terça-feira, 20 de agosto de 2013

Acta Est Fabula

Eugénio Lisboa publicou, em Novembro de 2012, "Acta Est Fabula", o primeiro dos cinco volumes previstos das suas Memórias. A Editora Opera Omnia já anuncia no respectivo site  que vai editar , em Outubro,  o 2º volume das Memórias de Eugénio Lisboa, um dos intelectuais mais marcantes da vida cultural portuguesa.
Neste 2º volume das suas Memórias, Eugénio Lisboa relata-nos a sua vida em África, nomeadamente em Moçambique, onde nasceu, até ao ano de 1976."
E porque acreditamos que neste novo volume , Eugénio Lisboa nos rebrindará com o magnetismo da sua excelente escrita memorialista, recordamos algumas páginas do 1º volume, que revelam como  um insaciável amor aos livros o marcou desde muito cedo. O seu crescimento  foi acompanhado pela descoberta dos grandes escritores e pela argúcia com que os decifrava.O fascínio pela leitura e o prazer que lhe provocava a aquisição de um novo livro contagia-nos e faz-nos compreender por que razões a personalidade de Eugénio Lisboa  se  tornou  numa das maiores referências da Literatura Nacional deste século..  

" Em África , tudo se dilata com o calor, inclusivamente a dimensão do tempo e do espaço, isto é, há muito espaço e muito tempo. A África é enorme, nunca mais acaba, e os dias vão durando por ali fora e dão tempo para tudo e ainda sobra tempo. Trabalha-se devagar, mexemo-nos devagar, amamos devagar ( nem sempre). A vida, ali, dura mais, mesmo quando dura pouco.
Quando as férias grandes começavam, tínhamos, à nossa frente, uma vasta planície de tempo a preencher, mesmo que fosse a não fazer nada. A partir do 5º ano do liceu, eu possuía já uma pequena biblioteca e ia  comprando um outro livro que namorava longamente, antes de o poder comprar. Mas, até ao terceiro e mesmo ao 4º ano, a leitura não era muito variada. Lera alguma coisa, mas não encontrara ainda nenhum dos meus grandes amores literários. O Garrett  o Herculano e o Júlio Dinis tinham-me cativado muito, mas não lhes chamaria "grandes amores literários". Lia, rebuscava nas malas atiradas para a garagem, ao fundo do quintal, revistas que me fascinavam. A Vamos Ler!, como já disse, dava-me, entre outras coisas, biografias de grandes escritores de todo o mundo. E eu punha-me a imaginar, como já vos disse,  um futuro, que nunca viria a concretizar-se, em que viveria numa casa grande, com uma grande biblioteca, de paredes cobertas de madeira e grandes estantes com livros até ao tecto, numa arrumação impecável...Livros, sim, viria a tê-los em abundância, mas vastas salas sumptuárias, acomodando enormes estantes, foi sonho que nunca se materializou.
Portanto, aproveitava todo esse tempo, que chegava e sobrava, para escrutinar o mato, por detrás da casa, para irritar o " Nero", insinuando a presença de "ratinhos" por todo o lado, frequentando a " Padaria Serrano" e indo, de vez em quando, de machimbombo, até à baixa. Outras vezes, ia a pé e passava pela loja de quinquilharia  do chinês - Ho-Ling - ficando a olhar embasbacado , para a montra, onde se exibiam , violentamente  tentadores , sobressalentes de bicicleta! Da bicicleta que eu nem sequer possuía...Mas onde eu gastava o tempo todo era, sobretudo, especado frente à montra da " Minerva Central " ( propriedade de outro Carvalhinho), a namorar os livros que não fazia ideia de como haveriam de ser meus, um dia...Eram títulos tentadores, da " Portugália", , da " Inquérito", da " Gleba", da " Minerva". Poça, não ter eu um décimo da massa que tinham os Granchas, os Carvalhinhos, o raio que os partisse a todos! E, a esses, se calhar, nem sequer lhes apetecia ler aqueles calhamaços:  O Moinho à Beira do Rio, Guerra e Paz, O Retrato de Dorian Gray, Trovoada à Esquerda, Villette e tantos outros, que me desafiavam... Palavra que não era inveja - era só um bocado de ferro, por a distribuição das riquezas estar tão mal amanhada: dava Deus nozes a quem não tinha dentes e aos que os tinham - e bem afiados - fazia-lhes um grande manguito! Como dizia, poça! 
Uma amiga da minha mãe, uma parteira de nome Deolinda, forte, um pouco masculina, mas aberta e generosa, de vez em quando " furava" as recomendações da minha mãe, segundo as quais, pelo dia dos nossos anos, deveriam dar-nos, sobretudo, roupa. A D. Deolinda acabou por perceber o nosso desapontamento com tais " presentes" e, de uma vez, para grande surpresa e alegria minha deu-me um pequeno submarino ( o único brinquedo que jamais tive, para além da porcaria que me trouxera o Carmona). De outra vez, deu-me  um livro. A intenção foi boa e , em princípio, apreciado, mas o livro - Pessoas de Bem , de Antero de Figueiredo - revelou-se uma chatice insuportável. Tentei lê-lo várias vezes e, ao fim de quatro ou cinco páginas, adormecia. Bem certo que o calor e a humidade ajudavam à modorra. Mas eu " aguentava" bem o Herculano e o Garrett...Nunca fui, depois, verificar se a culpa era mesmo do Antero de Figueiredo ou minha. A memória do sono irresistível que se apossava de mim mal encetava aquele volume de um branco asséptico e tresandando a virtude...O próprio título - Pessoas de Bem - não prenunciava nada de empolgante" " C'est avec les beaux sentiments qu'on fait de la mauvaise littérature", tinha dito o Gide, que, por essa altura, eu ainda não conhecia. Viria mais tarde, quatro anos depois , mais coisa, menos coisa.
