sábado, 30 de novembro de 2013

Um registo na pedra

Pressupostos civilizacionais
São José Almeida
29/11/2013 - 21:56
“Cortes de investimento público, que empurram pessoas para fora do sistema, agravam movimentos de exclusão próprios de momentos de fim de época. Maria Cavaco Silva foi assobiada e apupada, na segunda-feira, na Moita, por um conjunto de trabalhadores, a maioria funcionários da câmara. O protesto organizado pela União de Sindicatos de Setúbal contra o Orçamento do Estado visou a mulher do Presidente da República. Foi assim quebrada uma barreira simbólica. Esta inédita ousadia segue-se a um outro protesto também inédito: na quinta-feira passada, membros das forças de segurança, ao manifestarem-se, invadiram a escadaria do Parlamento, pondo em causa a autoridade do Estado.
Os dois momentos não descambaram em violência, graças aos sindicatos, que cumprem um papel de enquadramento social da contestação reivindicativa. Na revolução civilizacional do modelo da sociedade que se vive, pode, no entanto, vir a ser ultrapassado o papel moderador desempenhado por sindicatos e movimentos inorgânicos, como o que esteve na origem da manifestação de 12 de Março de 2011 ou o Que se Lixe a Troika, responsável pela convocação do protesto a 15 de Setembro de 2012. Papel de enquadramento das aspirações das pessoas que já não são satisfatoriamente representadas pelos partidos e pelos dirigentes políticos, como é exemplo a pouca expressão que tiveram a reunião organizada por Mário Soares a 21 de Novembro e a homenagem a Ramalho Eanes a 25 do mesmo mês.
Os protestos verificaram-se quando era aprovado o OE para 2014, em que o investimento público nos serviços sociais volta a diminuir. Esta redução da despesa social resulta da mudança de modelo de relações entre a sociedade e o Estado provocada pela hegemonia de uma ideologia ultraliberal em que o lucro privado se sobrepõe ao interesse público e à defesa da dignidade humana.
Um sistema de valores dominante que o Papa Francisco condenou também esta semana, no documento que é o programa para o seu Papado, ao afirmar, de acordo com a tradução da Conferência Episcopal Portuguesa: “Assim como o mandamento ‘não matar’ põe um limite claro para assegurar o valor da vida humana, assim também hoje devemos dizer ‘não a uma economia de exclusão e da desigualdade’. Esta economia mata” (p. 30). Acrescentando ainda que se vive num mundo em que “os excluídos não são ‘explorados’, mas resíduos, ‘sobras’” (p. 31), numa sociedade em que “a crise mundial, que acomete as finanças e a economia, põe a descoberto os seus próprios desequilíbrios e sobretudo a grave carência de uma orientação antropológica que reduz o ser humano apenas a uma das suas necessidades: o consumo” (p. 32).
Vive-se uma inversão de paradigma, acelerada pela revolução tecnológica, que tem facilitado a implantação do ultraliberalismo, ao implodir as noções de espaço e tempo e ao pulverizar as estruturas tradicionais. Mas a actual transição histórica deveria despertar a consciência da necessidade de preservação e do aprofundamento da garantia de dignidade humana. Este despertar reveste-se de urgência especial num momento de desestruturação do sistema, que é visível, por exemplo, no relatório da Comissão Europeia sobre os jovens que não trabalham nem estudam e que, em Portugal, atingem meio milhão, 92 mil dos quais surgidos desde 2008 (PÚBLICO, 24/11/2013).
Isto num país onde existem mais de 800 mil desempregados registados, segundo o INE. E numa União Europeia que tem um quarto da sua população, cerca de 125,3 milhões de pessoas, em risco de pobreza ou de exclusão social, 6,7 milhões das quais surgidos desde 2010, como reconheceu esta semana Durão Barroso, ao admitir o falhanço da Estratégia Europa 2020 da Comissão Europeia (PÚBLICO, 27/11/2013).
É verdade que o pleno emprego é um mito nunca atingido de facto. É bom mesmo que se tenha noção de que o conceito de trabalho, enquanto emprego estruturante da sociedade, é uma novidade surgida no pós-revolução industrial. Mas é preciso também não esquecer que a evolução histórica não é sempre sinónimo de progresso. Há regressões civilizacionais. Daí que seja urgente ter em conta que cortes de investimento público, que empurram pessoas para fora do sistema, agravam movimentos de exclusão próprios de momentos de fim de época, de fim de civilização, em que tantos deserdados da sorte são jogados para fora do comboio da história.
Por isso mesmo, numa época de revolução e ruptura, para procurar evitar regressões civilizacionais, é urgente estar atento à defesa dos direitos humanos, na sua totalidade de direitos fundamentais, individuais, sociais, na certeza de que, por serem relativos e vividos em função do contexto histórico, são tão mais frágeis e tão perecíveis. Porque é isso que permite a defesa da diversidade e da dignidade humana que deve caracterizar as democracias. E preservar o pressuposto civilizacional de que as pessoas têm direito a uma vida justa e digna.” Público

sexta-feira, 29 de novembro de 2013

Ontem e Hoje, o nosso mundo

Par  et
Une pratique parfaitement légale pour la loi anglaise si la noyade a pour but de sauver le reste des "marchandises humaines"- Le Point
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Viver debaixo da ponte

"Comem, dormem, lavam-se, urinam, defecam debaixo do chão por onde passam, todos os dias, milhares de pessoas. Revelamos três casos limite de sem-abrigo que vivem debaixo de pontes em Loures, Oeiras e Lisboa." Visão, 28/11/13

