quarta-feira, 23 de outubro de 2013

Não tenha medo


"Renda-se, como eu me rendi. Mergulhe no que você não conhece como eu mergulhei. Não se preocupe em entender, viver ultrapassa qualquer entendimento. Até cortar os próprios defeitos pode ser perigoso. Nunca se sabe qual é o defeito que sustenta nosso edifício inteiro. Minha força está na solidão. Não tenho medo nem de chuvas tempestivas nem de grandes ventanias soltas, pois eu também sou o escuro da noite. Que ninguém se engane, só se consegue a simplicidade através de muito trabalho. A palavra é o meu domínio sobre o mundo.
(...)Sobretudo um dia virá em que todo meu movimento será criação, nascimento, eu romperei todos os nãos que existem dentro de mim, provarei a mim mesma que nada há a temer, que tudo o que eu for será sempre onde haja uma mulher com meu princípio, erguerei dentro de mim o que sou um dia, a um gesto meu minhas vagas se levantarão poderosas, água pura submergindo a dúvida, a consciência, eu serei forte como a alma de um animal e quando eu falar serão palavras não pensadas e lentas, não levemente sentidas, não cheias de vontade de humanidade, não o passado corroendo o futuro! O que eu disser soará fatal e inteiro!
Clarice Lispector, in " Perto do coração selvagem", 1943 , Relógio d' Água

 " Perto do coração selvagem" é o primeiro romance da escritora brasileira Clarice Lispector, escrito em 1943, durante a sua adolescência. Movimentando-se sempre na esfera íntima do ser humano, Clarice dá-nos a conhecer Joana, numa viagem crua pela sua realidade.A vida de Joana é contada desde a infância até a idade adulta através de uma fusão temporal entre o presente e o passado. A infância junto ao pai, a mudança para a casa da tia, a ida para o internato, a descoberta da puberdade, o professor ensinando-lhe a viver, o casamento com Otávio. Todos estes factos passam pela narrativa, mas o que fica em primeiro plano é a geografia interior de Joana. Ela parece estar sempre em busca de uma revelação. Inquieta, analisa instante por instante, entrega-se àquilo que não compreende, sem receio de romper com tudo o que aprendeu e inaugurar-se numa nova vida.  Questiona-se com  muitas perguntas, mas nunca encontra a resposta. “
 

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