sexta-feira, 20 de setembro de 2013

Do Amor: como uma trovoada

"Um Amor Feliz" de David Mourão-Ferreira foi editado em 1986 e considerado um dos grandes romances do Sec. XX. Foi Prémio de Narrativa do Pen Clube Português, Prémio D. Dinis da Fundação da Casa de Mateus, Prémio de Ficção Município de Lisboa e Grande Prémio de Romance da Associação Portuguesa de Escritores.
Neste romance, o amor surge adúltero, carnal e quase erótico entre  a senhora Y e um artista plástico, Fernão. Um caso de amor escaldante onde o poder da sedução impera logo nas primeiras páginas do romance. A maestria poética de David Mourão Ferreira ressalta na narração deste  Amor Feliz..
" Segredo-lhe estas palavras com a boca a subir-lhe das espáduas até à nuca, e da nuca até à concha do ouvido. Já perto de um mês  correu sobre o dia em que tão atrasada aqui chegou, trazendo o maillot branco, em vez do xaile  branco, dentro do saco do Hermès. Acabámos agora de ser, em cima desse divã, grutas e gritos abafados da mesma praia submersa ; raízes, ramos, folhas, frutos, da mesma árvore na horizontal.
Estamos ambos de pé, estamos ambos nus, diante do enorme espelho aí à largura dessa parede: e todo eu me escondo atrás do seu corpo, assim lhe mostrando como só o seu corpo ali merece reflectir-se. Acaricio-lhe e sopeso-lhe os seios, ora um ora outro, na palma da minha mão direita, enquanto com os dedos da mão esquerda lhe modelo o pescoço, o ombro, o flanco, o ventre, o deslumbrante nascimento das coxas, procurando suplicar-le, através destes gestos, que finalmente se orgulhe de umas linhas tão puras, de umas formas tão enxutas e tão harmoniosamente distribuídas. Mas os seus olhos apenas espiam, na superfície do espelho, o reflexo do meu rosto semioculto.
(...) Raízes, ramos, folhas, frutos. E a gruta; e o grito. Nem tratámos , desta vez, de sequer alcançar o divã. Bastou-nos , defronte do espelho, o escasso rectângulo desse tapete. E dificilmente percebo como conseguimos, no fim, içarmo-nos até à poltrona . Encontramo-nos, no entanto, muito mais despertos do que supúnhamos: sentimo-nos leves, límpidos, alados, lúcidos, como depois de uma trovoada." David Mourão-Ferreira, in " Um Amor Feliz", Editorial Presença, 1ª edição, Lisboa, 1986

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