quinta-feira, 21 de março de 2013

Sobre a Poesia XVII

"O valor das palavras na poesia é o de nos conduzirem ao ponto onde nos esquecemos delas, e o ponto onde nos esquecemos delas é onde nunca mais se pode ter repouso." Natália Correia

No dia mundial da Poesia, publica-se a XVIIª edição de Sobre a Poesia, espaço onde os poetas falam da própria poesia,  preenchida com as  palavras de uma  poeta maior  da literatura portuguesa. Em Março, celebrou-se o dia da Mulher e   assinalando  o 20º  aniversário da morte de Natália Correia ,Coimbra instituiu o Prémio bienal Natália Correia para  distinguir livros de poesia.
"O universo da maternidade configurado na pessoa da mãe, foi a matriz primordial da   forte personalidade de Natália Correia"  que segundo Fernando Rebelo  se destacava «profundamente materna porque  aprendeu com a sua mãe a liberdade de pensar, a dignidade do amor e o sentido da responsabilidade cívica. " Uma mulher extraordinária, uma  escritora multifacetada onde a poesia prevaleceu sobre os outros géneros."Sou uma impudência a mesa posta /de um verso onde o possa escrever /ó subalimentados do sonho ! /a poesia é para comer." 
Celebrar a Poesia com as palavras de Natália Correia é honrar e homenagear o  dia em que, no Mundo, os poetas são os que mais ordenam.


"Natália Correia nasceu a 13 de Setembro de 1923 na Ilha de São Miguel, nos Açores. Veio estudar para Lisboa ainda criança e cedo iniciou a sua actividade literária.Poeta, dramaturga, ficcionista, ensaísta, tradutora, autora de libretos de ópera, foi também colaboradora de vários títulos da imprensa periódica como o Diário de Notícias, a Capital e assumiu cargos directivos em O Século Hoje e na  Vida Mundial. Foi directora literária na Editorial Estúdios Côr (1971) e na Editora Arcádia (1973); argumentista do telefilme Santo Antero, de programas culturais transmitidos pela RTP e emprestou a sua voz para a gravação de textos literários produzidos pela Editora Discográfica Sassetti. Integrou a equipa da Secretaria de Estado da Cultura, em 1977, como consultora cultural, a convite de David Mourão-Ferreira. Opositora ao regime fascista, foi condenada em 1966 a três anos de pena suspensa pela publicação da “Antologia da Poesia Portuguesa Erótica e Satírica”, considerada ofensiva aos costumes. Já em democracia, é eleita para o Parlamento em 1980,  onde se distingue pela defesa dos direitos humanos, das causas da mulher, da cultura e do património. Natália Correia recebeu, em 1991, o Grande Prémio de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores pelo livro Sonetos Românticos. No mesmo ano, a 26 de Novembro, foi feita Grande-Oficial da Ordem da Liberdade." A sua obra está traduzida em várias línguas e galardoada com múltiplos prémios. Natália Correia morreu , em Lisboa, vítima de um enfarte, a 16 de Março de 1993, meses antes de completar 70 anos. 

Tudo chegava pelo lado da sombra
“Tudo chegava pelo lado da sombra, do terror, da pegajosa ignomínia. Os esbirros amordaçavam a luz. Com as mãos mergulhadas nas estrelas que escondia nos bolsos o poeta assobiava uma pátria de brancura e paz. E deu flor: um poema para ensinar risadas de camélias aos animais do medo. O poema foi arrastado para a treva onde os estranguladores da palavra constroem o silêncio da sala de espelhos onde o tirano se masturba. O poema atravessou o inferno e alguns dos seus sons ficaram queimados.
Uma vez exalado o grito de libertação que fez entrar a Cidade no exercício dos seus timbales o poema pediu ao poeta que lhe arrancasse as suas folhas mais ressequidas e em seu lugar pusesse as gotas de água do canto que quer correr para a vida. E o poeta fez a vontade ao poema que queria cantar. E aqui e além o corrigiu dotando-o da actualidade que as máquinas do inferno lhe roubaram.
COMUNICAÇÃO
EM QUE SE DÁ NOTÍCIA
DUMA CIDADE CHAMADA VULGARMENTE
LUSITÂNIA
ATRAVÉS DE ALGUNS FRAGMENTOS
DOS OXYRHYNCHUS PAPYRI
INTERPRETADOS PELA AUTORA
QUE DESEJANDO JULGAR O SEU
TEMPO OUSOU LER NO PASSADO
A SIGNA DO PRESENTE
Recentes escavações feitas no Sudoeste da Europa confirmaram a existência de uma cidade soterrada pelo prodígio diário de um lento e assombroso cataclismo.
Dessa cidade - a Lusitânia - contam contos espantosos que uma mulher a quem chamavam a Feiticeira Cotovia foi condenada às chamas por práticas de uma magia maior e estranha a que ela dava o nome de Poesia. Pronunciada que foi a sentença a misteriosa e sereníssima criatura anunciou com a força coroscante de um fulmíneo augúrio: «O meu corpo em chamas será o rastilho de uma fogueira que consumirá a Lusitânia ano após ano, geração após geração numa combustão invisível e prolongada pela Palavra que fulge no Ponto onde todos os nomes se reúnem na Luz.» E a profecia fez-se lume duradouro porque aquele lume ardia sem matéria pois que era pura chama do Espírito. E os Deuses afagaram as suas pombas porque estavam contentes com o que a Mulher tinha feito.”
Natália Correia, in “Cântico do país emerso, 1961.Poesia Completa”, Publicações Dom  Quixote
O poema

O poema não é o canto
que do grilo para a rosa cresce.
O poema é o grilo
é a rosa
e é aquilo que cresce.

