sábado, 31 de agosto de 2013

A pressa da glória

Aflitos da glória
Por Carlos Heitor Cony
“Sim, a pressa. Todo mundo tem pressa, não exatamente de ir para casa, ou de vencer na vida, contingências que qualquer um entende. A pressa de que falo é de brilhar, ter plateia, obrigar os outros a se preocuparem com a gente. Perdoem a insistência mas trabalho há alguns anos em jornais e revistas e, de camarote, assisto ao desfile trágico (e engraçado), à procissão dos aflitos da glória.
Não há um dia na vida deste insignificante escriba em que não haja pelo menos cinco ou seis solicitações nesse sentido. É o livro, a peça teatral, o programa na TV, o quadro, a medalha recebida ou a receber, a viagem que fez ou será feita, a carta do homem ilustre recebida --enfim, todos os pretextos valem, até mesmo os dolorosos: mortes de parentes ou amigos.
De uns tempos para cá, faço o que posso: desligo o telefone da minha casa nos fins de semana. Celular, nem uso. Mesmo assim, os esmoleres da glória sempre encontram um jeito de me aporrinhar: mandam cartões e presentes para a minha cachorra, no pressuposto de que, agradando à cadela, agradam ao cão --que sou eu mesmo. Vá lá: faço a nota, publico a nota --e me sinto cúmplice da geleia geral.
Talvez os leitores não saibam, mas 80% dos nomes e notas que aparecem nas folhas --tirante aquelas do primeiro escalão da política e da polícia-- são catimbadas, caitituadas. Enfim, a glória. Já foi dito que a própria, ou seja, a glória, é a repetição do próprio nome. O anonimato seria o seu oposto, a fossa comum, a vala infecta do João Ninguém.
E aí surge a importância, a transcendência dos meios de comunicação: eles foram feitos para informar, para prestar um serviço público. Mas, como subproduto de si mesmo, o jornal --ou a revista ou a rádio ou a televisão, ou as redes sociais-- acabam servindo de mordomo da glória alheia.
Outro dia, voltava de uma viagem ao exterior juntamente com outros jornalistas. Na alfândega, encontramos algumas das autoridades mais conspícuas da nossa república, solícitas, desejosas de desembaraçar os embrulhos e malas dos mais notáveis da profissão. Tudo bem: a vida é assim mesmo.
Chaleirado, embora mal pago, o jornalista vai levando. Alguns acreditam no efêmero poder dos gramofones da glória alheia e embolam o meio de campo: também acabam lutando para ser notícia.
Felizmente, há uma turma nova que inicia outro processo: dão uma banana para a pompa e circunstância da glória e tratam de trabalhar bem e de bem ganhar o dinheiro que a profissão devia dar. Exigem bons salários, de acordo com suas aptidões, fazem seu pé de meia e, logo que podem, penduram as chuteiras, tratando de outros ofícios menos expostos.
Esta mentalidade é nova, repito. Ainda existem profissionais que acham uma vergonha lutar por bons salários, pois a profissão de jornalista é por si só tão nobre e dadivosa que, em se a exercendo, nada mais deve ser pago.
Razão tinha a revista "Time" em seus inícios: da primeira a última página não havia uma única matéria assinada. Mas a própria empresa julgou que os leitores não gostavam disso, a revista parecia escrita por um Deus invisível, distante, inexistente.
Passou a dar crédito às suas matérias. De um lado, lucrou: tornou seus profissionais mais responsáveis. De outro perdeu: ficou a serviço de causas e pessoas nem sempre recomendáveis.” Carlos Heitor Cony, em artigo de opinião publicado na Folha de S. Paulo, Brasil, em 16/08/2013

sexta-feira, 30 de agosto de 2013

Não é apenas um poema de amor

Projecto
Desta vez vou escrever-te um poema que vai ser
um poema de amor, mas que não é apenas um poema de amor. O
amor, com efeito, é algo que não cabe num poema; pelo contrário,
o poema é que pode caber no amor, sobretudo quando te abraço, e
sinto os teus cabelos na boca, agora que a tua voz me corre pelos
ouvidos como, num dia de verão, a água fresca corre pela
garganta. A isto, em retórica, chama-se uma comparação; e pergunto
o que é que o amor tem a ver com a retórica, ou por que é
que o teu corpo se teme de transformar numa metáfora - rosa,
lírio, taça, qualquer objecto que tenha, na sua essência, um
elemento que me possa levar até ele, como se fosse preciso, para te tocar,
substituir-te por uma outra imagem, ver em ti o que não és,
nem tens de ser, ou ainda transformar-te num lugar comum, que
é aquilo em que, quase sempre, acabam os poemas de amor. Assim,
este poema de amor é, mais do que um poema de amor, um
exercício para escrever um poema de amor - mas um poema de amor
a sério, sem comparações nem metáforas, só contigo, com o
teu corpo, com a tua voz, com os teus cabelos, com aquilo que é
real, e não precisa de sair da realidade para se tornar objecto de
um poema de amor em que o amor, finalmente, deixa de ser
o objecto único do poema, que se preocupa acima de tudo com
a retórica, as imagens, o equilíbrio das formas. Mas, pergunto, não
é o teu corpo uma flor? Não é a tua boca uma rosa? Não são lírios os teus
seios? Tudo, então, se transforma: e o que tenho nas mãos é uma imagem,
a pura metáfora da vida, a abstracta metamorfose das emoções. O
resto, meu amor, és tu - e é por isso que o poema de amor que te
escrevo não é, finalmente, um poema de amor.
Nuno Júdice,in «Poesia Reunida 1967-2000», prefácio de Teresa Almeida, Dom Quixote, Lisboa, 2000

A casa da língua portuguesa

A Assírio & Alvim publica, hoje, 30 de Agosto a obra de Maria Velho da Costa «Casas Pardas». Este livro cartografa Lisboa no final dos anos sessenta, em plena agonia do regime salazarista: crise política e social, rumores das guerras coloniais e dos tumultos estudantis.

"Mas «Casas Pardas» é acima de tudo a casa da língua portuguesa e dos seus vários linguajares, aqui em jubiloso processo de miscigenação com outras falas do mundo, através do grande virtuosismo da escrita de Maria Velho da Costa.
Deste romance fala-nos também Mário de Carvalho: «Casas Pardas é um maravilhoso torvelinho de linguagens, uma evocação concreta e exacta de comportamentos sociais de várias classes no final do fascismo, uma revisitação dos lugares da literatura e da poesia (também nas suas vertentes populares), uma polifonia de falas genialmente captadas, uma subversão endiabrada dos processos narrativos e uma prática de jogos de linguagem que lembram o barroco, mas também os grandes efabuladores do século XVIII, como Fielding ou Sterne. A ironia e a réplica acerada pairam em todo o romance, repartido em várias "casas", pluralidade de focos que centram uma escrita em que passado e presente, a concretude do quotidiano mais trivial, mas também a citação literária de vários graus, ou mesmo a toada infantil, a reflexão às vezes iluminada, de envolto com o paradoxo e a paródia, nos desafiam página a página.»
«Casas Pardas» esteve recentemente em cena no Teatro Nacional de São João, no Porto, com adaptação e dramaturgia de Luísa Costa Gomes e encenação de Nuno Carinhas.
Prémio Camões 2002, Maria Velho da Costa (n. 1938) é licenciada em Filologia Germânica pela Universidade de Lisboa. Foi leitora do King's College em Londres, presidente da Associação Portuguesa de Escritores e adida cultural em Cabo Verde. Ficcionista, ensaísta e dramaturga é co-autora com Maria Isabel Barreno e Maria Teresa Horta de Novas Cartas Portuguesas.A sua escrita situa-se numa linha de experimentalismo linguístico que viria a renovar a literatura portuguesa nos anos 60 e, como afirmou Eduardo Lourenço, é «de um virtuosismo sem exemplo entre nós». DDigital

