segunda-feira, 18 de março de 2013

Recordar Raul Brandão

Memórias I
PREFÁCIO- JANEIRO - 1918

“Se tivesse de recomeçar a vida, recomeçava-a com os mesmos erros e paixões. Não me arrependo, nunca me arrependi. Perdia outras tantas horas diante do que é eterno, embebido ainda neste sonho puído. Não me habituo: não posso ver uma árvore sem espanto, e acabo desconhecendo a vida e titubeando como comecei a vida. Ignoro tudo, acho tudo esplêndido, até as coisas vulgares: extraio ternura de uma pedra. Não sei – nem me importo – se creio na imortalidade da alma, mas do fundo do meu ser agradeço a Deus ter-me deixado assistir um momento a este espectáculo desabalado da vida. Isso me basta. Isso me enche: levo-o para a cova, para remoer durante séculos e séculos até ao juízo final. Nunca fui homem de acção e ainda bem para mim: tive mais horas perdidas... Fugi sempre dos fantasmas agitados, que me metem medo. Os homens que mais me impressionaram na existência foram outros: foram , por exemplo, D. João da Câmara, poeta e santo, Corrêa d'Oliveira, um chapéu alto e nervos, nascido para cantar, Columbano e a sua arte exclusiva, e alguns desgraçados que mal sabiam exprimir-se. Conheci muitos ignorados e felizes. Meio doidos e atónitos. O Nápoles ainda hoje dorme sobre a mesma mesa de jornais?... Outro andava roto e dava tudo aos pobres. O homem é tanto melhor quanto maior quinhão de sonho lhe coube em sorte. De dor também.A que se reduz afinal a vida? A um momento de ternura e mais nada... De tudo o que se passou comigo só conservo a memória intacta de dois ou três rápidos minutos. Esses sim! Teimam, reluzem lá no fundo e inebriam-me, como um pouco de água fria embacia o copo. Só de pequeno retenho impressões tão nítidas como na primeira hora: ouço hoje como ontem os passos de meu pai quando chegava a casa; vejo sempre diante dos meus olhos a mancha azul-ferrete das hidrângeas que enchiam o canteiro da parede. O resto esvai-se como fumo. Até as figuras dos mortos, por mais esforços que faça, cada vez se afastam mais de mim... Algumas sensações, ternura, cor, e pouco mais. Tinta. Pequenas coisas frívolas, o calor do ninho, e sempre dois traços na retina, o cabelo de oiro, a outra-banda verde... Passou depois por mim o tropel da vida e da morte, assisti a muitos factos históricos, e essas impressões vão-se desvanecidas. Ao contrário, este facto trivial ainda hoje o recordo com a mesma vibração: a morte daquela laranjeira que, de velha e tonta, deu flor no Inverno em que secou. O resto usa-se hora a hora e todos os dias se apaga. Todos os dias morre.Lá está a velha casa abandonada, e as árvores que a minha mãe, por sua mão, dispôs: a bica deita a mesma água indiferente, o mesmo barco arcaico sobe o rio, guiado à espadela pelo mesmo homem do Douro, de pé sobre a gaiola de pinheiro. Só os mortos não voltam. Dava tudo no mundo para os tornar a ver, e não há lágrimas no mundo que os façam ressuscitar.