Ler mais: Aqui

Os Livros de Novembro

“Atlas do Corpo e da Imaginação”, novo livro de Gonçalo M. Tavares, uma edição da Caminho
Sinopse: «um livro que atravessa a literatura, o pensamento e as artes, passando pela imagem e por temas como os da identidade, tecnologia; morte e ligações amorosas; cidade, racionalidade e loucura, alimentação e desejo, etc…».
«centenas de fragmentos que definem um itinerário no meio da confusão do mundo, discurso acompanhado por imagens de “Os Espacialistas”, colectivo de artistas plásticos».
Gonçalo M. Tavares revisita a obra de pensadores contemporâneos como Bachelard, Wittgenstein, Foucault, Hannah Arendt, Roland Barthes, e de escritores como Vergílio Ferreira, Llansol ou Lispector, entre muitos outros.
Nas palavras da Editora «arquitectura, arte, pensamento, dança, teatro, cinema e literatura são disciplinas que atravessam, de forma directa e oblíqua, o livro».
“Fado Alexandrino” de  António Lobo Antunes, em edição comemorativa (1983-2013), Dom Quixote
Sinopse:«Um livro que narra o regresso e reencontro de quatro ex-combatentes da guerra colonial, o modo como a vida se lhes transtornou e se destruiu. A história prende a atenção pela narrativa articulada, por vezes irresistivelmente divertida, em que personagens e personalidades convincentes, bem desenhadas, vivem uma intriga de acontecimentos múltiplos e surpreendentes peripécias de timbre trágico e cómico, do quotidiano banal ao sucesso mais insólito.”

A Casa de Bragança”, romance, e “Do Movimento Operário e Outras Viagens” colectânea de poemas, de  Ernesto Rodrigues, Âncora Editora, foram apresentados pelo  autor  nesta quarta-feira, 27 de Novembro,  na Livraria Ferin, Rua Nova do Almada, 70-74, Lisboa.
“A Casa de Bragança” abre com o casamento de D. Inês e D. Pedro nesta cidade, onde lhes nascera o segundo filho, D. João de Portugal e Castro, calhado para um trono que as vicissitudes pessoais e históricas entregaram ao meio-irmão D. João I. Essa figura é reabilitada na memória da família Roiz, cuja casa triangula a igreja de Santa Maria e a Domus Municipalis, outras moradas dentro da vila e cidadela, o que significa contar as origens do burgo, a construção do castelo e a linhagem dos Rodrigues, desde 1014, coetâneos da nacionalidade e dos Bragançãos, de que Inês de Castro também descende.
A narrativa é organizada por Afonso Roiz, cujas relações com 
os filhos do Mestre de Avis nos apresentam D. Afonso, primeiro duque de Bragança, D. Pedro e suas andanças europeias, D. Fernando e seu martírio em Fez, além da amizade com o segundo duque de Bragança, D. Fernando, requerente junto de D. Afonso V da carta de foral que faz de Bragança cidade (20 de Fevereiro de 1464) e o mesmo Afonso Roiz traz de Ceuta.O manuscrito deixado por este é recuperado por outro Afonso Rodrigues (nascido em 1956), que não só acompanha as celebrações do quinto centenário do foral (1964), como, meio século depois, resolve enigmas da sua vida.
“Do Movimento Operário e Outras Viagens” reúne 40 poemas de quem se estreou, na poesia, há 40 anos.”
“Mandela – O Rebelde Exemplar “, de António Mateus (Planeta)
 Mandela visto e narrado por um autor, português, que o acompanhou durante uma década enquanto jornalista destacado na África do Sul, como correspondente da agência Lusa e da RTP, e continuou, desde então, a estudar a vida de Madiba.
 Desde a libertação de Nelson Mandela, em 1990, António Mateus cobriu no terreno o conturbado processo de erradição do sistema de apartheid, a eleição de Madiba como primeiro presidente negro da África do Sul, o desempenho do seu único mandato presidencial e, depois, toda a sua actividade até à retirada da vida pública em 2004.
 Um livro diferente de tudo o que leu, que mostra o ser humano que escolheu transformar-se num líder de referência mundial pela tolerância, humildade e valores mas, já foi um jovem emotivo, irascível, temperamental e egocêntrico.
 Um olhar próximo, humanizador, sobre um homem que escolheu assumir e trabalhar as suas próprias fragilidades, começando nele a mudança que sonhava para o mundo.
 Um exemplo que resgata a nossa fé nos Homens e em nós próprios, na nossa capacidade de fazermos a diferença, para melhor, se assim o decidirmos.
 Um livro com fantásticas ilustrações do ilustrador Nuno Tuna, escrito numa linguagem acessível, especialmente dirigido aos mais jovens e a todos os que queiram conhecer o lado humano de um herói dos nossos dias.»
Jardim das Tormentas – Aquilino Ribeiro, Bertrand. Uma reedição que celebra o centenário da publicação da obra
 Sinopse:“Tinha Deus aposentado Adão e Eva no Jardim das Delícias, onde viviam como os mais desabusados regalões. O homem era esbelto e sólido, embora nunca houvesse exercitado os tendões da marcha, nem apurado os bíceps a colher o antílope no laço; ela um lambisco de primeira, esgalgada e especiosa, a quem os cabelos vestiam de oiro à maravilha, sem pensar na folha de parra para a nudez, num cinábrio para a boca, que de seu sinal era rubicunda. Não sabiam de onde eram, nem como estavam ali, nem tão pouco se importavam de saber, acharam-se dentro do horto uma boa manhã, e todas as demais manhãs, na plenitude de um gozo inapreciável, porque nunca espinho, sol mais destemperado ou hora amarga lhes ensinara que aquilo era o sumo bem.”»
Gente Feliz Com Lágrimas” de  João de Mel, Dom Quixote. Reedição comemorativa  da passagem dos 25 anos   da primeira edição
Sinopse:”Romance de uma família que se desfaz e refaz pelas paragens onde a levam os bons e maus augúrios que motivam a sua dispersão, Gente Feliz com Lágrimas é uma saga que irresistivelmente arrasta o leitor ao longo de cinco mundos, vividos e pensados através da obsessiva busca da felicidade que move os seus protagonistas.
 Concebida polifonicamente como a descrição dos vários modos de viver a amargura que medeia entre o abandono da terra e o retorno ao domínio do que é familiar, esta peregrinação possível em tempos de escassez de aventura é a definitiva lição de que o regresso se não limita a perfazer o círculo, e constitui uma visão fascinante do Portugal que todos, de uma maneira ou de outra, conhecemos.”

