sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Play it again, Oskar!

Play it again, Oskar!
Crónica da Berlim ainda intra-muros
Por Frederico Füllgraf
"Poetas morrem de overdoses: de versos, droga ou loucura; em casos extremos, de fome ou de bala do marido da amante. Já Oskar Huth, o ébrio virtuose, derrapou sobre uma partitura e despencou num fosso, entre uma clave e um si-bemol.
Em vida foi o que os berlinenses chamam de Original: viajado, erudito, amante da boa tertúlia, e, sobretudo, estradeiro; subentendido não como transgressão criminosa, mas atributo de pessoa, digamos, algo avessa ao trabalho.
Caminhante, Oskar era corruptela de Baudelaire, prussiano: tinha no sangue o mapa das avenidas e alamedas, das colunas e estátuas, dos arcos e viadutos e, sobretudo, dos Kneipen; os botecos; ou das “tabernas”, como dizem nossos irmãos lusos.
Não andava: parecia deslizar pela cidade, de olhos fechados. Conheci-o e já beirava os sessenta anos de idade. Irrompeu no bar Litfass, do também saudoso português exilado, Antonio, trajando incombinável gravata cor laranja sobre berrante camisa cor verde, desarrumação acentuada ainda por paletó violeta, surrado.
Tinha prazer em esfarinhar a má educação, modismo anti-autoritário da época, com implacável protocolo, mas sem empáfia: não resistia ao hábito de saudar as damas, beijando-lhes as mãos – atitude extemporânea, que nelas resgatava o desprezado (mas, ai!, tão desejado) Kavalier à moda antiga, reforçando a colorida, etílica e divertida decadência da então cidade intra-muros.
 Contumaz, neste mesmo tom de fin-de-siécle (do XIX, pois já contávamos 1980), apesar da minha irritação, Oskar saudava-me como “mein Freund vom Oberen Orinoco” “meu amigo do Alto Orinoco” – rude equívoco territorial que remetia àquela boçalidade geográfica de filmes B hollywoodianos, nos quais chiquitas-bananas bailavam rumba em Coupakébéna...
Carmem Miranda? – Oh, nein, gringos jamais!: naquele faiscante átimo bolivariano, Herr Huth re-incorporava a odisséia do inebriante Humboldt às “regiões equinociais do novo continente”. Contudo, seu fascínio não brotava unicamente de seus modos educados, fora de ordem, mas de sua aura de alemão à margem, cuja coragem era cochichada em prosa e verso, naqueles tempos (noves fora o Che Guevara) tão carentes de heróis.
Quando inspirado, empertigava-se ao piano sebento com teclas amareladas pela ação da fumaça dos cigarros de muitos anos, parecendo perfeita réplica do “Pau d´água”, vinil muito tocado nas festas dos meus pais, em minha infância, ilustrado na capa com um pianista bêbado junto a um piano idem. Deste, Oskar conseguia arrancar harmonias oblíquas para a embasbacada platéia: solenes fugas de Bach, aqueles estertores de Billie Holliday (“He is my maaaan..”), uma chanson lacrimosa de la Piaf, e assim por diante.
E nestes concerti buffi jamais faltava uma loira quase fatal, derramada sobre o realejo, como falsete de Greta Garbo, traçando com os olhos John Gilbert ao piano, em “Flesh and the Devil”. Apostei que um dia adentraria o bar em baixo astral e – de staccato a furioso -atacaria de Hindemith; só para contrariar!
Mas Oskar era movido por inabalável bom humor. Quando chegava recém-desperto, com profundas olheiras roxas, descabelado e a barba com três dias, desculpava-se com deferência, repescando no céu de chumbo os tormentos da noite anterior: “passei da conta, Brüderchen (“irmãozinho”), bebi o rio todo, encharquei até a alma”.- alegoria emprestada do Spree, rio que corria de leste a oeste, por baixo do Muro, impassível à divisão da cidade.
Filho de músico, desde a tenra idade acompanhara o pai a bordo de uma charrete em missão profissional. Viajavam por Berlim e a província de Brandenburgo, consertando e afinando órgãos de igrejas, devolvendo a alegria a curas e pastores, recebendo em troca seu pró-labore e a promessa de uma vida eterna. Foi assim que a música entrou na passagem terrenal de Oskar, quem, como poucos, sabia que a eternidade... - ora, essa arrebata-se  ao instante!