quinta-feira, 29 de agosto de 2013

O sonho

Martin Luther King revelou  que tinha um sonho, durante uma  marcha pelo igualdade dos direitos cívicos, quando discursava nos degraus do Lincoln Memorial, em Washington, EUA. Passaram  50 anos. E o sonho realizou-se . Os Estados Unidos têm o primeiro Presidente negro que comemorou  essa data,  no mesmo local onde foi proferido o  discurso de Luther King. Para honrar o «sonho» de King, Obama disse que muito há ainda a fazer.Recordou que foi devido a essa e a outras intervenções posteriores que a América mudou . Acrescentou que a luta iniciada por King ainda está por ser vencida: «A diferença entre raças aumentou, o desemprego dos negros é o dobro dos brancos, a igualdade económica é a nossa principal tarefa inacabada.» . E , em jeito de novo desafio de esperança, concluiu: «América, eu sei que a estrada vai ser longa, os objectivos da igualdade continuam por cumprir, mas nós podemos lá chegar».

Não foi só Luther King a sonhar . Muitos outros sonharam e lutaram por um mundo diferente. 
A História relata algumas  das inúmeras  mudanças por que passaram os povos. Os EUA sofreram de muito radicalismo social  marcado por uma  segregação racial feroz que atrofiou e flagelou gerações de famílias negras.
O filme ‘O Mordomo’, que tem estreia marcada para Setembro, retrata, de forma singular, o pesadelo do racismo.

"O filme ‘O Mordomo’, que tem banda sonora original assinada pelo músico português Rodrigo Leão e um elenco recheado de nomes sonantes de Hollywood, chega às salas de cinema portuguesas já no próximo dia 5 de Setembro.
O realizador Lee Daniels, conhecido apreciador do compositor português, escolheu Rodrigo Leão para assinar a banda sonora de ‘O Mordomo’, de entre nomes reputados do panorama internacional.
Rodrigo Leão revela que desde logo sentiu “uma identificação grande com este filme; primeiro com o argumento e depois com a realização e com a representação de actores que admiro muito”. Um mês após o desafio lhe ter sido lançado, o músico já estava a construir a banda sonora. Do seu repertório, habitualmente descrito como ‘cinematográfico’, fazem parte algumas bandas sonoras para cinema.
Com realização de Lee Daniels, celebrizado pela sua nomeação para os Óscares de 2009 com ‘Precious’, o filme ‘O Mordomo’ conta com Forest Whitaker no papel de um mordomo da Casa Branca que serviu sete presidentes dos EUA. A Whitaker junta-se um rol de nomes sonantes de Hollywood, como Oprah Winfrey, John Cusack, Jane Fonda, Cuba Gooding Jr, Terrence Howard, Lenny Kravitz, James Marsden, David Oyelowo, Vanessa Redgrave, Alan Rickman, Liev Schreiber, Robin Williams e Mariah Carey.
‘O Mordomo’ foi o filme mais visto no fim de semana de estreia nos Estados Unidos e Canadá, com 18,7 milhões de euros de receita de bilheteira.
Após surpreender em 2009 com uma abordagem incisiva no filme ‘Precious’, Lee Daniels volta a colocar o racismo e o tumultuoso cenário político do século XX nos EUA no centro da de toda a trama. ‘O Mordomo’ conta a história de Cecil Gaines, uma personagem inspirada na história verídica de Eugene Allen, que foi mordomo da Casa Branca durante mais de 30 anos. Este afro-americano viu a sua história contada num artigo do Washington Post, publicado em 2008 e da autoria de Wil Haygood, artigo que viria a inspirar Lee Daniels para a construção desta narrativa.
O filme inicia-se em 1924, com o jovem Cecil Gaines a viver num Sul ferozmente segregado e confrontado com a tirania dos preconceitos raciais. Depois de trabalhar num hotel durante anos, Cecil é descoberto por um funcionário da Casa Branca, que o conduz à oportunidade da sua vida: um emprego como mordomo na casa mais famosa de Washington. É então que Cecil, durante sete administrações presidenciais, se torna testemunha em primeira mão de algumas das maiores mudanças na história mundial, enquanto acompanha a luta pela igualdade e pelos direitos civis.
Sinopse “O Mordomo
O MORDOMO, baseado no argumento de Danny Strong e do realizador nomeado a um Oscar® da Academia, Lee Daniels (Precious), é inspirado no artigo de Wil Haygood publicado no Washington Post sobre um Afro-Americano que serviu como mordomo (Forest Whitaker) a sete Presidentes na Casa Branca, por mais de trinta anos. A partir deste ponto de vista único, O MORDOMO traça as mudanças dramáticas que abalaram a sociedade americana, desde o movimento pelos Direitos Civis, até à Guerra do Vietname, e a forma como essas mudanças afectaram a vida e a família deste homem."

quarta-feira, 28 de agosto de 2013

Notícias da Cultura

"O novo romance de Pepetela, "O Tímido e as Mulheres", é publicado no dia 10 de Setembro, anunciou a editora, que projecta lançar igualmente uma antologia de Natália Correia e a integral dos contos de António Tabucchi. Sobre o livro do angolano Pepetela, a editora afirma que a narrativa decorre na Luanda contemporânea, e tem como protagonistas Heitor, Mariza e Lucrécio.
"Heitor" é "um escritor em início de carreira, o tímido", Marisa é a "responsável por um programa de rádio de grande audiência, que a todos encanta e seduz", e o seu marido, Lucrécio, "uma mente brilhante aprisionada numa cadeira de rodas", lê-se no comunicado da editora, as Publicações D. Quixote.
"O tímido e as mulheres" sucede a "A Sul. O Sombreiro", romance de Pepetela editado em 2011.
Pepetela é o pseudónimo literário de Artur Carlos Maurício Pestana dos Santos, nascido em Benguela, no sul de Angola, há 71 anos.
Em Setembro também, pelas Publicações D. Quixote, sairá, no dia 17, em dois volumes, todos os contos de António Tabucchi, autor falecido no ano passado, em Lisboa." Lusa,DN

