sexta-feira, 1 de novembro de 2013

A palavra, hoje, mutila

“façam com as palavras aquilo que quiserem,
 desfaçam-nas:

uma palavra desfeita não magoa,
 uma palavra inteira rasga a boca,
 uma palavra inteira é a certeza
 de outra palavra inteira, a corda fina
 que vai da trave à terra, do caibro ao vento
 de uma janela aberta:
 a imprecisa
 minúcia da poeira 
(...)
A mão do cego distingue a sombra de uma palavra,
 mas não a boca que fala.
 A mão do cego lê na proximidade da pedra.
 Ou de outra mão.
 A mão do cego não acolhe, pressente.
 Sinuosa irrespirável solidão.
Rui Nunes, in ”Uma Viagem no Outono”, Relógio d'Água,Junho 2013

“O massacre concentrou-se em pequenas coisas. E sobrevive, nas cansadas viagens suburbanas. Sob os olhos colados de sono, a mão esquecida pesa ou afasta, às vezes cai, abandonada. Um cão enrola-se debaixo de um banco: as palavras têm aqui a aspereza de um vidro riscado. Estação a estação fica mais nítido o vómito nas janelas. E cada minuto recua até encontrar a sua explicação.  
Quem não conhece estas manhãs, duvida:
somos todos o passado clandestino dos felizes, quando o rio era um brilho entre salgueiros, um desvio incerto da infância. “
 Rui Nunes, in ”Uma Viagem no Outono”, Relógio d'Água, Junho 2013
Rui Nunes, foto de António Pedro Santos 
"(...)quando nos sentimos bem na linguagem que produzimos, no próprio discurso que produzimos, isso só significa para mim que estamos numa gaiola. Pressinto que um dos problemas da literatura portuguesa é exactamente esse. O talento que muitas vezes encerra a pessoa na sua própria gaiola." 
Rui Nunes, o autor destas afirmações, começou a publicar em 1968. Autor de uma obra extensa, acredita  que talvez não continue a escrever, não apenas porque a progressiva cegueira que o afecta há vários anos já não o deixa, mas também por sentir que alcançou um momento final." 
Neste ano de 2013, deu algumas entrevistas .Apresentamos um fragmento da última entrevista ao JL.

