domingo, 31 de março de 2013

Ao Domingo Há Música

Pormenor do quadro " O regresso do filho pródigo", c. 1662 de Rembrandt,
 no Museu Hermitage,  em S. Petersburgo
"É neste Deus que quero acreditar: um Pai que, desde o princípio da criação, abre os braços numa bênção cheia de misericórdia, sem forçar ninguém, mas esperando sempre; sem deixar cair os braços, e esperando sempre que os filhos regressem para lhes poder falar com palavras de amor e para deixar que os braços cansados repousem nos seus ombros. O seu único desejo é abençoar." Henri Nouwen, in “O regresso do filho pródigo”,Editorial A o, Braga

Abençoar  ou ser abençoado, acção e objecto, eram rituais tão celebrados e importantes nas relações familiares que, sem a respectiva efectivação ,  não se completava a cerimónia da saudação na hora da partida ou do regresso. Sinais de respeito, de acolhimento, de afectividade que traduziam a força da mais importante organização do mundo: a família.
Num Domingo de Páscoa, saudar e rogar a bênção que dulcifique um mundo onde, todos os dias, milhares de braços cansados carecem de sossego e protecção é uma forma de  contextualizar o espírito pascal.  

O génio de Mahler produziu uma grandiosa Ressurreição ('Resurrection' Mov V (2/2) na " Symphony No. 2 in C minor ”, que se apresenta no registo efectuado durante os BBC Proms, no
 Royal Albert Hall em Agosto de 2011, com as vozes de  Miah Persson, soprano, Anna Larsson, mezzo-soprano, e do National Youth Choir of Great Britain , acompanhados pela Orquestra Sinfónica Simón Bolívar da  Venezuela dirigida pelo Maestro Gustavo Dudamel.