Festival Todos 

"O quinto Festival Todos, dedicado à diversidade étnica e cultural de Lisboa, decorrerá em Setembro no bairro que vai de São Bento ao Poço dos Negros, com uma programação marcada pelo "silêncio" e pela "palavra", anunciou a organização
O festival entrará na quinta edição, de 12 a 15 de Setembro, com uma programação de teatro, música, dança, fotografia, gastronomia em vários espaços daquele bairro lisboeta.
"Encontrámos [naquele bairro] um conjunto de realidades contrastantes que não estão ao alcance de um primeiro passeio", assume a organização no texto de apresentação do festival, referindo-se à presença de comunidades de várias nacionalidades.
O programa do festival Todos passará, por exemplo, pelo espaço B.Leza e pela discoteca Lontra, pela Assembleia da República, pela Igreja de Santa Catarina e pelo Liceu Passos Manuel.
"Na convivência aparentemente impossível destes mundos que, em certos casos, surgem como guetos dentro do bairro, encontrámos duas palavras que atravessam várias das nossas propostas: Silêncio e Palavra", sustentam.
Da programação até agora divulgada fazem parte uma actuação da Orquestra Bollywood Masala num parque de estacionamento na zona, um concerto da Orquestra Todos com os músicos do B.Leza e com Aline Frazão e Eneida Marta, e a peça de teatro "Desmesura", de Hélia Correia, encenada por João Grosso no Palácio do Correio Velho" Lusa,DN
Criação de Centros culturais no Brasil e em Portugal
O secretário de Estado da Cultura, Jorge Barreto Xavier, reuniu-se em São Paulo, Brasil, com a titular brasileira da pasta da Cultura, a ministra Marta Suplicy, para discutir a criação de centros culturais nos dois países.
"A criação de um centro cultural português no Brasil e de um centro cultural brasileiro em Portugal" são pontos da agenda do encontro que hoje se realiza entre Jorge Barreto Xavier e a titular da pasta da Cultura, no Brasil, de acordo com o comunicado da secretaria de Estado da Cultura, enviado à Lusa.
"Os dois governantes vão reunir-se com empresários portugueses e brasileiros, com o objectivo de obter apoio para os projectos e programação dos centros", lê-se no mesmo comunicado.
Segundo o mesmo documento, esta foi uma ideia da ministra da Cultura do Brasil, Marta Suplicy, quando, em Junho passado, esteve em Lisboa.
Para Barreto Xavier, é importante definir com clareza os "objectivos, a missão e os planos de atividades" destes dois centros culturais, cuja criação é entendida como "uma questão de Estado e, como tal, deve ser tratada, para benefício mútuo", lê-se no mesmo texto.
Outra questão que será debatida nestes encontros é "o intercâmbio da produção audiovisual entre os dois países", tendo a ministra Marta Suplicy manifestado já o "interesse em encontrar um sistema que favoreça as coproduções luso-brasileiras e o aumento da difusão de obras portuguesas nas televisões brasileiras".DN

Semanalmente, poderá encontrar em www.cnc.pt , na secção " A VIDA DOS LIVROS", a escolha de um livro por Guilherme d’Oliveira Martins, Presidente do Centro Nacional de Cultura

A VIDA DOS LIVROS

de 26 de Agosto a 1 de Setembro de 2013
"Em memória de Urbano Tavares Rodrigues, lembramos hoje o algarvio «Agosto Azul» (1904) de Manuel Teixeira Gomes, um dos grandes escritores da nossa língua, que o romancista agora desaparecido tão bem estudou, dando-nos a possibilidade de conhecer melhor o nosso sul. «Eu era novo então, forte, petulante, fulgurando a miúdo em súbitas exultações, na plena fase de herói, orgulhoso, dominando a vida e gastando-a com fausto, perdulário sibarita que a sorvia, sorrindo, nas aparências luxuriantes e a sugava até à essência saborosa ou amarga...». Recordamos também a «Corografia do Reino do Algarve», escrita no século XVI por Frei João de S. José."
Guilherme d’Oliveira Martins