E o que tornaria sua biografia digna de um longa-metragem, foi a 2a guerra mundial, que silenciou seus Lieder, substituindo-os pelo assobio tenebroso de bazucas, tanques e bombardeiros, fechando o céu sobre Berlim.
Antes da minha volta ao Brasil, tínhamos combinado uma entrevista para um semanário brasileiro, tendo como locação a gávea do Obelisco da Vitória (vitória sobre a França, em 1870): uma coluna bismarckeana empoleirada por um gigantesco e coruscante anjo dourado, que Wim Wenders levou para a história do Cinema como ícone de “Asas do Desejo”.
Indisciplinado, alemão às avessas, Herr Huth não compareceu. Deixou-me babando pela narrativa até o próximo encontro; no bar do Antonio! Certamente porque o anjo não servia bebidas, apenas uns excelsos, insípidos bafejos, sem álcool, sobre a arte de elevar-se às alturas; essas bizantinices esvoaçantes de querubins e aeronautas.
Ora, cá em baixo  eclodira a 2ª. Guerra, e alistado no exército, Oskar desertara em seguida, entranhando-se na clandestinidade. Convencido de que seu paradeiro era farejado, triscou um criativo despiste: entregava cartas e cartões postais a amigos viajantes, com a ordem para aguardar o bombardeio, considerado terminal, de cidades inusitadas, e então postar os sinais de vida a seus familiares, espantados e aliviados.
Dado por morto, Oskar renascia em cada batalha.
Sobreviveu aos seis anos da guerra como falsário (de identidades, passaportes, dinheiro), emergindo de seu búnker no dia da conquista de Berlim pelas forças aliadas. Interrogado por norte-americanos, lhes teria recomendado uma “receita” para seu país em ruínas: - Dividam-no em quarenta partes e nunca mais haverá guerra!
Os ianques entreolharam-se, riram constrangidos e prometeram pensar na proposta: em 1948 a Alemanha estava partida em duas e Berlim “de quatro”, digo: dividida em quatro “zonas” de domínio militar – geografia e história, hoje superadas, mas de autoria reivindicada por Oskar, que ria, treteiro, ajeitando a gravata torta, insinuando solenidade. Divertia-se com a pasmaceira dos cristãos diante de sua fanfarronice e apostava em sua perpetuação como mito.
E tentando arrancar da música o imorredouro, Oskar, o Airoso, maquinou um irretocável invento, primoroso: um piano com “teclado aerodinâmico”.
Revolucionário, porque profundamente ergonómico  seu conceito baseava-se na observação de que, durante um concerto com duração média de noventa minutos, um pianista aplica várias centenas de quilogramas de força ao teclado. O recital era sempe uma apoteose, já o pianista o jazia ali como lixo!, bradava Oskar, a cabeleira despenteada.
Substituindo o teclado convencional, fixo, por outro, deitado sobre um colchão de ar, o espirituoso borracho pretendia imprimir a sustentável leveza do toque” à arte de conduzir o piano. Patenteou sua ideia e uma confraria de amigos criou o “Fundo Oskar Huth”, dotado de 10 mil Marcos, destinado ao desenvolvimento tecnológico da criativa engenhoca.
Havia, porém, uma condição: nenhum centavo do fundo deveria ser malversado, usado para fins que não os “estritamente pianísticos”
Crónica bêbada, há muito anunciada, a subversão do teclado morreu na casca, digo: na canjebrina. Mal interpretando a cláusula do contrato, Oskar confundiu fundos com sumidouro: certa noite mergulhou no leito abissal de uma garrafa e dele não mais retornou. Imortalizou-se na arte da fuga..." Frederico Fullgraf
Frederico Füllgraf, estudou na FUB-Universidade Livre de Berlim e na DFFB-Academia Alemã de Cinema e Televisão, também em Berlim, até seu mestrado (MA) em Comunicação Social. É escritor (A bomba ´pacífica´- o Brasil e outros cenários da corrida nuclear, Brasiliense, 1988), roteirista e Director de cinema. É colunista da revista eletrônica Speculum, de arte e cultura, e das revistas impressas Caros Amigos, Ideias e ETC (Travessa dos Editores) e do  Jornal GGN Santiago de Chile. Frederico Fullgraf vive no Chile.

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