“O Barril Mágico” de  Bernard Malamud , Cavalo de Ferro.
 «Nas treze histórias que compõem O Barril Mágico, primeiro volume de contos de Bernard Malamud, pode encontrar-se algumas das personagens mais inesquecíveis da literatura, figuras que carregam consigo um destino atávico e arcaico e, ao mesmo tempo, são a expressão da experiência existencial do homem contemporâneo, de um mundo feito de mediocridade e de sonhos nunca realizados, mas igualmente com momentos de ternura e profunda ironia.
 Um universo que perfaz um arco temático com o Sul pobre e fanático de Flannery O’Connor, de Sherwood Anderson e de William Faulkner.»

“Encontro de amor num país em guerra” de Luis Sepúlveda, Porto Editora
«O presente livro reúne um conjunto de narrativas que se encontravam dispersas por edições há muito esgotadas ou que permaneciam inéditas nas gavetas do autor. Com a sua publicação, Luis Sepúlveda quis de certo modo “encerrar” o capítulo da sua vida literária anterior a O Velho que Lia Romances de Amor, obra que, de um momento para o outro, em 1992, o transformou no caso mais sério da nova literatura latino-americana.
 A aventura e a política, o amor e a guerra, a viagem e a utopia, a ironia e o mistério: todo o mundo do autor, com as suas paixões e os seus temas (alguns, como o tema amoroso, presentes pela primeira vez com tanta intensidade), comparece neste notável livro de relatos, que vem confirmar a mestria do grande escritor chileno e a sua incontornável presença na primeira fila dos grandes contadores de histórias nossos contemporâneos.

“Navegação de Acaso” de  Nuno Júdice, Dom Quixote
«Novo livro de poesia de um dos autores mais singulares da literatura contemporânea, que recentemente foi galardoado com o Prémio Rainha Sofia de Poesia Ibero-Americana.»

“O Espião que Saiu do Frio “de John le Carré, Dom Quixote, Reedição

 «Edição que assinala os 50 anos de publicação de um dos mais aclamados livros do autor e que contém um prefácio do próprio John le Carré, que começa assim: “Escrevi O Espião Que Saiu do Frio aos trinta anos de idade, debaixo de grande tensão, não compartilhada, e na maior das discrições. Como funcionário de informações sob a capa de diplomata subalterno da embaixada britânica em Bona, eu era um segredo para os meus colegas e a maior parte das vezes para mim próprio. Tinha já escrito um par de romances, necessariamente sob pseudónimo, e o serviço para o qual trabalhava dera-lhes o seu beneplácito antes de serem publicados. Após longa ponderação, deu também a sua aquiescência a “O Espião que Saiu do Frio.” Ainda hoje não sei o que teria feito se não a tivesse dado.”»

quinta-feira, 28 de novembro de 2013

Bandeiras e máscaras


Bandeiras e máscaras
                                                              Manoel de Andrade
Esse é o tempo cruel que antecede o amanhecer.
Em seu rastro marcham os filhos das estrelas e os herdeiros da penumbra.
Na moldura das horas as intenções se partem.
Ali, os justos ensaiam seus passos.
Acolá, nos becos, os ânimos crepitam
e engatilham seus gestos.
Nas ruas as faces empunham bandeiras,
as máscaras escondem punhais.

Passo a passo, portando consignas e estandartes, a multidão caminha...
ocupam estradas, bloqueiam rodovias, paralisam cidades,
avançam no seio da tarde denunciando os charcos do poder e os leilões da mais-valia.
É o nosso “Dia de Lutas”, gritam os sindicalizados.
São cinquenta, são cem mil pedindo tarifas justas,
terras repartidas, quarenta horas semanais...
Faixas, cartazes, coros e gritos:
“Prisão para os corruptos”, “Punição para os crimes da ditadura”.
 “O povo acordou, o povo decidiu, ou para a roubalheira, ou paramos o Brasil”.


Eis o espaço do povo,
eis as ruas virtuais,
é a nova democracia,
pelas redes sociais.
Salve moças e rapazes,
salve as faces descobertas,
salve as bandeiras e os sonhos,
erguidos com transparência.


De repente as fronteiras são rompidas,
sobre as cores da paisagem as máscaras armam seus braços,
quais abutres insaciáveis atacam os cristais e escarram na decência.
Atrás dos grandes escudos os uniformes avançam.
Voam coquetéis e pedras, explodem gazes, morteiros,
soam tiros e foguetes entre o fogo e as barricadas.
Salve os agentes da ordem, salve os bons pretorianos.
O verde-oliva e o negro já cruzam suas espadas,
barras, paus e cassetetes
e as razões abaladas.
Chegou a tropa de choque nos trajes da truculência.
Surge o gesto inconfessável,
surge a fraude na vergonha e o flagrante forjado.
Asco aos falcões do cinismo algemando a inocência.

Eis o palco dos tumultos,
eis as cinzas da batalha,
eis o saldo do espanto
e a multidão dispersada.
Restou o ato incompleto,
sem o hino dos professores,
e sem o eco das promessas
na voz dos governadores.
Massacraram a primavera
e a magia da cidade.
Assustaram os pardais,
retalharam a liberdade.
Eis a cultura que herdamos
a esfolar nossas almas.
Abatido por tantos golpes,
o amor é um silêncio
e as avenidas soluçam,
qual um salgueiro de lágrimas.