terça-feira, 27 de agosto de 2013

Um deslumbramento permanente

3
"Já nessa época tomava o pequeno almoço às sete da manhã e era sempre a primeira a chegar à sala. Os pais diziam que ela era o galo lá de casa, pois punha em movimento a criadagem logo de manhã.
Sentava-se na mesa, no lugar que lhe fora destinado desde que era gente, e enquanto não lhe colocassem o leite à frente não parava de o reclamar. Olhava à sua volta e as paredes enormes da sala de pé direito muito alto pareciam protegê-la. A madeira e a pedra que as revestiam transmitiam-lhe uma refinada solidez que ao longo da vida sempre a aquietou. Sentia-se bem naquela sala, mesmo estando sozinha na mesa.
O silêncio da casa era um borbulhar surdo de ruídos melodiosos, eufónicos. Começava na cozinha com os passos abafados da cozinheira até ao roçar da louça na bandeja, estendia-se depois aos toques do relógio de pé do corredor que compassadamente se iam fazendo ouvir e então vinham, em correria deslumbrante, os sons do jardim, dos pássaros imensos, das folhas das árvores, das abelhas em constante laboração, dos cães latindo baixinho, das vozes arrastadas dos trabalhadores anunciando a apanha dos frutos, a recolha das verduras, a passagem dos animais … Enfim,  eram tantos os  sons que entravam magicamente pelas janelas da sala que  lhe pareciam ser o apelo  da vida rodopiando à sua volta. E assim se sentia alegre e feliz logo bem cedo, de manhã.
A mãe só aparecia às sete e meia seguida sucessivamente dos irmãos. A essa hora já estava a respirar cá fora, reconhecendo o seu mundo.
Corria, então, para a garagem seguida pelos cães e apanhava a bicicleta e lá ia directa ao rio que atravessava a quinta. Pelo caminho, ia olhando cada árvore pois conhecia o nome de todas e a todas ia saudando numa interminável e quase ininteligível lengalenga que só ela e as árvores reconheciam. Os cães a seu lado iam ladrando com carinho como que a anunciar que ela estava a passar.
A luz ia penetrando através do arvoredo que se alterava conforme se  aproximava do rio. Aqui, as árvores eram mais espessas, mais imponentes no seu porte e apesar de tão grandiosas acabavam abruptamente numa vasta clareira verde onde inesperadamente surgia o rio.
E a alegria, o prazer e aquele bater descompassado do coração tomavam conta dela. O rio era a sua paixão. Todos os dias assim que o avistava, emergia nela uma plêiade de sentimentos num turbilhão descontrolado que tinha de parar e obrigar-se a arfar o ar com sofreguidão para não morrer logo ali.
 E era assim que imaginara a morte! Deveria ser o transbordar de tanta alegria que entupia a respiração, deixando o coração sem ar. Quem lhe dissera fora a Benta, num dia que a acompanhara ao rio.
“-Ai menina –dissera ela – respire, porque se não meter ar nesse coração, morre já de tanta alegria.”
Saltava da bicicleta e lançava-se em correrias pela margem do rio até o cansaço tomar conta dela. Então, estendia-se na erva e começava a olhar o céu e a chamar os pássaros pelos nomes, reconhecendo o chilrear de cada um antes mesmo de o avistar.
Antero, o filho do caseiro, tinha sido o seu mestre, embora fosse mais novo que ela um ano. Ele era o seu companheiro mais fiel e inteligente. Sabia de tudo da quinta e do rio.
Todas as manhãs, ele vinha para o rio, mas só depois da ordenha das vacas, tarefa que realizava com o pai. Assim, era ela sempre a primeira a chegar.
Quando ele aparecia, trazia o sol nos cabelos e a luz nos olhos. Todo ele brilhava e esse brilho encantava-a.
Ficavam, então, horas a fio reconhecendo a mata para além do rio ou descobrindo novas plantas que germinavam pela quinta. Por vezes, ele desenterrava a jangada de madeira que encontraram num recanto escondido da quinta e lá iam rio abaixo encenando descobertas que retiravam dos livros de aventuras que o pai lhe oferecia.
Era ele que lhe ensinava o nome das flores, das árvores, dos frutos, dos pássaros e lhe traduzia os sinais que a natureza apresentava para anunciar a mudança das estações.
Assim, passou a reconhecer o arco-íris, as falsas marés do rio e até o prenúncio da chuva e da trovoada.
A Primavera era a sua estação preferida. Quando vinha a casa, nas férias da Páscoa, era um deslumbramento permanente.
Antero tinha sempre um novo segredo que ia demoradamente revelando. Recordava-se da ninhada de coelhos numa toca recôndita junto à nascente que abastecia a quinta. Da coruja que ficara presa no galinheiro, do cordeirinho quase um anjo de tão branco, enfeitado com um grande laçarote pastando no jardim à sua espera e de tantos e tantos outros.
Nessa altura, as mimosas e as  túlipas enchiam a quinta de cor. O amarelo salpicando a verdura e o contraste colorido dos canteiros cheios de túlipas variadas eram uma visão que a emocionava logo à chegada.
Os cheiros frescos da terra espalhavam-se no ar e aí ela reconhecia o seu lugar. Era este  o cheiro que Antero trazia com ele.
Que saudade tinha de Antero quando estava longe. Que saudade teria sempre dele.
Os irmãos eram mais novos e ficavam em casa, entregues aos cuidados da  mãe coadjuvada pela preceptora. Naquele tempo, todos eles faziam os primeiros anos de escolaridade em casa. Só mais tarde iam  para os colégios em regime de internato a fim de completarem os restantes graus de ensino.
Havia um recinto junto à casa que funcionava como um parque de recreio. Tinha baloiços de  madeira  suspensos por cordas largas e resistentes, escorregas e um pequeno carrossel.  Existia também um cesto para lançamento de  bolas .
Todas as manhãs,  os  irmãos brincavam neste recinto sob a atenta vigilância da mãe e  da Augusta, a criada que os vira nascer, enquanto ela corria pela quinta na companhia de Antero.
Na parte da tarde, antes da merenda havia  a “hora da leitura”. A essa nunca faltava, nem mesmo quando crescera e os contos infantis foram  sendo substituídos pelas aventuras inéditas de Jules Verne, pelo romance histórico  de Walter Scott ou de Alexandre Dumas,  pelas  Lendas e Narrativas de Alexandre Herculano ou  até pelo acervo bucólico  de Júlio Dinis.
Antero fora sempre convidado para assistir. Lá aparecia de roupa lavada e engomada e sentando-se  a seu lado, na mesa redonda , fechava os olhos quando  a  preceptora iniciava a leitura e a sua voz se ia cambiando em matizes diferentes e expressivos para dar forma ora ao narrador, ora  a uma personagem, ora a outra e ainda outra que fulgurantemente ia alternando e que de tão diversas  e de  bem engendradas  o  transportavam  para lugares  longínquos e fantásticos onde protagonizava   peripécias surpreendentes.
E assim nascera o gosto pela leitura que o acompanharia por toda a vida.
Quando a merenda chegava, Antero bebia sumo e comia o bolo de cenoura que a Benta fazia quase diariamente. Para ele tinham acabado as tarefas de ajuda ao Pai na quinta. Ficava então pela casa e juntos iam descobrindo o segredo dos livros.
A biblioteca era um lugar mágico. As paredes eram apenas livros já que eram eles que ressaltavam em tantas estantes enfileiradas e repletas até ao cimo quer por grandes exemplares, quer por pequenos. As enciclopédias distribuíam-se pelo lado direito da sala junto à mesa de entrada. Seguiam-se os dicionários e só depois se iam enfileirando todos os outros livros. Descobri-los passou a ser uma campanha diária.
E para eles  o mundo girava entre estas duas grandes campanhas: os livros e a Quinta." Maria José  Vieira de Sousa, in " O Lugar, memórias de um romance", Junho de 2008

segunda-feira, 26 de agosto de 2013

Votar nas cadeiras vazias

O partido da cadeira vazia
Por Anselmo Borges
"Todos somos animais políticos e, consequentemente, responsáveis pela condução da pólis. Estou de acordo com o Papa Francisco, com a observação de que, embora ele se refira só aos cristãos, o aviso é para todos: "Envolver-se na política é uma obrigação para o cristão. Enquanto cristãos não podemos lavar as mãos como Pilatos. Temos de nos meter na política, porque a política é uma das formas mais altas da caridade, pois procura o bem comum. Os leigos cristãos devem trabalhar na política. A política está muito suja, mas eu pergunto: "Está suja porquê?" Porque os cristãos não se meteram nela com espírito evangélico? É uma pergunta que eu faço. É fácil dizer que a culpa é dos outros... Mas eu o que é que faço? Isto é um dever! Trabalhar para o bem comum é um dever para um cristão."
Tenho escrito aqui permanentemente que considero a actividade política - também no sentido mais estrito da governação - uma actividade nobre, das mais nobres. Quando isso acontece no quadro do trabalho para o bem comum, antepondo o interesse comum aos interesses próprios e dos partidos.
Mas, quando observo a corrida vertiginosa e tão interessada de tantos a candidatos para cargos políticos em disputa, tenho de confessar, sinceramente, que não acredito que a maior parte o faça generosamente, por amor à causa pública, ao serviço do bem comum. Que interesses, que vantagens, que compadrios, que cumplicidades, que privilégios, que benesses, que vaidades os movem?
O que é facto é que uma enorme maioria dos portugueses está desiludida com os políticos. Presidência da República, Assembleia da República, Governo, Oposição, Partidos, Tribunais encontram a tristeza e a desconfiança dos portugueses. Há a percepção vaga de que Governo e Oposição ocultam sempre qualquer coisa.
Tudo isto vem de muito longe. Desde há muito tempo que o privilégio e a irresponsabilidade se apoderaram do comando. Os mais atentos e reflexivos perguntam a si próprios como se chegou até aqui, à situação de desamparo e de confusão generalizada. É evidente que o País deu um salto positivo imenso - é ignorância ou desonestidade pura querer comparar a situação actual com o tempo de Salazar -, mas a incompetência e a irresponsabilidade de quem tinha mais obrigações na liderança foram-nos pondo no caminho de um futuro dramaticamente imprevisível e sem alternativas.
Sobre responsabilidade, permita-se-me, a título de exemplo, que volte aos considerandos do Tribunal da Relação do Porto sobre o trabalhador alcoolizado. Pode ler-se no acórdão: "Não há nenhuma exigência especial que faça com que o trabalho não possa ser realizado com o trabalhador a pensar no que quiser, com ar mais satisfeito ou carrancudo, mais lúcido ou, pelo contrário, um pouco tonto." E continuam os magistrados: "Note-se que, com álcool, o trabalhador pode esquecer as agruras da vida e empenhar-se muito mais a lançar frigoríficos sobre camiões" (note-se que se tratava de um empregado da recolha do lixo), "e por isso, na alegria da imensa diversidade da vida, o público servido até pode achar que aquele trabalhador alegre é muito produtivo e um excelente e rápido removedor de electrodomésticos". Pense-se: os professores, os médicos, os ministros, os bispos, os juízes... também terão as suas agruras da vida e julgo que, nas instituições em que trabalham, não existirá nenhuma norma a proibir o consumo de álcool; portanto... Os considerandos são de uma insensatez inqualificável.
Reforme-se o Estado e a política, a começar por cima. Corte-se nos privilégios de tantos, incluindo juízes e ex-presidentes da República, reduza-se o excesso de mordomias, fundações, empresas municipais..., siga-se "a navalha de Ockam": "Não multiplicar os entes sem necessidade."
E haveria um teste poderoso, que eu sei que é perigoso e não aplicável. Mesmo assim, de vez em quando, surge a tentação. Nas eleições, os votos em branco traduzir-se-iam, segundo a lei da proporção, em cadeiras vazias no Parlamento. Seria o "partido da cadeira vazia". Poupava-se dinheiro e retórica de sofistas, inútil e manhosa." Anselmo Borges em Artigo de Opinião , publicado no DN, em 10/08/13