sábado, 30 de março de 2013

Contemplação e acção



"HÁ CADA VEZ MAIS PESSOAS que não estão satisfeitas com o mundo em que vivemos. Raras são, porém, aquelas que fazem alguma coisa para o transformar. Destas, umas procuram torná-lo melhor por meio do seu esforço, individual ou colectivo; outras acham que os defeitos do mundo não estão no próprio mundo,  mas no olhar de quem nele vive; por isso procuram transformar-se a si próprias e mudar o olhar com que o vêem.  As primeiras são partidárias da acção; as segundas  confiam nos efeitos da contemplação. Ambas as atitudes são universais. Encontram-se em todas as sociedades civilizadas. Determinam os princípios fundamentais das grandes religiões. O Oriente cultivou mais a contemplação; o Ocidente, sobretudo depois do século XIII, desenvolveu mais a acção. A relação do homem com o mundo deu lugar a opções diferentes. Os programas de intervenção  ou de não intervenção  diversificaram-se  e evoluíram. Há , portanto, uma história da acção e da contemplação. No Ocidente essa história confunde-se com a história da Igreja, e, mais precisamente, com a história das ordens religiosas, ou seja, com a história do seu sucesso ou insucesso na tarefa de mudar o  mundo para melhor, isto é, para resolver os problemas decorrentes da vida do homem em sociedade.
A minha tese, se assim lhe posso chamar, é que não basta a acção; é preciso também a contemplação. Talvez mais ainda: sem ela de nada vale a acção. Creio que a história da Humanidade mostra isso mesmo. Não a história  factológica, superficial, externa, mas a história da realização das potencialidades do género humano.   Ou a história da Humanidade em busca da sua plenitude. Ou a história da revelação de Deus presente na realidade concreta do mundo. (…)
Toda a obra humana , mesmo a mais espiritual, perde facilmente a sua pureza e está  sujeita à ambiguidade. O projecto da cristandade imaginado (...), apesar  das suas admiráveis realizações(...) ficou aquém dos seus objectivos.
(...)Mas os projectos seculares de uma nova sociedade, propostos pelo iluminismo, o liberalismo, o socialismo e o comunismo, também não cumpriram a promessa de trazer o progresso para toda a Humanidade  e instaurar a fraternidade e a justiça universais. Eliminaram a própria  noção de sagrado, sem darem conta que a sacralidade dos princípios essenciais é o fundamento dos valores de que depende a vida do homem em sociedade. Sem ela não é possível defender eficazmente a dignidade humana e o respeito pela vida. O projecto liberal criou uma sociedade sem religião, sem estrutura e sem convicções. A sociedade agnóstica realiza prodígios tecnológicos, mas não consegue  evitar as catástrofes naturais, não reabsorve o lixo que produz, deixa milhões de homens morrerem à fome, recorre à tortura e à violação da consciência com medo de perder  a segurança.
Mas é esta a realidade do homem moderno. Nunca o homem teve tanto poder e ao mesmo tempo tanta fragilidade. A globalização  trouxe-lhe  a consciência da sua incapacidade de resolver todos os problemas quando tudo depende  só de si mesmo. As leis da proporção e da quantidade , e o exemplo de iniciativas recentes , mostram-lhe que as cimeiras dos maiores detentores  do poder político, financeiro e tecnológico são impotentes  para resolver  os grandes problemas da Humanidade. Se é assim , o homem devia recuperar a consciência da sua finitude. Os poderosos tentarão , assim se espera, resolver os grandes problemas. Mas o cidadão comum, o indivíduo  só pode resolver os problemas em que está envolvido, e tendo em conta a escala daquilo que pode alcançar: o grupo a que pertence, a família que o rodeia, o trabalho de que vive, as associações em que se inscreve, o país da sua cidadania, a ideologia ou a confissão religiosa que professa. É para com eles que deve ser responsável. É a esta escala que a mudança de olhar proposta pela atitude contemplativa lhe pode trazer uma nova esperança.
Com efeito, a contemplação  mostra-nos a fantástica variedade, complexidade e coerência dos fenómenos da vida, da constituição da matéria, e da prodigiosa dimensão e regularidade do mundo cósmico. A contemplação intensifica a fruição  da arte na música, na pintura, na poesia, no teatro e no cinema. A contemplação torna-nos sensíveis ao riso e à frescura das crianças e de tudo o que começa de novo. A contemplação faz-nos descobrir em toda a parte homens e mulheres inesperadamente inventivos, generosos e honestos. A contemplação inspira-nos o respeito e a admiração por quem é capaz  de manter a dignidade face ao sadismo dos torcionários nas prisões e campos de concentração. A contemplação abre os nossos ouvidos  ao clamor dos famintos  e dos oprimidos em todo o mundo e em toda a História, e faz-nos partilhar com eles a compaixão pela Humanidade  ferida. A contemplação introduz-nos no mistério do sofrimento que se torna passagem para a ressurreição através da morte aceite e vencida, e mostra-o em Jesus Cristo, Filho de Deus , sinal da invencibilidade da vida. A contemplação associa como num único sujeito todos os homens e mulheres que desde o princípio do mundo perscrutaram o mistério do Uno e do Todo. Assim, o homem contemplativo perde o medo do futuro. Vive no presente e descobre , a cada passo, nas coisas grandes e pequenas, nas coisas boas e más, na doença e na saúde, na prosperidade  e na pobreza , na paz e na guerra, a espantosa realidade das coisas. (...)
O olhar abrangente e lúcido sobre o mundo diz-nos  que a acção e a contemplação não devem ser exclusivas, e que é inútil estabelecer regras  acerca do grau de consagração a uma ou outra. Enquanto houver seres humanos que a ela  se entregam, de alma e coração, podemos olhar sem medo para o futuro.”José Mattoso “Contemplação e acção , ontem e hoje “ in “ Levantar o Céu, Os labirintos da Sabedoria”, Abril de 2012, Ed. Círculo Leitores

sexta-feira, 29 de março de 2013

Isto vos mando


“12 O meu mandamento é este: Que vos ameis uns aos outros, assim como eu vos amei.
 13 Ninguém tem maior amor do que este, de dar alguém a sua vida pelos seus amigos.(...)
 15 Já vos não chamarei servos, porque o servo não sabe o que faz o seu senhor; mas   tenho-vos chamado amigos, porque tudo quanto ouvi de meu Pai vos tenho feito conhecer.
 16 Não me escolhestes vós a mim, mas eu vos escolhi a vós (...)
 17 Isto vos mando: Que vos ameis uns aos outros." Evangelho segundo S. João,Cap. 15


"Requiem K.626 - 9. Domine Jesu" de W. A. Mozart pelas vozes de Gundula Janowitz (soprano), Christa Ludwig (contralto) ,Peter Schreier (tenor),Walter Berry (bass), Coro de Wiener Staatsoper com a Orquestra Sinfónica de Viena conduzida pelo Maestro Karl Böhm. 

