.
    Rita.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Agrada-nos que tenha apreciado a publicação do poema de Manoel de Andrade. Não só a América necessita de cantos, o Mundo exige-os. Manoel de Andrade tem sido um bardo errante nessa imensa América. Merece o aplauso de todos os americanos.
      Seja bem vinda Professora. De Portugal, saudamo-la com prazer.

      Eliminar