domingo, 25 de agosto de 2013

Ao Domingo Há Música

Canção
A música tem olhos fulgurantes
movendo-se à volta do fogo.
Se és visto por eles tornas-te canto, 
tu que és, como tudo é, canto. 

Afasta-te do coração,
a tua vida canta sob a música, 
não acordes a mortal infância, 
foge do que sabes, porque não o sabes.
  
Talvez sejas apenas o sonho 
de um deus não mais desperto que tu.
Ouve-o dentro de ti, ao deus, 
cantando luminosamente à tua volta.
Manuel Pina , in " Todas as palavras, poesia reunida 1974-2011", Ed. Assírio&Alvim


Todos os Verões,  um grande evento  cultural, os BBC Proms, apresenta durante oito semanas, entre Julho e Setembro,   uma fértil  variedade de espectáculos que tem sempre  a adesão de um enorme público. 
Em 2012 , no  Royal Albert Hall, em Londres,  Sierra Boggess e Julian Ovenden interpretaram " The Balcony Scene" do famoso musical de  Leonard Bernstein, "West Side Story". Foram acompanhados pela orquestra do maestro John Wilson, sob a sua  própria direcção. 
Ouvi-los, cantando luminosamente, é reinventar, neste  último Domingo de Agosto,  um extraordinário e imperdível  momento musical.

sábado, 24 de agosto de 2013

Uma batata para Luis XVI

Le Point.fr- Publié le 23/08/2012 à 23:59- Modifié le 24/08/2013 à 00:00
"L'agronome veut remercier le roi de lui avoir prêté un champ de manoeuvre à Neuilly pour y planter le légume anti-famine jusque-là méprisé des Français.
"Ils n'ont pas de pain ? Qu'ils mangent de la brioche !" Tout le monde sait, aujourd'hui, que Marie-Antoinette n'a jamais prononcé cette phrase inventée par Rousseau. En revanche, scoop mondial, nous pouvons vous révéler que le 24 août 1786, recevant en compagnie de son époux Antoine Parmentier, la reine pense très fort : "Ils n'ont pas de pain ? Qu'ils mangent de la patate !" Car le couple royal n'hésite pas à mouiller sa chemise - de dentelle - pour aider l'agronome à faire la promotion de la pomme de terre auprès des Français très méfiants.
Ce jour-là, le pharmacien-agronome offre à Louis XVI et à Marie-Antoinette les premières fleurs de pomme de terre cueillies dans le champ mis à sa disposition par le roi de France, dans la plaine des Sablons, à Neuilly. Les flashes crépitent. Jean-Pierre Pernaut fait un direct sur TF1. Le roi est d'excellente humeur. "Donnez-moi la main et embrassez la reine !" lance-t-il à Parmentier, qui n'en demandait pas tant. Sur ce, Louis XVI détache une fleur pour la mettre à sa boutonnière, et en fixe une autre sur le chapeau de Marie-Antoinette. Madame de Fontenay en est verte de jalousie...
Le jour même, on sert à la table royale un plat de "parmentières". Louis XVI possède peut-être tous les défauts de la terre, mais il a au moins la qualité de croire en la science. Avant beaucoup d'autres, il a compris la place capitale que peut prendre la pomme de terre dans l'alimentation en sauvant ses sujets des famines récurrentes. Et dire que pour le remercier, les Français lui couperont la tête. "Comment ne pas en avoir gros sur la patate après ça..." s'exclame Laurent Ruquier
La pomme de terre aux cochons
À la fin du XVIIIe siècle, près de 250 ans après son introduction en Europe, la pomme de terre n'a toujours pas bonne presse en France. Les paysans regardent d'un oeil torve cette plante qui s'épanouit sous terre, dans le domaine du diable, et pas sous l'oeil de Dieu comme les céréales. Sans compter qu'elle appartient à une famille de plantes légèrement toxiques. En Europe, ce sont les Irlandais qui l'adoptent les premiers à grande échelle. En fait, ils n'ont pas le choix. C'est ça ou crever de faim, car les Anglais, très fair-play comme d'habitude, accaparent tout le blé irlandais. Peu à peu, la plante conquiert l'Autriche, l'Allemagne, la Suisse, et même l'est de la France
À la fin du XVIe siècle, le célèbre agronome Olivier de Serres la cultive dans le Vivarais (aujourd'hui, l'Ardèche). Puis, elle gagne le Lyonnais, le Dauphiné et la Franche-Comté. Mais les paysans la réservent exclusivement à leurs cochons, l'assimilant à une herbe de sorcières. Ils la croient capable de transmettre la lèpre. Et l'Église, qui se désespère des grandes disettes, pensez-vous qu'elle incite à sa culture ? Pas du tout. Dieu n'aimerait-il pas les frites ? Ce n'est pas le problème, c'est plutôt une simple question de pognon : la patate rapporte une moindre dîme à l'Église ! Aussi, les curés n'hésitent pas à la débiner, rappelant dans leurs prêches que la pomme de terre n'est pas mentionnée dans la Bible.
Levée de l'interdiction à la consommation
Pharmacien des armées, Antoine Parmentier découvre la pomme de terre lors de son emprisonnement en Westphalie durant la guerre de Sept Ans (1756-1763). En effet, les sympathiques Allemands nourrissent alors leurs prisonniers français avec la même bouillie de pommes de terre qu'ils servent à leurs cochons. C'est le meilleur service qu'ils pouvaient leur rendre, car ceux-ci mangent à s'en faire péter la sous-ventrière.
En 1771, quand l'Académie des sciences de Besançon lance un concours intitulé : "Quels sont les végétaux qui pourraient être substitués en cas de disette à ceux que l'on emploie communément et quelle en devrait être la préparation ?" Parmentier s'empresse de remettre un mémoire pour souligner les vertus de la pomme de terre. Il gagne le concours haut la main en préconisant la fabrication de pains de pomme de terre. En 1772, juste après sa nomination comme apothicaire en chef de l'hôtel des Invalides, la Faculté de médecine de Paris déclare la pomme de terre sans danger, ce qui fait lever l'interdiction du Parlement de Paris qui frappait sa consommation depuis 1748.
Champs gardés par des soldats
Parmentier se met à cultiver la patate sur un terrain loué à des religieuses près des Invalides. Il organise des dîners où sont invités des scientifiques, tels Benjamin Franklin et Lavoisier, à qui il propose une vingtaine de plats à base des tubercules. Il publie même un livre de recettes en 1777 intitulé "Avis aux bonnes ménagères des villes et des campagnes sur la meilleure manière de faire leur pain". Mais cela ne suffit pas à convaincre les Français de mettre la patate sur leur table et les paysans de la cultiver. En 1785, expulsé par les religieuses, Parmentier cherche un nouveau terrain pour planter ses tubercules. Louis XVI, qui soutient les efforts des agronomes en faveur de la pomme de terre, lui octroie deux arpents de terre dans la plaine des Sablons, à Neuilly, un site autrefois utilisé comme champ de manoeuvre par les troupes. Le terrain est pauvre, mais cela n'est pas gênant pour la culture des pommes de terre. C'est alors que Parmentier a une idée de génie : pour faire croire que ses "parmentières" sont un mets de choix réservé à la table du roi et des plus hauts seigneurs, il les fait garder par des soldats durant le jour. Seulement, il prend soin de supprimer toute garde pendant la nuit. Du coup, de petits voleurs s'introduisent dans le champ pour voler les pommes de terre si précieuses. C'est ainsi que, peu à peu, la pomme de terre acquiert ses lettres de noblesse. Lors de la première floraison, Parmentier offre donc un bouquet des magnifiques fleurs blanches au roi et à la reine. Lors de la Révolution, Parmentier est d'abord regardé d'un oeil suspicieux en raison du soutien de Louis XVI. Peu à peu, il regagne la faveur du peuple et lance une deuxième révolution, celle qui porte la pomme de terre précieuse sur la table des Français." Le Point 