quinta-feira, 28 de março de 2013

Inédito de José Saramago


Livro de José Saramago, inédito em Portugal, chega às livrarias em Abril
"A Estátua e a Pedra", já publicado em Itália, sairá numa edição bilingue, em português e espanhol. Oferece uma “explicação da obra de Saramago”.
Fundação José Saramago vai publicar, no início de Abril, um livro inédito em Portugal do escritor, A Estátua e a Pedra , informou  em comunicado. O lançamento está agendado para a Feira do Livro de Bogotá, onde Portugal será o país convidado na segunda semana de Abril.
A Estátua e a Pedra é o título de uma conferência que Saramago deu na Universidade de Turim, Itália, em Maio de 1998, na sequência do Colóquio Diálogos sobre a Cultura Portuguesa. Literatura-Música-História. Esse texto, publicado em Itália, em 1999, ao lado dos textos de Luciana Stegagno Picchio e Giancarlo Depretis e dos restantes conferencistas, é agora um dos escolhidos para a edição publicada em Abril. Ana Sousa Dias, directora de comunicação da Fundação José Saramago, explicou ao PÚBLICO que essa primeira publicação, em Itália, foi uma “pequena edição de luxo”, que já não se encontra disponível.
A única diferença entre esta edição e a de 1999 é o epílogo do escritor espanhol Fernando Gómez Aguilera, que possui “um olhar próximo da obra de Saramago”, adianta Ana Sousa Dias. Aguilera, biógrafo do escritor português, é o comissário da exposição permanente dedicada ao autor de Caim , que se encontra na Casa dos Bicos – sede da fundação - , intitulada José Saramago. A semente e os frutos, e foi também responsável pela exposição José Saramago. A Consistência dos Sonhos, que esteve em Lanzarote (Espanha), Lisboa e em vários países da América do Sul.
O espanhol conheceu e ficou amigo de Saramago em Lanzarote, onde o português viveu, e neste livro vê-se a importância que a ilha do Arquipélago das Canárias teve na vida do Nobel. "A Estátua e a Pedra" é uma reflexão de Saramago sobre os seus livros e sobre a importância decisiva que o facto de viver numa ilha de pedra e vulcões como Lanzarote teve para o seu estilo literário e de vida. Este é um livro que não existiria sem Lanzarote", lê-se no comunicado de imprensa divulgado esta segunda-feira.
É a primeira publicação editada pela Fundação José Saramago, que, daqui para a frente, pretende assegurar a “produção editorial” de “estudos sobre Saramago” e de uma “selecção de textos de conferências, que não se encontram disponíveis”. Ana Sousa Dias revelou, ainda, que a Fundação vai tentar assegurar que todas as edições sejam bilingues de modo a responder à procura do mercado português e espanhol.
"A estátua é só a superfície da pedra, é o resultado daquilo que foi retirado da pedra, a estátua é o que ficou depois do trabalho que retirou pedra à pedra, toda a escultura é isso, é a superfície da pedra e é o resultado dum trabalho que retirou pedra da pedra. Então é como se eu tivesse ao longo destes livros todos andado a descrever essa estátua, o rosto, o gesto, as roupagens, enfim, tudo isso, descrever a estátua", dizia José Saramago nessa tal conferência de 1998. Por isso a escolha deste texto para iniciar as publicações da Fundação José Saramago não foi feita ao acaso.
Através da metáfora da estátua e da pedra, oferece-se "uma explicação para a obra de Saramago”, diz Ana Sousa Dias. Concluindo: na primeira fase da obra do Nobel português, que vai até à publicação de Evangelho segundo Jesus Cristo (1991), Saramago falava de uma estátua; quando foi viver para Lanzarote, depois da polémica com esse romance, “começou a interessar-se pela pedra, da qual era possível retirar a escultura”. Público