E agora, eis-me aqui, diante da poesia,
assistindo desabar as velhas torres do encanto...
Perplexo, que posso ainda?
sou apenas um olhar melancólico diante da esperança.
Indignado ante a mística do horror,
quero transformar em versos  os protestos, o confronto, as cicatrizes.
A realidade é um idioma intraduzível,
e eu impotente, ante o mistério sinuoso das palavras.
As palavras, oh! as palavras em sua essência,
elas não se revelam a qualquer poeta...
habitam em seu próprio enigma,
são silentes como os hinos do entardecer...
Nesse impasse, entre as imagens e o lirismo,
ante a sensibilidade e a violência,
sei de um roseiral em flor no caminho dos meus passos,
alhures há um campo de espigas que cantam, balançando ao vento
e, nesta palmeira esbelta, a vida é reproclamada nos trinos de um ninho em festa.
                                                                               Curitiba, Outubro de 2.013
Manoel de Andrade, poeta brasileiro


quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Que saudade de ti

A vulgaridade nunca a marcou. Era uma pessoa singular e fazia de cada um de nós, um ser único, em tudo diferente de todos os outros. Todos a amávamos, desde o tempo recôndito em que não se era, sendo.  Crescemos . Fizemo-nos gente.
Gente que se repartiu  e, por  mais gente, se projectou.
Partiu há vinte e três anos. Uma longa ausência.
Hoje, faria  98 anos. Tempo de celebrar.
Celebremo-la , sussurrando-lhe de novo : Mãe.
Que saudade de ti.

terça-feira, 26 de novembro de 2013

Vinicius era assim mesmo

Amor e morte em Buenos Aires
Por Ferreira Gullar
"Meu primeiro relacionamento mais próximo com Vinicius de Moraes foi durante um show que ele fez no Teatro Opinião, do qual eu fazia parte. Se não me engano, era um show com os jovens baianos, que mal surgiam e aos quais ele queria dar força. Antes ou depois do show, íamos para um boteco ali perto jogar conversa fora. Vinicius nunca falava nada sério, fazia piadas ou contava histórias picantes e divertidas.
Nosso convívio maior foi, 20 anos depois, em Buenos Aires. Todo mundo conhece a história da gravação do "Poema Sujo", que ele trouxe para o Brasil e o difundiu como pôde. Poeta fazer isso por outro poeta é coisa rara, mas Vinicius era assim mesmo, generoso e afectuoso.
Mais ainda com as mulheres, claro. Nesse particular, ele tinha um modo muito próprio de se conduzir. A impressão que tenho é de que ele, quando surgia um novo amor, não pensava em nada, entrava de cabeça, sem ligar para as consequências prováveis. Nem no que dissesse respeito a ele nem à namorada que ia trocar pela nova.
Foi mais ou menos o que aconteceu em Buenos Aires, quando se enamorou de uma moça argentina uns 40 anos mais jovem que ele. E ainda teve o desplante de ir à casa dela para pedir aos pais permissão de namorá-la. É difícil imaginar que conversa foi aquela, mas a verdade é que o namoro continuou e, sem muita demora, a moça seguia com ele para o Rio de Janeiro.
Sucede que ele tinha uma namorada em Salvador --uma linda mulata-- que, ao saber do novo caso do poetinha, foi para o Rio, entrou na casa dele e fez um "serviço" na cama onde o poeta dormia, para fazer mixar o tesão pela argentina.
Se deu resultado, não sei. O certo é que, um ano depois, quando voltei para o Brasil, a argentina já tinha dançado, substituída por outra musa, ainda mais jovem.
Outro fato marcante dessa passagem de Vinicius por Buenos Aires foi o desaparecimento de Tenório Júnior, pianista de seu show. Ele dissera, no quarto do hotel, à namoradinha que viajava com ele, que ia à farmácia comprar um remédio. De fato, ia encontrar um cara que ficara de lhe vender cocaína. Saiu do hotel e não voltou mais.
Quando cheguei ao quarto de Vinicius, no hotel, estava todo mundo preocupado. Ele pedira a ajuda da embaixada brasileira para localizar Tenório e a resposta, que acabara de chegar, é que era impossível. O golpe militar havia sido desfechado há poucas semanas e a repressão atingia todas as áreas.
Foi então que dei um palpite. Disse a Vinicius que conhecia uma vidente argentina, que localizara meu filho quando sumiu da cidade; quem sabe, localizaria Tenório. Ele achou muito boa a ideia, mesmo porque não havia outra coisa a fazer.
Estavam ali a namoradinha de Tenório e Maria Julieta, filha do poeta Carlos Drummond, funcionária da embaixada brasileira. Informei que, para telefonar à vidente, teria que ir até meu apartamento, pois não tinha comigo o seu telefone. Fui acompanhado da namorada e de Maria Julieta e, chegando lá, telefonei para Dona Haydê, a vidente. Ela atendeu, ouviu o que eu lhe disse e perguntou o nome do desaparecido.
 Ao ouvir o nome dele, sua voz mudou estranhamente. Depois de um longo silêncio, afirmou que Tenório deveria estar ou morto ou inconsciente, pois não conseguia comunicar-se com ele. Pediu dois dias para tentar localizá-lo, mas, antes de desligar, advertiu: "Diga a essa mocinha que está aí, que vá logo embora da Argentina, pois corre risco de vida". Como ela sabia que a garota estava ali?
 Voltamos para o hotel, contei o que a vidente disse, e Vinícius, visivelmente preocupado, logo providenciou a volta da garota para o Rio, já que os pais dela nem sequer sabiam por onde e com quem ela andava. Não esperei os dois dias pedidos pela vidente. Liguei no dia seguinte e ela me falou com aquela voz estranha: "A polícia bateu nele até matá-lo". Quando contei isso ao Vinicius, seus olhos se encheram de lágrimas. Tenório, quando saiu do hotel, levou consigo seus documentos. Os policiais, quando se deram conta de que haviam assassinado um músico brasileiro, deram fim nele. O corpo de Tenório Júnior nunca foi encontrado.” Ferreira Gullar em crónica publicada na “ Folha de S.Paulo, em 17/11/2013

segunda-feira, 25 de novembro de 2013

Esta língua capaz de todas as cores (cont.)