sexta-feira, 23 de agosto de 2013

Um estremecimento de azul

Perto do centro

Este dia, este momento.
O tempo único e imóvel atravessando-nos aos dois 
como a uma superfície incrédula.
Eu e tu, antes e depois : tu, a Mesma.
E, no entanto, pouco pode o amor alcançar
senão a minha mão na tua mão.
O meu desejo é maior do que eu,
e eu maior do que o meu desejo maior do que eu.
Também o tempo se move imovelmente no tempo,
a esperança na incerteza,
o desejo na convicção da eternidade.
O amor é só um estremecimento de azul.
Perto do centro,
onde a vida e a morte (ambas desprezam
aqueles que se amam) riem.
Manuel António Pina ,in " Atropelamento e Fuga" 2001,  "Todas as Palavras, poesia reunida, 1974-2011", Ed. Assírio & Alvim

quinta-feira, 22 de agosto de 2013

Música de todos tempos

A música, que resiste ao tempo, atinge a intemporalidade . Muita preencheu  momentos da nossa vida a que sempre se colará. 
Hoje , 22 de Agosto, celebra-se o 151º aniversário de Debussy  que deixou uma obra singular e inovadora . Recordá-lo com  outro tipo de composições mais ligeiras é homenagear alguma da música de todos os tempos.
Eis "Rêverie " de Debussy .



"The first time ever I saw your face" do Álbum de Roberta Flack de 1969, uma canção de muitas interpretações.


"Down in my own tears" na voz maior de Ray Charles, 1960


Maria Guinot  em " Silêncio e tanta gente ", 1984.

quarta-feira, 21 de agosto de 2013

A imagem figurativa na Arte

Pintura de Joachín Sorolla
A magia da figura
Por Ferreira Gullar
“Já no começo do começo, a arte tinha duas faces: uma figurativa e outra não figurativa ou decorativa, sendo que a primeira expressava nosso fascínio pela imagem da coisa real que, para o homem do paleolítico, não era simples imagem e, sim, um outro modo de ela existir.
Tanto pensava assim que, ao desenhar um bisão na parede da caverna, crava-o de setas, certo de que, com isso, magicamente, atingiria o bisão real e facilitaria caçá-lo.
Naturalmente, com a evolução do conhecimento objetivo da realidade, essa identificação da imagem com o ser real se desfez; não obstante, até hoje aquele fascínio se mantém, tendo atravessado as mais diversas civilizações e conceitos de realidade e cultura.
É isso que explica a presença da expressão figurativa nas pinturas murais, nos relevos e nas esculturas, representando o mundo imaginário dos mitos e dos deuses.
Já bem mais perto de nós, no renascimento, a representação da figura humana tenta ultrapassar a fantasia para captar a realidade mesma em sua materialidade. Disso resultou, na verdade, outro tipo de fantasia, pelo simples fato de que a representação da coisa não é a coisa.
Data daí o que se entende por arte da pintura no mundo ocidental e que ampliou a representação das formas e coisas para criar cenas, paisagens e representação de fatos mitológicos, históricos e cotidianos.
Nesse processo, elaborou-se uma linguagem que, além de representar seres e cenas, criou uma espécie de espaço fictício, que emprestou tridimensionalidade à superfície bidimensional da tela.
Esse universo pictórico é implodido no começo do século 20, quando, ao desintegrar-se a linguagem figurativa, ocorreu uma descoberta revolucionária: a de que todas as formas têm expressão, mesmo que nada representem; por exemplo, um pedaço de papel amassado é uma expressão e, conforme a cor que tenha, será uma expressão diferente.
Essa descoberta teve consequências importantes no campo das artes plásticas. Dela advieram as tendências expressionistas, cubistas e, como consequência extrema, a pintura tachista que, como diz o nome, é feita de manchas.
De todo esse processo -que descrevo de maneira simplificada- surgiria o que se conhece como arte conceitual ou arte contemporânea, cuja característica principal é usar as próprias coisas, não a imagem delas, como expressão.
Claro que as coisas -seja uma pessoa, um animal, um objeto- são em si mesmos expressões. Isso vale tanto para um objeto natural -um animal, uma pedra- como para um produto industrial. Tal é o caso do famoso urinol que Marcel Duchamp enviou para a exposição de Nova York, em 1917, tendo-lhe posto um nome ("Fontaine") e uma assinatura fictícia (R. Mutt).
Sucede que, por isso mesmo, essa "obra" não tem a magia do objeto de arte ou, se a tem, está oculta por sua condição natural ou por sua finalidade utilitária que, no exemplo citado, nada tem de mágico ou poético, muito pelo contrário. Para lhe devolver o significado mágico, há que deslocá-lo da situação habitual, da sua funcionalidade. Quem descobriu isso foi Isidore Ducasse, Conde de Lautréamont, ao escrever em "Les Chants de Maldoror", o seguinte: "belo como o encontro fortuito de uma máquina de costura ou um guarda-chuva sobre uma mesa de necrotério".
Claro, se ponho um objeto qualquer numa situação inusitada, torno-o "desconhecido" e, por isso, mostro-lhe a forma que se apresenta estranha. Sucede que esse é um efeito circunstancial e fugaz, já que, em seguida, a surpresa se desfaz e o guarda-chuva volta a ser mero guarda-chuva, como o urinol de Duchamp de há muito voltou a ser mero urinol, enquanto que a magia da imagem pictórica é permanente, porque inata, essencial.
Uma natureza morta de Morandi, por exemplo, mantém essa magia, esteja o quadro onde estiver. Transformadas em pintura, suas garrafas jamais voltarão a ser meras garrafas.
Enfim, só nos resta constatar que a figura quase que desapareceu da linguagem da arte, ou porque virou mancha ou porque foi substituída pela própria coisa. Não obstante, a imagem figurativa, que nasceu com o ser humano nas cavernas, não morreu: renasceu, faz pouco, nos muros das cidades, à revelia do mercado de arte e graça ao talento dos jovens grafiteiros.” Ferreira Gullar, em Artigo de Opinião, publicado na Folha de S.Paulo, em 11/08/2013