Esta Foz de há cinquenta anos, adormecida e doirada, a Cantareira, no alto o Monte, depois o farol e sempre ao largo o mar diáfano ou colérico, foi o quadro da minha vida. Aqui ao lado morou a minha avó; no armário, metido na parede como um beliche, dormiu em pequeno o meu avô, que desapareceu um dia no mar com toda a tripulação do seu brigue, e nunca mais houve notícias dele. Lembro-me da avó e da tia Iria, de saia de riscas azuis, sentadas no estrado da sala da frente, e possuo ainda o volume desirmanado do Judeu que elas liam, com o Feliz Independente do Mundo e da Fortuna e a Recreação Filosófica do padre Teodoro de Almeida. Ouço, desde que me conheço, sair do negrume, alta noite, a voz do moço chamando os homens da companha: – Ó sê Manuel, cá pra baixo prò mar! – Vi envelhecer todos estes pescadores, o Bilé, o Mandum, o Manuel Arrais, que me levou pela primeira vez, na nossa lancha , ao largo. Há que tempos! – e foi ontem... A quarenta braças lança-se o ancorote. Na noite cerrada uma luzinha à proa; do mar profundo – chape que chape – só me separa o cavername. Deito-me com os homens sob a vela estendida. Primeiro livor da manhã, e não distingo a luz do dia do pó verde do ar. Nasce da água, mistura-se na água, com reflexos baços, a claridade salgada que palpita no ar vivo que respiro, no oceano imenso que me envolve. – Iça! iça! – e as redes sobem pela polé, cheias de algas e de peixe, que se debate no fundo da catraia. Voltamos. Já avisto, à vela panda, o farolim, depois Carreiros; um ponto branco, além no areal, é o Senhor da Pedra, e a terra toda, roxa e diáfana, emerge enfim, como aparição, do fundo do mar. A onda quebra. Eis a barra. Agora o leme firme!... As mulheres, de perna nua, acodem à praia para lavar as redes, e o velho piloto-mor, de barba branca, sentado à porta da Pensão, fuma inalterável o seu cachimbo de barro. O azul do mar, desfeito em poalha, mistura-se ao oiro que o céu derrete. mais barcos vão aparecendo, vela a vela: o Vai com Deus, a Senhora da Ajuda, o Deus te guarde, e os homens, de pé, com o barrete na mão, cantam o bendito, tanta foi a pesca. – Quantas dúzias? – Um cento! dois centos! – Nas linguetas de pedra salta a pescada de lista preta no lombo, a raia viscosa, o ruivo de dorso vermelho, ou, no Inverno, a sardinha que os batéis carreiam do mar inesgotável, estivando de prata todo o cais. Às vezes o peixe miúdo e vivo é tanto, que não bastam os almocreves com os seus burros canastreiros, as varinas com os seus gigos, nem as mulheres de saia ensacada e perna à mostra, para o levarem, apregoando-o, por essa terra dentro. Dá-se a quem o quer, faz-se o quinhão dos pobres. Em Setembro são as marés vivas. Mais tarde cresce do mar um negrume. Acastelam-se as nuvens no poente, e forma-se para o sul uma parede compacta que tem léguas de espessura. A voz é outra, clamorosa, e, à primeira lufada, bandos de gaivotas grasnam pela costa fora, anunciando o Inverno que vem próximo. O quadro muda, e os homens morrem à boca da barra, na Pedra do Cão, agarrados aos remos, sacudidos no torvelinho da ressaca, o velho arrais de pé, as duas mãos crispadas no leme, cuspindo injúrias, para lhes dar ânimo, e todo o mulherio da Póvoa, de Matosinhos, da Afurada – vento sul, camaroeiro içado – com as saias pela cabeça, salpicadas de espuma e molhadas de lágrimas: – Ai o meu rico homem! o meu filho, que não o torno a ver! – E chamam por Deus, ou insultam o mar, que, Inverno a Inverno, lhos leva todos para o fundo.O que sei de belo, de grande ou de útil, aprendi-o nesse tempo: o que sei das árvores, da ternura, da dor e do assombro, tudo me vem desse tempo... Depois não aprendi coisa que valha. Confusão, balbúrdia e mais nada. Figuras equívocas, ou, com raras excepções, sentimentos baços. Amargor e mais nada. Nunca mais... Nunca Londres ou a floresta americana me