Ilha de Moçambique
ALBERTO DE LACERDA:
A MARAVILHA DA VIDA E O HORROR DA VIDA (cont.)
Por Eugénio Lisboa
"O meu convívio com Alberto de Lacerda viria a reatar-se, de modo algum tanto errático, em Lisboa, entre 1947, ano em que aqui cheguei, vindo de Moçambique, e 1951, ano em que ele partiu para Londres, onde, para sempre se fixaria. E retomou-se, em Londres, onde eu próprio vivi, entre 1978 e 1995. Foi aqui que mais e mais frutuosamente (para mim, e espero que também alguma coisa, para ele) convivemos.
Em Lisboa, lembra-me sobretudo o Alberto que nos aparecia lá para os lados da Alameda Afonso Henriques e arredores, onde vivíamos eu, o Alberto Parente (que, por essa altura ainda poetava) e o Nuno Ribeiro, ambos de Moçambique e ambos com apetências culturais muito vincadas.
O Alberto vinha feito caixeiro-viajante da Távola Redonda e dos livros da Sophia, que nos vendia, com grande empenho e um discurso “de apoio” sabiamente persuasivo.Falava-nos de poesia portuguesa e francesa, de música (eu acabara de descobri-la, com Mozart), de pintura e da vida cultural em Lisboa, sobre a qual exercitava o seu minucioso conhecimento e a sua ácida ironia.(...)
   Os seus textos de prosa na Távola, a sua poesia, também na Távola, mostravam-me requintes de leitura, sensibilidade e inteligência crítica que me deslumbravam e quase me ofuscavam. Eu lia outras coisas, fazia outras descobertas: Gide, Proust, Ibsen, Shaw, Bunine, Tcheckov, Régio, Shakespeare, Baudelaire, Montaigne, Goethe... Mas invejava a agilidade, a fulgurância, a subtileza, a ironia acerada do Alberto. Depois, um dia, desapareceu. Fora para Londres. Viria a reencontrá-lo, em 1963, em Lourenço Marques, para onde eu regressara, em 1955. Fora ali, em revisita, uma revisita que nada queria ter de saudosista: “Não vim à procura de nada / Nem de saudades que não tenho / Nem da carga do tempo perdido / Nem de conflitos sobrenaturais / Do tempo e do espaço / [...] / Vim para ver / Para ver de novo / Para contemplar sem perguntas / Não vim à procura de nada / Um rio não se interroga / O vento não se arrepende”. Viajou por Moçambique inteiro, fez um extraordinário recital de poesia na Câmara Municipal de Lourenço Marques (lembro-me, com particular emoção, das suas leituras de Camões, Herberto Helder e Manuel da Fonseca) e demorou-se, com êxtase criativo, na sua Ilha de Moçambique, onde nascera trinta e cinco anos antes:
 Ó Oriente surgido do mar
             Ó minha Ilha de Moçambique
Perfume solto no oceano
   Como se fosse em pleno ar
Ou ainda:
                         Ilha onde os cães não ladram e onde as crianças
                                                                                       brincam                               
                                              No meio da rua como peregrinos
        Dum mundo mais aberto e cristalino

Ou ainda, num dos seus excessos magnificamente dominados:

       Ó corpos dados com melancolia
Às melodias do meu ardor!
    Ó pretas lindas! Ponta da Ilha!
    Vestem soberbos panos de cor.
         Deles se despem com grã doçura,
     Vénus despida do próprio mar.
         É com doçura que negras, lindas,
   Desaparecem no meu calor.
Em Vila Cabral, dedica um poema corajoso a Mouzinho de Albuquerque, nem politicamente correcto, nem colonialmente apologético, apenas um “retrato” prodigioso do personagem, num equilíbrio de sombras e de luzes, naquela espécie de “justiça” que a arte sabe fazer, porque sabe compreender:
                                Tinhas o germe odioso dos tiranos
O fogo sinistro da intolerância
         Mas que era feito de uma só palavra
                                Herói soberbo
                                Ó árvore gigantesca
                                Que tu próprio abateste
                                Em vez dos deuses
                                Que te contemplam a distância
Juntar no mesmo personagem o “odioso dos tiranos” e o “herói soberbo”, eis um tipo de justiça que só os grandes da imaginação costumam saber fazer – para eterna celeuma dos futuros leitores (disto, efectivamente, se fazem, depois, as “discussões” e as “teses” mais ou menos estéreis, porque argumentam inutilmente com a força afirmativa e contraditória da vida – que os poetas tão bem intuem).
Mas foi em Londres, repito, entre 1978 e 1995, que o nosso convívio se apertou. Não durava, nos primeiros tempos, o ano todo, porque o Alberto se dividia, por essa altura, entre a América e a Inglaterra. Mas, quando os seus compromissos americanos cessaram, estava quase sempre em Londres, fora uma ou outra saída, por pouco tempo. Vinha à embaixada com regularidade e saíamos para almoçar, quase invariavelmente, numa cafeteria simpática, no Habitat, de King’s Road. As conversas   não eram nunca repetitivas: o Alberto tinha uma variadíssima paleta de interesses, uma originalidade de visão e um apetite de vida que lhe não permitiam repetir-se cansativamente. Excepto quando falava de Portugal e dos portugueses. De cada vez que vinha a Lisboa, para reencontrar amigos e lugares, regressava a Londres como uma vespa assanhada. Tinha dificuldade em perceber ou, pelo menos, em aceitar que caía em Lisboa, no meio de agendas já fixadas e compromissos já assumidos, que tornavam inviável uma disponibilidade total e imediata. Isto feria-o mortalmente, como uma traição. Vigiava, com acinte, os gestos da pessoa  com quem estava: se os olhos se desviavam, mesmo discretamente, para o relógio de pulso, a controlar o tempo, estava o caldo entornado. Deixava-o igualmente perplexo e, aqui, com mais do que alguma razão, a pouca curiosidade mostrada por amigos e conhecidos portugueses, relativamente à sua vida em Londres, à vida em Londres: embrenhados na intriga paroquial lusíada, que tinham como centro do mundo, falavam, com deleite, de casos e escândalos locais, não revelando a mínima curiosidade por Londres, pela vida cultural de Londres, por tudo quanto não eram as conspirações vigentes na aldeola lusitana. Observei-lhe, várias vezes, que não entendia, visto isso, por que insistia em visitar Portugal. Claro que era o país da língua dele, onde tinha familiares e velhos amigos (cada vez menos); mas, se as pessoas e a sua maneira de estarem no mundo o indispunham de modo tão visível, para quê teimar?
Havia nele contradições insanáveis, velhos fantasmas não exorcizados, ressentimentos não aplacados e um desejo quase mórbido de ir lá, ou antes, vir cá, para se poder, convenientemente... indignar. E havia também , nele, algumas cegueiras e ingenuidades. Um dia, por exemplo, à saída da cafeteria do Habitat, enquanto esperávamos pelo autocarro, vestiu, de repente, um ar solene e meio embaraçado e disse-me que “me devia” uma explicação ou uma confissão. Fiquei alarmado... Que viria dali? Esclareceu: éramos amigos havia tanto tempo e nunca me dissera a verdade acerca de si próprio: era homossexual! Não pude deixar de sorrir e respondi-lhe: “Meu caro Alberto, ainda tu não sabias que eras e já eu sabia que eras...” Olhou-me, meio aliviado, meio intrigado: “Era assim tão visível?” Claro que era, mas fugi à verdade: “Acho que não. Mas talvez eu fosse perspicaz...” A verdade é que, quando o reencontrara em Lisboa, entre 1947 e 1951, tornara-se para mim claro que o Alberto ainda ignorava a sua verdadeira natureza. Teve até uma paixão fortíssima – e suponho que mantida secreta – por uma grande poetisa portuguesa: alguns dos seus versos alimentam-se dessa pulsão heterossexual embora, mais do que provavelmente, platónica e, com alguma probabilidade, ignorada pelo seu objecto.
Mas foram as suas animadas conversas prodigiosamente alimentadas pelo seu convívio apaixonado com a literatura, a pintura, a escultura e a música, e não pouco pelo seu variado comércio com alguns figurões do mundo universal da cultura – que me deram um dia a ideia de propor ao então Presidente do Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Fernando de Mello Moser, a criação de qualquer coisa como um lugar de super-leitor ou animador cultural, para todo o Reino Unido ou até extensível a outros países, para o homem cultíssimo e excelso conversador que era o Alberto: o qual meteria num chinelo, perdoe-se-me a expressão popular, tanto leitor afligido de fastio ou de pouca capacidade de comunicação. O Alberto poderia, sugeri eu, passar períodos de 3 meses – ou de 2 meses, a ver – em cada universidade, semeando saber, entusiasmo, sedução cultural. Mello Moser, personalidade que não esquecerei – pela competência, sensibilidade, integridade e elegância moral – mostrou-se sensível à proposta, gostou até francamente da ideia e prometeu ir ver a volta burocrático-jurídico-administrativa que poderia dar-lhe. Morreu, infelizmente, pouco depois e nunca mais me pareceu haver abertura para reincidir na proposta. Ficou-me a consolação de ter-se tornado possível, graças à pronta intervenção, a meu pedido, de Teresa Patrício de Gouveia, a atribuição de um subsídio de mérito cultural que veio, até certo ponto, ajudar, somado à magra reforma que lhe ficara das suas incursões universitárias nos Estados Unidos (Austin, Nova Iorque, Boston), a ter uma velhice  um pouco menos desprovida. Aproveito para esclarecer que, ao contrário do que já tem sido dito, Alberto de Lacerda  não “morreu na miséria”, tal como Fernando Pessoa se não extinguiu “vadio e pedinte”. Os mitos miserabilistas têm, entre nós, circulação afortunada mas nem sempre correspondem à verdade dos factos. Alberto não viveu folgadamente mas também não cortejou a miséria: comprava livros, ia a concertos e exposições e teve, felizmente, bons amigos que o apreciavam e acarinhavam. A vida teve, para ele, maravilhas e horrores. Não será um pouco o caso de quase todos nós? Uma das maravilhas que na vida lhe aconteceu foi, com excepção dos últimos dois ou três anos da sua existência, a cidade de Londres, que se tornaria, para si, como disse, numa das elegias de Londres, a “cidade entre todas bem amada”, “Londres / Centro exacto / Da liberdade” : foi ali que, finalmente, se sentiu em casa, fazendo, feliz, ainda na velhice, a eterna, poupada vida de estudante, indo ainda cedo, pela manhã, para o Picasso, na King’s Road, carregado de jornais e da vontade de implicar com tudo o que interferisse com o seu desejo de estar à mesa, a ler, sossegado, sem interposições sonoras de rádios ou televisões...Ali fruiu, com intensidade, com continuidade, com sofreguidão, o que há de melhor no mundo, em pintura, em escultura, em música, em ballet, em teatro declamado, em literatura, em convívio civilizado com tantos dos seus pares.
O desencanto é, contudo, o companheiro certo do envelhecer: como se a aproximação da morte nos induzisse a começarmos a pôr defeitos àquilo que iremos em breve  abandonar : nos últimos tempos, ao telefone, o Alberto dizia-nos, com amargura, do pesadelo em que Londres se lhe estava a tornar. “Aquilo” já pouco ou nada tinha que ver com a “cidade entre todas bem amada”. É bem certo: quando morremos, esboroa-se também o mundo à nossa volta...
Falando da obra de Giacometti, por altura da morte deste, num texto – “Notações” – publicado no Notícias de Lourenço Marques, em 26. 2. 1966, Alberto escrevia: “Eu esperava coisas ainda mais sublimes, simplicidades ainda mais misteriosas”. Já em data anterior, 21. 10. 1965, e no mesmo jornal, escrevera: “É preciso redescobrir a elegância. Mas por dentro”. E logo a seguir: “A elegância é uma raiz. Não é um ornamento”. Elegância e simplicidade. Eis dois vectores fundamentais que compõem o polígono de forças que suporta a obra singularmente profunda e transparente do autor de Palácio. Simplicidade: ele sempre a defendeu, como o outro único lado possível da profundidade. Por isso abominava  o jargon pacóvio e “snob” de tanto crítico palrador, obscurantista e pouco sensível à verdadeira poesia. Num texto publicado ainda no Notícias de Lourenço Marques, em 6. 4. 1966, escrevia isto: “O autor de Seven Types of Ambiguity [William Empson] tem o poder raro de conseguir profundidade de pensamento expressa de uma maneira lisa, directa, elegante. E incapaz de pedantaria [...]”. Toda a obra de Alberto de Lacerda – poesia, ensaio, crónica – é uma eloquente homenagem à profundidade transparente e elegante, ao horror desmedido à pedantaria e ao indecifrado mistério da simplicidade.” Eugénio Lisboa

