terça-feira, 19 de novembro de 2013

Ventanas

Fotografia: F. Füllgraf

Contos intimistas : Ventanas

Por Frederico Füllgraf 

"Quando vi pela primeira vez aquele terraço emoldurado, imaginei que o quarto dela estivesse escondido atrás da veneziana da direita, com suas asas ligeiramente encostadas; apenas o suficiente para iluminar sempre os traços do rosto dele no escuro das cobertas.
Às vezes, ouve-se algumas notas tocadas ao piano, provavelmente oculto atrás da veneziana do meio. Quando as notas resvalam pelo gradeado do terraço e caem na calçada, elas se transformam em outra nota - um si, um fá, por exemplo.
Quando as pessoas as ajuntam do chão, elas voltam a vibrar como as notas tocadas pelas mãos dela. Então, as pessoas as levam para casa. Para tocá-las para suas namoradas, ou seus maridos.
Já este gradeado contava outra estória. Enquanto faziam amor, deixaram aberta a porta. Ela queria enxergar o céu enquanto desfrutava o êxtase. As frestas da veneziana filtraram uma nesga de sol que cindiu a coxa direita dela em zonas de claro e escuro no momento da pequena morte no gozo. A trepadeira no vaso, que testemunhara tudo, estrebuchou.
E ela foi regá-la.

Ciudad Vieja.

Aqui a estória era sussurrada pelas cortinas.
Quando se casaram, sempre que fazia lua-cheia sobre o rio, eles se beijavam na sacada, repleta de begónias e amores-perfeitos. Hoje, a sacada é um depósito de entulho como seu amor: no canto direito, o cabo de uma antena do rádio, silenciado, que às sextas lhes enchia a sala de tangos, que eles bailavam, ida e volta, sempre até a varanda.
Agora, tudo são paredes descoradas, cortinas que pendem, pesadas de pó e sonhos murchos, junto à porta escancarada para o nada. 
Vai se vivendo. 


Aquela janela ali poderia ser de Ulisses. Desde que a mulher partiu, ele não sai da cama, colocada no centro geográfico da mansarda, cujas janelas não abrem, e cujas cortinas continuam atadas em tranças. Do jeito que ela deixou. Em certos dias, o frio e a luz macilenta que se infiltram pelas frestas, lhe fazem lembrar Dublin. No inverno, as noites do Prata são compridas. Mas quem sabe Molly se arrependa...

 Podia ser Madrid. Quem sabe, Barcelona.
Também podia ser Génova. 
Buenos Aires? Podia ser.
Palermo é que não poderia ser: quando o último capo tomou o navio para a América, todas as mulheres foram para a capela, rezar.
Aqui, no dia da chegada, essas lembranças, todas, se misturaram ao Prata.
Uma vez por dia, há vinte e três anos, a mulher espreita da varanda, por cima dos telhados contíguos. 
Quem sabe hoje conseguiria denotar no rio a silhueta do barco desaparecido, aproximando-se do porto! Do qual baixaria então seu homem, que foi ao mar e nunca mais lhe escreveu. 
Ela tem esperanças. Ainda não se deixa chamar viúva, mas a pensão intocada se avoluma na conta do banco.

Nesta, daqui debaixo, me senti em casa. Poderia ter sido assim: Ela me convidou para morarmos juntos, minha escrivaninha encaixada na nave desta sala, iluminada pelos três lados, para que em nenhuma hora do dia o escuro caia sobre as palavras."Frederico Füllgraf


Frederico Füllgraf, estudou na FUB-Universidade Livre de Berlim e na DFFB-Academia Alemã de Cinema e Televisão, também em Berlim, até seu mestrado (MA) em Comunicação Social. É escritor (A bomba ´pacífica´- o Brasil e outros cenários da corrida nuclear, Brasiliense, 1988), roteirista e Director de cinema. É colunista da revista eletrônica Speculum, de arte e cultura, e das revistas impressas Caros Amigos, Ideias e ETC (Travessa dos Editores) e do  Jornal GGN Santiago de Chile. Frederico Fullgraf vive no Chile.

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