incutiram mistério que valesse o dos quatro palmos do meu quintal. Nunca caça às feras no canavial indiano foi mais fértil em emoção e aventura que a armadilha aos pássaros na poça do monte, com o Manuel Barbeiro. Uma nora, dois choupos, a água empapada, e, entre as ervas gordas como bichos, pegadas de bois cheias de tinta azul, reflectindo o céu implacável de Agosto: Os pássaros com as asas abertas desconfiam e hesitam: a sede aperta-os, o sol escalda-os. Mal pousam na armadilha agarramo-los com ferocidade. Chiu!... Uma andorinha descreve lá no alto um círculo perfeito, e vem, no voo desferido, arripiar com o bico a água estagnada. Toca numa palheira de visco – é nossa! Já tiveste nas mãos uma andorinha? É penas e vida frenética. E essa vida pertence-te!... Só ao fim da tarde regressava a casa com os bolsos cheios de rãs e os olhos deslumbrados. Nenhuma figura torva, nem o Anticristo, me comunicou terror semelhante ao do inofensivo manco da esquina, que escondia de manhã a barba, que lhe chegava ao umbigo, entre o peito e a camisa, para a sacar de noite, quando saía à estrada... Sou capaz de te dizer qual o tom róseo de certos dias, quando o pessegueiro bravo encostado ao muro floresce. O murmúrio da minha bica não me sai dos ouvidos até à hora da morte. Quase todos os meus amigos – o Nel, que não tornei a ver... – são dessa época. Doutras impressões mais tardias não restarão vestígios, mas tenho sempre presentes os mesmos pinheiros mansos – que já não existem – acenando para a barra, e alta noite acordo ouvindo o rebramir do mar longínquo. Nos dias de desgraça é sempre a mesma voz que chama por mim... Olha, olha ainda e extasia-te; o rio parece um lago, e um bando de gaivotas desfolhadas alastra sobre a tinta azul, com laivos esquecidos do poente. Bóia espuma na água viva que a maré traz da barra... E não há cheiro a flores que se compare a este cheiro do mar.” Raul Brandão , in “Memórias I”, ed. de José Carlos Seabra Pereira, Lisboa: Relógio d'Água, 1998
Raul Brandão (1867-1930) nasceu na Foz do Douro e aí passou a infância e a juventude. "Era filho e neto de pescadores. Durante os anos de liceu, começou a interessar-se pela literatura. Frequentou, como ouvinte, o Curso Superior de Letras, ingressando mais tarde na Escola do Exército. Paralelamente a esta carreira - mormente ligada à burocracia militar - Raul Brandão foi jornalista escritor. Em 1896 foi colocado em Guimarães, cidade onde se casou e se instalou definitivamente. Em 1912, depois de se reformar, dedicou-se exclusivamente à escrita, encetando um ciclo de particular fecundidade literária.É o grande modernista português na prosa de ficção. "Húmus", 1917,é considerada a sua melhor obra , aquela que mais legitimamente o situa no plano das obras excepcionais, singulares.Nela se evidencia o peso do drama humano,  encenando a tragédia da luta da «vila» pelo seu «sonho», e utilizando processos de desconjuntamento do tempo narrativo que antecipam o trabalho discursivo da ficção de hoje." “ A Farsa” , " O Padre", "Os Pobres”, " Os Conspiradores", " El Rei Junot", " Os Pescadores" , " As Ilhas desconhecidas", " O Avejão"(Teatro)  são também algumas das suas obras.
Inquirido a propósito da elaboração da sua biografia, Raul Brandão respondeu:" Da minha vida não posso acrescentar mais nada, além do que aí está em farrapos nalguns dos meus volumes."

1 comentário:

  1. Raul Brandão e Maria Angelina...
    Raul Brandão, sempre eloquente!... Continua, quase um século após a sua morte, a influenciar, gerações e gerações de portugueses!
    ... O Manuel Mendes, que o admirava, e que foi seu "bordão de cego", como soe dizer-se, chegou a dizer que Raul Brandão. "tinha uma alma maior que o mundo"!... Assim, se chega a ter a percepção de um Homem, de quanto vale um Homem!

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