domingo, 24 de novembro de 2013

Ao Domingo Há Música

Apesar das ruínas e da morte,
Onde sempre acabou cada ilusão,
A força dos meus sonhos é tão forte,
Que de tudo renasce a exaltação
 e nunca as minhas mãos ficam vazias.
Sophia de Mello Breyner Andressen, in " Poesia, Obra Poética", Editorial Caminho


Se consultarmos o  dicionário para  saber qual o significado da palavra  Música encontraremos o seguinte: " combinação harmoniosa e expressiva de sons ( a Música tem o poder de harmonizar a alma.) ". Dicionário Houaiss da Língua  Portuguesa,Tomo V,Círculo dos Leitores

Sigur Rós (pronúncia inglesa: /ˈsɪɡər ˈrɒs/ e pronúncia islandesa: [ˈsɪːɣʏr ˈrouːs]( listen)) , uma banda islandesa que se  afirma através da utilização de melódicos elementos clássicos e minimalistas, faz Música. A banda é conhecida pelos sons etéreos e pelos talentosos falsetes do seu líder, o cantor  Jónsi Birgisson.  Diz-se que quando os Sigur Rós cantam, os vulcões islandeses  ficam em silêncio. 
Ei-los em  " Ára Bátur", composição onde a melodia se solta , em crescendo,  para fazer renascer a exaltação que nos toma rendidos.