terça-feira, 20 de agosto de 2013

Acta Est Fabula

Eugénio Lisboa publicou, em Novembro de 2012, "Acta Est Fabula", o primeiro dos cinco volumes previstos das suas Memórias. A Editora Opera Omnia já anuncia no respectivo site  que vai editar , em Outubro,  o 2º volume das Memórias de Eugénio Lisboa, um dos intelectuais mais marcantes da vida cultural portuguesa.
Neste 2º volume das suas Memórias, Eugénio Lisboa relata-nos a sua vida em África, nomeadamente em Moçambique, onde nasceu, até ao ano de 1976."
E porque acreditamos que neste novo volume , Eugénio Lisboa nos rebrindará com o magnetismo da sua excelente escrita memorialista, recordamos algumas páginas do 1º volume, que revelam como  um insaciável amor aos livros o marcou desde muito cedo. O seu crescimento  foi acompanhado pela descoberta dos grandes escritores e pela argúcia com que os decifrava.O fascínio pela leitura e o prazer que lhe provocava a aquisição de um novo livro contagia-nos e faz-nos compreender por que razões a personalidade de Eugénio Lisboa  se  tornou  numa das maiores referências da Literatura Nacional deste século..  

" Em África , tudo se dilata com o calor, inclusivamente a dimensão do tempo e do espaço, isto é, há muito espaço e muito tempo. A África é enorme, nunca mais acaba, e os dias vão durando por ali fora e dão tempo para tudo e ainda sobra tempo. Trabalha-se devagar, mexemo-nos devagar, amamos devagar ( nem sempre). A vida, ali, dura mais, mesmo quando dura pouco.
Quando as férias grandes começavam, tínhamos, à nossa frente, uma vasta planície de tempo a preencher, mesmo que fosse a não fazer nada. A partir do 5º ano do liceu, eu possuía já uma pequena biblioteca e ia  comprando um outro livro que namorava longamente, antes de o poder comprar. Mas, até ao terceiro e mesmo ao 4º ano, a leitura não era muito variada. Lera alguma coisa, mas não encontrara ainda nenhum dos meus grandes amores literários. O Garrett  o Herculano e o Júlio Dinis tinham-me cativado muito, mas não lhes chamaria "grandes amores literários". Lia, rebuscava nas malas atiradas para a garagem, ao fundo do quintal, revistas que me fascinavam. A Vamos Ler!, como já disse, dava-me, entre outras coisas, biografias de grandes escritores de todo o mundo. E eu punha-me a imaginar, como já vos disse,  um futuro, que nunca viria a concretizar-se, em que viveria numa casa grande, com uma grande biblioteca, de paredes cobertas de madeira e grandes estantes com livros até ao tecto, numa arrumação impecável...Livros, sim, viria a tê-los em abundância, mas vastas salas sumptuárias, acomodando enormes estantes, foi sonho que nunca se materializou.
Portanto, aproveitava todo esse tempo, que chegava e sobrava, para escrutinar o mato, por detrás da casa, para irritar o " Nero", insinuando a presença de "ratinhos" por todo o lado, frequentando a " Padaria Serrano" e indo, de vez em quando, de machimbombo, até à baixa. Outras vezes, ia a pé e passava pela loja de quinquilharia  do chinês - Ho-Ling - ficando a olhar embasbacado , para a montra, onde se exibiam , violentamente  tentadores , sobressalentes de bicicleta! Da bicicleta que eu nem sequer possuía...Mas onde eu gastava o tempo todo era, sobretudo, especado frente à montra da " Minerva Central " ( propriedade de outro Carvalhinho), a namorar os livros que não fazia ideia de como haveriam de ser meus, um dia...Eram títulos tentadores, da " Portugália", , da " Inquérito", da " Gleba", da " Minerva". Poça, não ter eu um décimo da massa que tinham os Granchas, os Carvalhinhos, o raio que os partisse a todos! E, a esses, se calhar, nem sequer lhes apetecia ler aqueles calhamaços:  O Moinho à Beira do Rio, Guerra e Paz, O Retrato de Dorian Gray, Trovoada à Esquerda, Villette e tantos outros, que me desafiavam... Palavra que não era inveja - era só um bocado de ferro, por a distribuição das riquezas estar tão mal amanhada: dava Deus nozes a quem não tinha dentes e aos que os tinham - e bem afiados - fazia-lhes um grande manguito! Como dizia, poça! 
Uma amiga da minha mãe, uma parteira de nome Deolinda, forte, um pouco masculina, mas aberta e generosa, de vez em quando " furava" as recomendações da minha mãe, segundo as quais, pelo dia dos nossos anos, deveriam dar-nos, sobretudo, roupa. A D. Deolinda acabou por perceber o nosso desapontamento com tais " presentes" e, de uma vez, para grande surpresa e alegria minha deu-me um pequeno submarino ( o único brinquedo que jamais tive, para além da porcaria que me trouxera o Carmona). De outra vez, deu-me  um livro. A intenção foi boa e , em princípio, apreciado, mas o livro - Pessoas de Bem , de Antero de Figueiredo - revelou-se uma chatice insuportável. Tentei lê-lo várias vezes e, ao fim de quatro ou cinco páginas, adormecia. Bem certo que o calor e a humidade ajudavam à modorra. Mas eu " aguentava" bem o Herculano e o Garrett...Nunca fui, depois, verificar se a culpa era mesmo do Antero de Figueiredo ou minha. A memória do sono irresistível que se apossava de mim mal encetava aquele volume de um branco asséptico e tresandando a virtude...O próprio título - Pessoas de Bem - não prenunciava nada de empolgante" " C'est avec les beaux sentiments qu'on fait de la mauvaise littérature", tinha dito o Gide, que, por essa altura, eu ainda não conhecia. Viria mais tarde, quatro anos depois , mais coisa, menos coisa.
(...)Foi, precisamente , nessas férias entre o 4º e o 5º ano do liceu, que outro acontecimento importante teve lugar: um colega do meu pai, Abel Menano ( irmão do António Menano dos fados de Coimbra) disse-me para ir a sua casa porque se queria "desembaraçar" de uns livros, que talvez me interessassem... A desculpa era  " já não ter espaço" para tanto livro, mas isso era só um disfarce para a sua generosidade: Fui lá, lambendo-me antecipadamente, e pôs-se a separar livros vários, num total de cerca de 100: as Novelas Inquérito ( Walter Scott, Conrad, Panait Istrati, D.H. Lawrence, Somerset Maugham, Thomas Mann, Musset, Edgar Poe, Balzac, Dostoiewsky, Tolstoi, Turgueniev, Sigrid Undset, Rudyard Kipling, Galsworthy, etc.,etc.), Victor Hugo, os Cadernos Inquérito ( incluindo vários Plutarcos, Tácito, Platão, Sílvio Lima, etc.).
