sábado, 25 de maio de 2013

83º aniversário de Eugénio Lisboa

 Eugénio Lisboa completa hoje  83 anos. Na Abertura de "Acta Est Fabula ( 1930-1947)", primeiro volume publicado  dos cinco volumes de Memórias projectados,  escreve:  "Não há razão nenhuma para que , no dia 25 de Maio de 1930,  “ eu “ tenha nascido num canto improvável da África Austral."
Quem o conhece sabe  que   são muitas as razões que se agregaram para que, nesse dia ,Lourenço Marques o recebesse.  Eugénio Lisboa estava predestinado ao universo dos homens que marcam o seu tempo, quer como homem empenhado num mundo melhor e mais justo, quer como escritor de uma profícua e variada obra literária. 
Ler o primeiro volume deste  registo memorialista é um exercício fascinante porque se acompanha o crescimento de  uma mente brilhante  que se descobre , que  activa o conhecimento através de uma curiosidade constante  e de um fascínio pelo saber e pela leitura. Eugénio Lisboa  transporta-nos para o seu  canto improvável da África Austral  e permite que verifiquemos  por que razões é um dos mais ilustres intelectuais de sempre, um nome que faz parte da plêiade  dos homens maiores das Letras.  
Neste 25 de Maio de 2013, transcrevemos as páginas que constam da Abertura de "Acta Est Fabula " , acreditando que, brevemente,  teremos um novo volume que nos fará sentir ainda mais privilegiados por conhecer o seu autor,  Eugénio Lisboa.
Ao ensaísta, ao crítico literário, ao poeta, ao escritor, ao diplomata, ao professor , ao amigo, os PARABÉNS.
ABERTURA
UM MUNDO PARA MIM
“ Chegado ao ocaso da vida, vem-me o desejo irresistível de voltar atrás, recordando os momentos que mais me tocaram e, também , as oportunidades que perdi: as atenções, mas também as desatenções, as devoções, mas também os desapegos, as exaltações, mas também os fastios. O meu passado é só meu e só eu sou capaz de o sondar em toda a sua profundidade. Dizia Sartre que o passado é um luxo de proprietário. Do meu, sinto-me extremamente proprietário e não sei se proprietário de mais alguma coisa.Vou, neste livro, falar da minha infância e da minha juventude e só, se ainda me restar tempo e vigor, da minha vida adulta, da minha maturidade e da minha velhice. Temo, com a idade que tenho, ter esquecido muita coisa. Mas sei que não esqueci os momentos de maior intensidade, que não são, necessariamente, os de maior felicidade. Diz um personagem de O Barbeiro de Sevilha, de Beaumarchais, que  “ A juventude é infeliz porque tem que enfrentar esta escolha terrível: o amor sem paz ou a paz sem amor. “ Quantas vezes, para  se salvar a paz de espírito, se consente em assassinar um amor que ensaia nascer! E quantas vezes outras, por amor do amor, se sacrifica uma paz portadora, talvez, de fecundos frutos! Vamos assim fazendo um percurso em que abundam as decisões que nos deixam para sempre inseguros sobre o valor que pudessem ter.
Lourenço Marques
Não há razão nenhuma para que , no dia 25 de Maio de 1930,  “ eu “ tenha nascido num canto improvável da África Austral. O privilégio, o luxo ou o acaso  miraculoso  ( para mim ) de estar vivo é algo que me ficará, para sempre, incompreensível. “ Tout ce qui n’est pas moi est incompréhensible.” Porquê eu ?  Sim, porquê, precisamente , eu? E não outro? Mas quem sou eu? Que sou eu? Que luxo é este de ser “ eu” , quando não chegaram – nem chegarão – nunca a ser “eles”? Mas faz sequer  sentido falar dos  que não chegaram nem chegarão  a ser ? Dizer “ os que não vão nascer” não é um contra-senso? “ todo o luxo tem que ser pago e tudo é luxo, a começar  por estarmos neste mundo”, observava Pavese, deslumbrado de espanto. O seu suicídio talvez prove, entre outras coisas, que tentou, à sua  maneira, pagar a factura.  Ou , então, cansou-se, simplesmente, de não compreender.
Como todos os que vieram a este mundo, eu vim e logo adquiri uma espécie de profunda convicção: a de que o mundo começava  comigo. Muitas vezes, depois, tentei “ intuir ” o que era “ estar morto” ou “ ainda não ter nascido”, isto é, “ não ser “ – e procurava encontrar respostas mais ou menos deste género: “ era o que se passava , digamos, no tempo de D. Afonso Henriques – nessa altura, muita coisa acontecia e tu não estavas lá!” Mas isto são apenas congeminações da razão, que o nosso ser profundo não compreende , não sente ou não intui. No fundo, o que vemos é isto: o mundo começou quando nós começámos e terminará quando nós terminarmos. A nossa aventura – resultado do nosso nascimento arbitrário e incompreensível – vive-se com emoções contraditórias, com deslumbramentos e decepções,  com alegrias e angústias, com descobertas  que nos enriquecem e outras que nos dissecam, mas sempre acompanhadas pelo enorme assombro de estarmos vivos.
Sobem, do passado, até mim, aparecendo-me, prodigiosamente, momentos que não esqueço. Tantos momentos, que aqui não refiro, porque hão-de aparecer, espero eu, no decurso deste livro  que me proponho escrever, com alguma leviandade: ainda terei tempo? Talvez, afinal, o gozo que me dará escrevê-lo ajude a prolongar a minha vida o suficiente para tornar viável o atrevido projecto.
A nossa vida, mesmo rica, mesmo variada, é uma corrida que dura pouco. Olho para trás e as minhas descidas por terrenos baldios, desde a casa na Mendonça Barreto até à baixa do Scala e das livrarias, aconteceram ainda ontem… Mas como dizia Disraeli, a vida é demasiado curta para poder ser pequena. Recordando momentos, encontros, descobertas, deslumbramentos e até tragédias , não consigo pensar que a minha vida tenha sido pequena.  Estar vivo não é insignificante.  Nenhum milagre é coisa de somenos. Vou, pois, tentar arquivar aqui, com palavras incompetentes, milagres que ultrapassaram a minha capacidade de os exprimir. A Lourenço Marques da minha infância e adolescência, com a praia ali ao lado e o mato muito perto, foi um desses milagres. Foi lá que nasci e foi lá que o mundo começou: o sol descomunal, a chuva grande, as trovoadas de estarrecer, o mar , a noite, o amor, a leitura, o futuro a haver – começaram lá. Vou falar-vos de Lourenço Marques, isto é, vou falar-vos da vida. Falando dela, irei viver algum tempo mais. Só ela, a capital da memória, é capaz de me dar este modesto suplemento de vida. “ Eugénio Lisboa, in "Acta Est Fabula, Memórias I,Lourenço Marques ( 1930-1947)", Editora Opera Omnia, 2012

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