quarta-feira, 27 de março de 2013

A perda do sentido ético


"A corrupção dos governos começa sempre, hoje como no tempo de Montesquieu, pela dos seus princípios, mas a corrupção dos princípios deve ser transmitida pelas elites para encontrar uma forma de legitimidade. Para tal, nada como a mentira histórica. Foi um dos grandes pilares do maquiavelismo de massas, no século passado. George Orwell, um dos raros espíritos que compreenderam a essência do militarismo, viu nela uma das mais horrendas violências: "Se o chefe declara que este ou aquele acontecimento não ocorreu - pois bem, não ocorreu. Se diz que dois mais dois são cinco - pois bem, dois mais dois são cinco. Esta perspectiva assusta-me mais do que as bombas." A ideia de que a mentira é uma das piores formas de destruição da humanidade não é corrente. A razão é simples: o número de colaboradores é demasiado grande e todos têm algo a censurar-se. No sistema totalitário, a mentira do carrasco era necessária porque ele procurava não a verdade mas a inculpação, e a da vítima, inevitável porque os interrogatórios provocavam a desintegração da personalidade. Mas perguntamo-nos o que poderia justificar realmente a mentira daqueles que, não arriscando absolutamente nada, contribuíam portanto para o assassínio - de longe.
Um exemplo permitirá ilustrar esta afirmação. O nosso grande poeta nacional, Louis Aragon, a quem não eram conhecidos quaisquer talentos agronómicos, escreveu, em defesa de Lyssenko, um texto que seria cómico se a batalha travada em nome desse estouvado não tivesse provocado tantos crimes na URSS. O obscuro técnico agrícola que pusera mão sobre uma parte considerável da ciência soviética esteve na origem de trinta anos de impasse agronómico. O artigo de Aragon foi publicado na revista Europe em 1948, sobre um tema em que a sua incompetência poderia ter-lhe aconselhado a discrição. Eis, no entanto, o que escreve no momento em que o "lissenkismo" está no auge em Moscovo e em que se morre por se opor à sua doutrina:
 (…)As teses genéticas eram consideradas "hitlero-trotskistas" e os partidários de Mendel encontravam-se na categoria condenada dos "inimigos do povo soviético". A genética não podia ser verdadeira, porque era incompatível com o materialismo dialéctico! Assim. podiam justificar-se milhões de mortos na Ucrânia, o celeiro de trigo da URSS, e no resto da União Soviética. Nas aldeias que apenas contavam cadáveres, haviam sido deixadas, ao lado dos corpos, mensagens lancinantes dirigidas aos visitantes futuros (...). As aberrações de Lyssenko permitiram a condenação à morte de inúmeros geneticistas - em especial do grande sábio Nikolai Vavilov, que morreu no campo de Saratov, em 1943 -, mas serviram sobretudo para encontrar bodes expiatórios para o falhanço da reforma agrária de Estaline na década de 1930, fracasso que conduziu a que pais comessem os filhos.
Na era de Gorbachov, foram abertos os arquivos sobre este período. Os documentos foram expostos em 1992, na Biblioteca do Congresso em Washington, mostrando que a horrenda fome causada entre os camponeses não era ignorada pelas autoridades (...).
É preciso ter estas cenas em mente quando se pega na pena para justificar os regimes injustificáveis. No texto de Aragon, não é apenas a perversão intelectual, manifesta nesse tecido de asneiras, que nos choca hoje em dia. É a participação - involuntária, é certo, mas real - num crime em grande escala. Nesses casos, perdera-se muitas vezes todo o sentido da ética intelectual. É a justo título que essa perda assusta Orwell mais do que as bombas. Os exemplos continuam a ser em grande quantidade, vinte anos mais tarde, com as apologias do maoísmo nas capitais ocidentais."  Thérèse Delpech, in "O Regresso da Barbárie", Lisboa, Ed Quidnovi, 2007