sábado, 23 de novembro de 2013

Esta língua capaz de todas as cores

ALBERTO DE LACERDA:
A MARAVILHA DA VIDA E O HORROR DA VIDA
Por Eugénio Lisboa
"Quando conheci Alberto de Lacerda, em Lourenço Marques, em meados dos anos quarenta (do século passado), havia, entre nós, um factor comum: gostávamos ambos de ler e líamos tudo a que podíamos deitar mão. Mas havia também uma diferença : o Alberto lia sobretudo poesia e eu lia sobretudo ficção, teatro e História. Não que a poesia me não atraísse : o de António Nobre chegara-me, com alarme, às mãos, bem como o Fel, de José Duro (que me pus a imitar, naquela espécie de atracção-repulsão que a morte exerce sobre os adolescentes). Mas não tinha poesia facilmente à mão. Os Poemas de Deus e do Diabo, difíceis de encontrar no mercado local, ouvi-os, lidos por amigos que se deixavam facilmente fascinar pela eloquência sulfúrica (e bela) do bardo de Portalegre. De Fernando Pessoa, chegaram-me, também de ouvido, as heresias de Caeiro e os histerismos de Campos. E pouco mais. Com o Alberto, era diferente: dois anos mais velho, dispondo de muito mais tempo porque o liceu lhe interessava pouco e era faltão, dotado de um apetite insaciável pela poesia (que desencantava, por compra, por empréstimo ou em casa do pai), pela arte e pela vida, ferido de ambição desmedida e daquele modicum de megalomania que aflige tanto adolescente e não é mal por aí além, o Alberto devorava poesia, escrevia poesia e falava – já então – admiravelmente de poesia. Era um conversador extraordinário, cheio de caprichos, de paixões, de rejeições, de convicções em itálico bem acentuado, de ironias desmedidas, de achados inesquecíveis... Como poucos, sabia ser afrontoso, com um toque de maldade de uma elegância florentina. Mas não era nunca pedante e tinha um horror sagrado pelos valores “estabelecidos” e pomposos, por títulos, por “importâncias”. Lia o que lia e descobria o que descobria, pisando, por si próprio, terreno ainda novo e inexplorado.
Como todos os adolescentes, tinha conflitos  interiores e familiares, histórias que teria pudor de contar fosse a quem fosse (Régio, por essa altura, marcava-o, embora, depois passasse a rejeitá-lo com alguma injustiça virulenta).
Intrigava-me algum tanto verificar que os grandes ficcionistas que, por essa altura, me iam apaixonando (Stendhal, Tolstoi, Dostoiewsky, Charlotte Brontë) – eram postos à distância pelo Alberto que se “não atrevia” a mergulhar naquela massa, romanesca de dimensões, para ele, aterradoras. Tratava-se, pareceu-me, de uma espécie de receio... de quase pânico! Mais tarde, mudaria e viria a ler, com prazer e argúcia, numa aproximação sempre pessoal, grandes obras de ficção.
Havia, já então, no Alberto, algo de saliente que nos impressionava sem que soubéssemos  muito bem identificá-lo: um manejo invulgar da língua, um enamoramento com a língua, que desferia com vigor e frescura, num descobrimento singular de tesouros escondidos num glossário aparentemente gasto mas que ele punha a vibrar com timbre escandalosamente renovado.
Em Lourenço Marques, bonita cidade do Índico feita para, com gosto, se morar nela, habitava uma gente singular e culta que nos ia enchendo a alma de um bom veneno propiciador: o sibilino e britânico Rola Pereira, outrora amigo de Pessoa e de Sá Carneiro, que ensinava matemática sedutora a toda a gente menos ao Alberto e que, nos interstícios dos números em parada, ia mesmerizando os jovens ouvintes com a última palavra em poesia lusíada: Fernando Pessoa, Sá-Carneiro, Almada, António Botto, José Régio...; ou o imprevisível e cultíssimo Domingos Reis Costa, professor de Francês e Português e velho amigo de Hernâni Cidade e Miguéis, que trazia, da sua vastíssima (e lida!) biblioteca, livros que ia disseminando pelas mãos vorazes dos que para eles já iam preparados pelas palavras prefaciadoras, sugestivas e não raro embebidas em tónico veneno, daquele exilado por razões que tinham a ver com amores de perdição (diziam, sussurrando, as más línguas). Naqueles subtrópicos, não se morria exactamente de pasmo – como o poderiam ter dito tantos que por lá deixaram rasto, o Alberto, o João da Fonseca Amaral, o Rui Knopfli, a Maria de Lourdes Cortez, o Vítor Matos e Sá, o Reinaldo Ferreira, o António Esquível, o Fernando Ferreira, o Cardigos dos Reis, a Maria Luisa Soares, a Glória de Sant´Ana, o Tiago Oliveira, o Cordeiro de Brito, tantos outros.
Cheio de “razões de queixa”, o Alberto não foi nunca, contudo, nem um amargo, nem um deprimido. Cantava, nos seus textos, “a maravilha da vida [e] o horror da vida”, mas nem a maravilha lhe adocicava a descascada elegância do dizer, nem o horror lhe tirava o apetite de viver; cantava para ajudar “a não esquecer nunca a liberdade”, mas nunca consentiu que o seu amor à liberdade lhe desviasse a pena até às fronteiras da demagogia. Quis que os seus versos “tivessem vida própria como os gatos, os tigres, os homens belos com olhos de criança, os lemes e os quadros a óleo, que mudam com a temperatura do mar, a luz do dia e o sol da noite.”
As suas paixões literárias nunca o cegavam e, no momento próprio, era capaz de fazer as mais inesperadas e ousadas reservas, mesmo às vacas sagradas da literatura, nas quais ninguém ousaria tocar nem com uma flor. Para dar só um exemplo, numa crónica enviada para o semanário A Voz de Moçambique e publicada no nº. 150 de 11.10.1964, intitulada provocadoramente “Nota muito atrevida sobre Baudelaire”, começa num tom apologético: “Numa casa alheia, num momento de tédio, tiro da estante Baudelaire, e cai-me como um precipício este verso sublime: «Nous avons dit souvent d’impérissables choses». O tom é quase o da linguagem falada. Mas não é prosa. É um verso espantoso; para além da magia sónica (que não chegaria) está concentrada uma experiência amorosa ao limite da ambiguidade e até quase da ironia: nenhumas coisas ditas são imperecíveis; no entanto, o amor e a arte exigem – na sua lucidez delirante – ou no seu delírio lúcido – essa dimensão infinita.” Para, logo a seguir, abrir fogo com as suas bem municiadas baterias: “A minha querela com Baudelaire é que ele faz da poesia – com o seu culto do remorso, a obsessão do pecado, a mise-en-scène macabra, as aparições múltiplas do Diabo, do Mal, do Inferno (com traços, muitas vezes, de gravura barata) – uma espécie de confessionário católico”. Avesso a tudo quanto oprime – o conceito de pecado, o Diabo dos que nele acreditam, o remorso, o Inferno anunciado -, o Alberto, no mesmo texto em que rejeita o Baudelaire de tudo isto, exalta o outro Baudelaire, o do amor e da arte que “exigem – na sua lucidez delirante – ou no seu delírio lúcido – uma dimensão infinita.” É esta dimensão infinita, este excesso, este exagero de afirmação que dão a quase toda a sua poesia uma força única e um fulgor inigualado. Veja-se, por exemplo, o belo poema “A língua Portuguesa”:
Esta língua que eu amo
Com seu bárbaro lanho
Seu mel
Seu helénico sal
E azeitona
Esta limpidez
Que se nimba
De surda
Quanta vez
Esta maravilha
Assassinadíssima
Por quase todos que a falam
Este requebro
Esta ânfora
Cantante
Esta máscula espada
Graciosíssima
Capaz de brandir os caminhos todos
De todos os ares
De todas as danças
Esta voz
Esta língua
Soberba
Capaz de todas as cores
Todos os riscos
De expressão
(E ganha sempre a partida)
Esta língua portuguesa
Capaz de tudo
Como uma mulher realmente
Apaixonada
Esta língua
É minha Índia constante
Minha núpcia ininterrupta
Meu amor para sempre
Minha libertinagem
Minha eterna
Virgindade
Note-se, neste poema, os característicos excessos de afirmação: “Esta maravilha / Assassinadíssima”, / “Esta máscula espada / Graciosíssima”/ “Esta língua / Soberba / Capaz de todas as cores”, etc.etc. E note-se também como ele “isola” os superlativos absolutos simples, dando-lhes a categoria de constituírem cada um deles, só por si, um verso único (“Assassinadíssima”, “Graciosíssima”).
Uma das características mais atraentes da arte deste grande fabbro é a tensão que, nele, vai constantemente existindo entre este excesso “romântico” e o mais rigoroso governo dos constrangimentos que a grande arte clássica recomenda: esta tensão sublima-se, de modo grandioso, na sua colecção de Sonetos, editada em Veneza, em 1991 – uma das mais belas colectâneas  desta forma poética – o soneto – que entre nós se publicaram: uma forma tão exigente, que Godeau, bispo de Vence, insinuava não ser o soneto coisa deste mundo.
O meu convívio com Alberto de Lacerda viria a reatar-se, de modo algum tanto errático, em Lisboa, entre 1947, ano em que aqui cheguei, vindo de Moçambique, e 1951, ano em que ele partiu para Londres, onde, para sempre se fixaria. E retomou-se, em Londres, onde eu próprio vivi, entre 1978 e 1995. Foi aqui que mais e mais frutuosamente (para mim, e espero que também alguma coisa, para ele) convivemos.”CONTINUA