(...)Foi, precisamente , nessas férias entre o 4º e o 5º ano do liceu, que outro acontecimento importante teve lugar: um colega do meu pai, Abel Menano ( irmão do António Menano dos fados de Coimbra) disse-me para ir a sua casa porque se queria "desembaraçar" de uns livros, que talvez me interessassem... A desculpa era  " já não ter espaço" para tanto livro, mas isso era só um disfarce para a sua generosidade: Fui lá, lambendo-me antecipadamente, e pôs-se a separar livros vários, num total de cerca de 100: as Novelas Inquérito ( Walter Scott, Conrad, Panait Istrati, D.H. Lawrence, Somerset Maugham, Thomas Mann, Musset, Edgar Poe, Balzac, Dostoiewsky, Tolstoi, Turgueniev, Sigrid Undset, Rudyard Kipling, Galsworthy, etc.,etc.), Victor Hugo, os Cadernos Inquérito ( incluindo vários Plutarcos, Tácito, Platão, Sílvio Lima, etc.).
Era um mundo. E, em cima disso, ofereceu-me uma pequena estante onde todos esses livros se acomodavam (à tangente!). Fiquei literalmente siderado. Levei aquele tesouro  para a casa da Mendonça Barreto e, no meu quarto que dava para a rua, instalei, à frente da cama onde dormia e ao lado de uma secretária em madeira de chanfuta, onde estudava, a minha " biblioteca", à qual adicionei outros livros que já possuía. Entre os do sr Menano, vinham os três volumes do romance extremamente gótico do Arnaldo Gama: O Génio do Mal, que ajudou a " purgar-me" de todas as toxinas que ainda me envenenavam  e tinham sobrado da purga violenta que fora a leitura das tragédias gregas e do discurso desenfastiado do escritor Luciano, a seguir à morte do meu irmão. 
Foi um período de férias em que uma espécie de ressurreição quase eufórica se seguiu a uma soturna e funérea depressão.Quando as aulas abriram, para o 5º ano, encontrava-me mais preparado para o que aí vinha. O 5º ano não me deixou recordações particulares, mas a morte de meu irmão, deixara marcas: tive sempre notas de sobra para o " Quadro de Honra", nos três períodos do ano lectivo, mas lembro-me de que foi um ano de algum desencanto. (...)
Julgo que foi , por esta altura, que meu pai me trouxe, completamente amarfanhado pela água que apanhara no porão do navio, entre Lisboa e Lourenço Marques, na edição da " Inquérito", em belíssima tradução de José Marinho, o romance de Stendhal ,  Vermelho e Negro ( Le Rouge  et le Noir , no original).  Foi, em mim, um autêntico terramoto! Apaixonei-me perdidamente pela Senhora de Rênal e foi um amor que nunca me abandonou : a Senhora de Rênal ficou sempre a pertencer ao meu mundo mais privado. Cá fora, na arena, eu andava com fumaças de dominar e meter na ordem as Matildes de la Mole que inundavam o mercado...Mas as Matildes eram só para o toureio; a Senhora de Rênal era para o amor de facto. Nada de confusões! Li, reli, tresli o livro de Stendhal, com uma paixão nunca saciada. Nenhum outro livro me pareceu viável , imediatamente depois daquele.. Eu bem pegava neles, bem tentava lê-los: tinham todos o horrível defeito de não serem o Vermelho e Negro. Como se podia ser outra coisa? Algo de semelhante se passaria, pouco depois, quando li, pela primeira vez, em tradução portuguesa, todo o teatro de Oscar Wilde. Foi um fascínio deparar, pela primeira vez, em todo o seu esplendor, com a arte da conversação. Como se poderia não falar assim? Como era possível continuar a viver, sem se possuir,  pelo menos, o brilho dos lordes conversadores do teatro de Wilde? Valia a pena viver, se não se podia ter tal brilho, na conversa de todos os dias ? Ser menos do que Oscar Wilde era programa de vida que se visse? O brilho, àquele nível, seduz mas também angustia. É um valor que se não absorve pacificamente ou que eu, pelo menos, não absorvia pacificamente. Nas conversas com colegas e familiares, apetecia-me ensaiar o paradoxo faiscante. Demolir tudo, desassossegar aquela sociedade amolengada e conformista, sob o calor subtropical..." Eugénio Lisboa, in " Acta Est Fabula, Memórias - I -Lourenço Marques ( 1930-1947)" Ed. Opera Omnia, Novembro de 2012

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