Rui Nunes: A imensa palavra
“Dois livros recentemente publicados, Armadilha e Uma Viagem no Outono, podem ser os últimos de quase meio século de poesia e ficção. É que os seus olhos vêem cada vez menos e a literatura já não o move, como adianta ao JL
Qualquer palavra é o prolongamento da primeira": é o que diz Rui Nunes em Armadilha, recentemente publicado na Relógio d'Água. E prossegue: "Escrevemos, gritamos, amamos, destruímos, e tudo são sílabas que se juntam a essa palavra". 
Armadilha, encerra a trilogia iniciada em 2011, com A mão do oleiro, a que se seguiu Barro, em 2012. Três livros em que o poeta desvenda "a imensa palavra" da sua vida, no seu registo mais auto biográfico. Um regresso à "terra matricial" da escrita que não tem "refúgio" para ele: "O que escrevo é uma dura claridade. Onde me torno um alvo".
"A palavra, hoje, mutila", afirma por outro lado em Uma Viagem no Outono, também com a chancela da Relógio d'Água, publicado quase em simultâneo. E que afirma ser o último livro que escreve. Estando quase cego, os seus olhos cada vez conseguem ver menos do mundo que desde sempre se insinua na sua obra. E foi para aquilo que está "rés ao chão", para onde ninguém olha: que a sua literatura sempre olhou. 
Rui Nunes, 66 anos, que há muito vive entre Portugal e a Áustria, iniciou o seu percurso poético com As Margens, em 1968. Publicaria depois, entre poesia e ficção, Sauromaquia, Quem da Pátria Sai A Si Mesmo Escapa?, Osculatriz, Grito, Grande Prémio de Romance e Novela da APE, em 1997, Rostos, O Choro É Um Lugar Incerto, Ouve-se Sempre a Distância Numa Voz, Ofício de Vésperas ou Os Olhos de Himmler. De alguma maneira, sente que já "disse tudo o que tinha para dizer", como afirma. Sabe, porém, como as palavras, de que sempre suspeitou, são armadilhadas, tal como a memória. E se promete continuar a andar de um lado para o outro para ver sempre "as pequenas coisas", "abaixo dos joelhos das pessoas", é possível que ainda vislumbre muito que escrever, enquanto tiver do mundo um fio de olhar. Por ténue que seja. 
JL: Que armadilha é a que desmonta no seu livro?
Rui Nunes: É a memória. O retorno contínuo que organiza a perturbação do presente. Essa é a grande armadilha e já está presente nos dois livros anteriores, embora neste com mais força.
"Hoje fui ao longo do que me lembrava", diz mesmo num verso.
Fica de resto logo expresso no início do livro que se vai falar das coisas alteradas pela memória ao longo do tempo. E vividas não como foram, mas como a memória as revisita.  
Como somos apanhados nessa armadilha?
Primeiro, recorda-se de certo modo para exorcizar. Mas isso nunca se faz realmente. A memória é sempre acrescentada aos próprios factos. O que desvenda, também encobre. E o processo acaba por ser infinito. Ou pelo menos, apresenta-se inacabado. É o inacabamento que leva a continuar a escrever. É o motor da própria escrita.
A escrita tenta desocultar a memória?
Tenta, mas a desocultação é sempre falhada. Porque só se recorda com as palavras. E elas também encobrem o que descobrem. 
Armadilha encerra uma trilogia, com A mão do Oleiro e Barro, em que parece haver uma incursão mais autobiográfica. Por que sentiu essa necessidade?
 Esses meus livros são de facto os mais biográficos. Porque tento dar neles a terra matricial da minha escrita, aquilo que de certo modo a gerou e continua a gerar. É nesse sentido mais fundo que são autobiográficos.
Há nessa trilogia, uma revisitação da infância, da figura do pai, do avô... Foi um processo doloroso?
Para mim, sempre foi mais doloroso não escrever. É evidente que essa presentificação de aspectos, que sendo matriciais são também dolorosos na minha existência, não foi amável. Mas sê-lo-ia ainda menos, se não os tivesse escrito. E senti a necessidade de o fazer no fim de um processo de escrita longo, de algumas dezenas de anos.
Voltando ao início para fechar um ciclo?
De certo modo. Uma Viagem no Outono, que publiquei praticamente ao mesmo tempo, é o último livro que escrevo. 
Porquê?
Não me habituei às novas tecnologias e como vejo cada vez menos o que estou a escrever, isso sim é muito doloroso para mim. Os meus livros vivem muito dos espaços, da própria composição da escrita na página. Também está muito ligado à minha relação com o mundo, que está sempre a entrar pela minha escrita. E o meu acesso ao mundo está a ficar mais ténue. Noutras circunstâncias teria de reorientá-la, mas já não tenho paciência, nem vontade. Além disso, de alguma maneira já disse tudo o que tinha a dizer. Se sentir necessidade de dizer mais alguma coisa, escreverei. Mas penso que isso não irá acontecer.
Pode assim afirmar-se que já se disse tudo?
Talvez não. Na verdade, nunca se diz tudo. Mas a minha suspeição em relação às palavras é tão forte que me tem levado a escrever cada vez menos. Como já disse uma vez, as palavras estão carregadas de uma certa malignidade, que se torna extremamente difícil de exorcizar. É isso que me leva à destruição da sintaxe, da narrativa. A sua integridade é para mim o grande modelo da mentira da própria escrita.  
Em que sentido?
Cá estou eu outra vez com o problema das palavras. Falamos de mentira ou verdade e tudo remete para conceitos muito fortes, mas não o digo nesse sentido. Sinto simplesmente que não é assim e que não vale a pena continuar. E cada vez mais.
Não voltou a escrever?
Não, não escrevi mais nada nos últimos meses.” Maria Leonor Nunes, JL, 23 de Outubro de 2013

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