É o pensamento que exclui
uma determinação
na fonte donde ele flui
e naquilo que descreve.
O poema é o que no homem
para lá do homem se atreve.

Os acontecimentos são pedras
e a poesia transcendê-las
na já longínqua noção
de descrevê-las.

E essa própria noção é só
uma saudade que se desvanece
na poesia. Pura intenção
de cantar o que não conhece.
Natália Correia, in “POEMAS, 1955 - Introdução ao mistério da Poesia,Poesia Completa “, Publicações Dom  Quixote
  
Poema involuntário

Decididamente a palavra
quer entrar no poema e dispõe
com caligráfica raiva
do que o poeta no poema põe.

Entretanto o poema subsiste
informal em teus olhos talvez
mas perdido se em precisa palavra
significas o que vês.

Virtualmente teus cabelos sabem
se espalhando avencas no travesseiro
que se eu digo prodigiosos cabelos
as insólitas flores que se abrem
não têm sua cor nem seu cheiro.

Finalmente vejo-te e sei que o mar
o pinheiro a nuvem valem a pena
e é assim que sem poetizar
se faz a si mesmo o poema.
Natália Correia, in «O Vinho e a Lira», Poesia Completa", Publicações Dom  Quixote

Manhã cinzenta

À Partida de São Miguel

Ai madrugada pálida e sombria
em que deixei a terra de meus pais
e aquele adeus que a voz do mar trazia
dum lenço branco, a acenar no cais...

O meu veleiro - era de espuma fria -
Levava-o o fervor dos vendavais.
À passagem gritavam-me: onde vais?
Mas só o meu veleiro respondia.

Cruzei o mar em direcções diferentes.
Por quantas terras fui, por quantas gentes,
Nesta longa viagem que não finda.

Só uma estrada resta - mais nenhuma:
na ilha que o passado envolve em bruma,
um lenço que me acena ainda...
Natália Correia, “in Inéditos, 1941/47 POESIA COMPLETA “, Publicações Dom  Quixote

Do Sentimento trágico da Vida

Não há revolta no homem
que se revolta calçado.
O que nele se revolta
é apenas um bocado
que dentro fica agarrado
à tábua da teoria.

Aquilo que nele mente
e parte em filosofia
é porventura a semente
do fruto que nele nasce
e a sede não lhe alivia.

Revolta é ter-se nascido
sem descobrir o sentido
do que nos há-de matar.

Rebeldia é o que põe
na nossa mão um punhal
para vibrar naquela morte
que nos mata devagar.

E só depois de informado
só depois de esclarecido
rebelde nu e deitado
ironia de saber
o que só então se sabe
e não se pode contar.
Natália Correia, in “POEMAS, 1955 – Apontamentos Poesia Completa”, Publicações Dom  Quixote                                   

Do dever de deslumbrar

A inútil tragédia da vida
Não chega a merecer um poema.
Só o poema merece, por vezes
A inútil tragédia da vida.

As pessoas caem como folhas
E secam no pó do desalento
Se não as leva consigo
A fúria poética do vento.

Para que se justifique a nossa vida
É preciso que alguém a invente em nós.
Os que nunca inspiraram um poema
São as únicas pessoas sós.
Natália Correia, in “Inéditos, 1947/49, Poesia Completa “, Publicações Dom  Quixote                             
Algumas obras de Natália Correia: Poesia – Rio de Nuvens (1947); Poemas (1955); Dimensão Encontrada (1957); Passaporte (1958); Comunicação (1959); Cântico do País Emerso (1961); O Vinho e a Lira (1966); Mátria (1968); As Maçãs de Orestes (1970); Mosca Iluminada (1972); O Anjo do Ocidente à Entrada do Ferro (1973); Poemas a Rebate (1975); Epístola aos Iamitas (1976); O Dilúvio e a Pomba (1979); Sonetos Românticos (1990); O Armistício (1985); O Sol das Noites e o Luar nos Dias (1993); Memória da Sombra (com fotos de António Matos; 1994). Ficção – Anoiteceu no Bairro (1946); A Madona (1968); A Ilha de Circe (1983). Teatro – O Progresso de Édipo (1957); O Homúnculo (1965); O Encoberto (1969); Erros meus, má fortuna, amor ardente (1981); A Pécora (1983). Ensaio – Poesia de arte e Realismo Poético (1958); Uma Estátua para Herodes (1974). Obras várias – Descobri que era Europeia (viagens, 1951); Não Percas a Rosa (diário, 1978); A questão académica de 1907 (1962); Antologia da Poesia Erótica e Satírica (1966); Cantares Galego-Portugueses (1970); Trovas de D. Dinis (1970); A Mulher (1973); O Surrealismo na Poesia Portuguesa (1973); Antologia da Poesia Portuguesa no Período Barroco (1982); A Ilha de São Nunca (1982).

Sem comentários:

Enviar um comentário