Era um mundo. E, em cima disso, ofereceu-me uma pequena estante onde todos esses livros se acomodavam (à tangente!). Fiquei literalmente siderado. Levei aquele tesouro  para a casa da Mendonça Barreto e, no meu quarto que dava para a rua, instalei, à frente da cama onde dormia e ao lado de uma secretária em madeira de chanfuta, onde estudava, a minha " biblioteca", à qual adicionei outros livros que já possuía. Entre os do sr Menano, vinham os três volumes do romance extremamente gótico do Arnaldo Gama: O Génio do Mal, que ajudou a " purgar-me" de todas as toxinas que ainda me envenenavam  e tinham sobrado da purga violenta que fora a leitura das tragédias gregas e do discurso desenfastiado do escritor Luciano, a seguir à morte do meu irmão. 
Foi um período de férias em que uma espécie de ressurreição quase eufórica se seguiu a uma soturna e funérea depressão.Quando as aulas abriram, para o 5º ano, encontrava-me mais preparado para o que aí vinha. O 5º ano não me deixou recordações particulares, mas a morte de meu irmão, deixara marcas: tive sempre notas de sobra para o " Quadro de Honra", nos três períodos do ano lectivo, mas lembro-me de que foi um ano de algum desencanto. (...)
Julgo que foi , por esta altura, que meu pai me trouxe, completamente amarfanhado pela água que apanhara no porão do navio, entre Lisboa e Lourenço Marques, na edição da " Inquérito", em belíssima tradução de José Marinho, o romance de Stendhal ,  Vermelho e Negro ( Le Rouge  et le Noir , no original).  Foi, em mim, um autêntico terramoto! Apaixonei-me perdidamente pela Senhora de Rênal e foi um amor que nunca me abandonou : a Senhora de Rênal ficou sempre a pertencer ao meu mundo mais privado. Cá fora, na arena, eu andava com fumaças de dominar e meter na ordem as Matildes de la Mole que inundavam o mercado...Mas as Matildes eram só para o toureio; a Senhora de Rênal era para o amor de facto. Nada de confusões! Li, reli, tresli o livro de Stendhal, com uma paixão nunca saciada. Nenhum outro livro me pareceu viável , imediatamente depois daquele.. Eu bem pegava neles, bem tentava lê-los: tinham todos o horrível defeito de não serem o Vermelho e Negro. Como se podia ser outra coisa? Algo de semelhante se passaria, pouco depois, quando li, pela primeira vez, em tradução portuguesa, todo o teatro de Oscar Wilde. Foi um fascínio deparar, pela primeira vez, em todo o seu esplendor, com a arte da conversação. Como se poderia não falar assim? Como era possível continuar a viver, sem se possuir,  pelo menos, o brilho dos lordes conversadores do teatro de Wilde? Valia a pena viver, se não se podia ter tal brilho, na conversa de todos os dias ? Ser menos do que Oscar Wilde era programa de vida que se visse? O brilho, àquele nível, seduz mas também angustia. É um valor que se não absorve pacificamente ou que eu, pelo menos, não absorvia pacificamente. Nas conversas com colegas e familiares, apetecia-me ensaiar o paradoxo faiscante. Demolir tudo, desassossegar aquela sociedade amolengada e conformista, sob o calor subtropical..." Eugénio Lisboa, in " Acta Est Fabula, Memórias - I -Lourenço Marques ( 1930-1947)" Ed. Opera Omnia, Novembro de 2012

segunda-feira, 19 de agosto de 2013

Nas tuas mãos

AS MÃOS DE MEU PAI

As tuas mãos tem grossas veias como cordas azuis
sobre um fundo de manchas já da cor da terra
- como são belas as tuas mãos
pelo quanto lidaram, acariciaram ou fremiram da nobre
cólera dos justos…
Porque há nas tuas mãos, meu velho pai, essa beleza
que se chama simplesmente vida.
E, ao entardecer, quando elas repousam nos braços
da tua cadeira predilecta,
uma luz parece vir de dentro delas…
Virá dessa chama que pouco a pouco, longamente,
vieste alimentando na terrível solidão do mundo,
como quem junta uns gravetos e tenta acendê-los
contra o vento?
Ah, Como os fizeste arder, fulgir, com o milagre das
tuas mãos!
E é, ainda, a vida que transfigura das tuas mãos
nodosas…
essa chama de vida – que transcende a própria vida
…e que os Anjos, um dia, chamarão de alma.
Mário Quintana, in"Esconderijos do tempo", Editora Globo, 2ª Ed. 1994

domingo, 18 de agosto de 2013

Ao Domingo Há Música


Praia da Rocha, Algarve
O Verão propicia a audição de muita música. O calor, a amenidade das noites, a disponibilidade que traz o lazer dão o espaço para que a música se possa soltar. É nesta época que se realizam muitos Festivais  em Portugal e no Mundo. É também o tempo da celebração dos amores de verão que germinam num encantamento fugaz. Das lôas ao amor, muitos compositores fizeram canções que se tornaram famosas nas vozes de talentosos cantores. 
Neste Domingo de um Agosto quente, recorda-se a célebre canção de amor "What now my love", na excelente interpretação de  Aretha Franklin e Frank Sinatra. 

 What now my love

What now my love, now that you've left me
How can I live through another day
Watching my dreams turning to ashes
And my hopes turn to bits of clay

Once I could see, once I could feel
Now I am numb, I've become unreal
I walked  the night, without a goal
Stripped of my heart, my heart and my soul

What now my love? Now that it's over
I feel the world falling all around me
Here come the stars, tumbling around me
There's the sky, where that sea should be

What now my love, now that you're gone
I'd be a fool to go on and on
No one would care, no one would cry
If I should live if I should live or die

What now my love? Now there is nothing
Only my last, my last goodbye
My last goodbye