terça-feira, 26 de março de 2013

Revolucionário sem revolução


A revolução que não houve
Por Ferreira Gullar
“Hugo Chávez foi, sem qualquer dúvida, um líder carismático que aliava, em sua atuação, a audácia e a esperteza política. Desde cedo, a ambição de poder determinou suas ações, que o levaram da conspiração nos quartéis às manobras populistas características de seu projeto de governo.
Sempre soube o que deveria fazer. Compreendeu, desde logo, que teria de atender às necessidades de grande parte da população que, ignorada pela oligarquia venezuelana, vivia na miséria.
Ganhar a confiança dessa gente, atendê-la em suas carências, era a providência eticamente correta e, ao mesmo tempo, o caminho certo para tornar-se um líder de imbatível popularidade. Mas, para isso, teria que enfrentar os poderosos e obter o respaldo das forças armadas, às quais, aliás, pertencia. Foi o que fez e ganhou a parada.
Outro traço característico de Hugo Chávez era o pouco respeito às normas democráticas. Se é verdade que ele chegou ao poder pelo voto e pelo voto nele se manteve, é certo também que se valeu do prestígio popular e de alguns erros dos opositores para controlar os diferentes poderes da nação venezuelana, impor sua vontade e consolidar o poder discricionário.
Nesse sentido, o que ocorreu na Venezuela é um exemplo de como o regime democrático, dependendo do nível econômico e cultural da população de um país, pode abrir caminho para um governo autoritário que, dependendo da vontade do líder, anulará a ação política dos adversários, como o fez Hugo Chávez.
Ele não só fechou emissoras de televisão como criou as Milícias Bolivarianas, que, a exemplo da conhecida juventude nazista, inviabilizava pela força as manifestações políticas dos adversários do governo.
Para culminar, fez mudarem a Constituição para tornar possível sua reeleição sem limites. Aliás, é uma característica dos regimes ditos revolucionários não admitir a alternância no poder. Está subentendido que sua presença no governo garante a justiça social com a simples exclusão da classe exploradora e, portanto, como são o povo no poder, não há por que sair dele.
Chávez intitulou seu regime de "revolução bolivariana", embora não tivesse feito qualquer revolução. O que fez, na verdade, foi dar comida e casa aos mais necessitados, o que, ao contrário de levar à revolução, leva à aceitação do regime pelos que poderiam se revoltar. Daí a necessidade de haver um inimigo, que ameace tomar o que eles ganharam. E o líder --Chávez-- está ali para defendê-los.
O azar dele foi o câncer que o acometeu e que ele tentou encobrir. Quando já não pôde mais, lançou mão da teoria conspiratória, segundo a qual seu câncer foi obra dos norte-americanos. Como isso ocorreu, nem Nicolás Maduro nem Evo Morales se atrevem a explicar.
De qualquer modo, tinha que se curar e foi tratar-se em Cuba, claro, para que ninguém soubesse da gravidade da doença, que o obrigaria a deixar o governo. Sucede que o câncer não cedeu à onipotência do líder, obrigando-o a ausentar-se da Venezuela e da chefia do governo, por meses seguidos. O povo venezuelano, naturalmente, desejava saber o que se passava com o seu presidente, mas nada lhe era dito.
No entanto, Chávez deveria disputar eleições em 2012 para manter-se no governo e, por isso, voltou à Venezuela dizendo-se curado. Foi reeleito, mas teve que voltar às pressas à UTI em Havana. Daí em diante, mais do que nunca, o sigilo foi total: está vivo? Está morto? Vai voltar? Não vai voltar? Pela primeira vez, alguém governou um país de dentro de uma UTI.
Chega a data em que teria que tomar posse, mas continuava em Cuba. Contra a Constituição, Nicolás Maduro, que ele nomeara seu vice-presidente, assume o governo, embora já não gozasse, de fato, da condição de vice-presidente, já que o mandato do próprio Chávez terminara.
Mas, na Venezuela de hoje, a lei e a lógica não valem. Por isso mesmo, o próprio Tribunal Supremo de Justiça --de maioria chavista, claro-- legitimou a fraude, e a farsa prosseguiu até a morte de Chávez; morte essa que ninguém sabe quando, de fato, ocorreu.
Durante o enterro, Nicolás Maduro anunciou que Chávez seria embalsamado e exposto para sempre à visitação pública, como Lênin e Mao Tse-tung. Um líder revolucionário de uma revolução que não houve. Não resta dúvida, estamos em Macondo. “ Ferreira Gullar em Artigo de Oipinião,  publicado na Folha de S. Paulo, 17/03/2013-03h05

segunda-feira, 25 de março de 2013

Do Mundo e das Letras


Quando o nome pode ser todo um programa
por ANSELMO BORGES
“Não foi para mim completa surpresa o cardeal argentino Bergoglio, jesuíta. O que constituiu surpresa foi a escolha do nome: Francisco, sugerido pelo colega, cardeal Hummes, de São Paulo, quando o abraçou e lhe disse: "não te esqueças dos pobres." O Papa Francisco explicou: "Essa palavra entrou aqui (apontou para a cabeça): os pobres. Pensei imediatamente em Francisco de Assis. Assim surgiu o nome no meu coração." E exclamou: "Ah, como gostaria de uma Igreja pobre e para os pobres", provocando a ovação dos jornalistas.
E as suas palavras e gestos têm correspondido ao que o nome de Francisco de Assis representa. A simplicidade não teatral, até no vestir e calçar, inclinar-se perante a multidão, a fala cordial e descomplicada, uma cruz peitoral barata, o desejo de "bom descanso" e "bom almoço", ir pagar as despesas de hospedagem, o humor, palavras de ternura e compaixão: isso aproximou-o das pessoas, que agora se podem aproximar, pois é um homem entre homens e mulheres, como Cristo. "Cristo é o centro; o centro não é o sucessor de Pedro." Afinal, a Constituição da Igreja é mesmo o Evangelho e não o Código de Direito Canónico.
Sublinhe-se o seu respeito pela liberdade de consciência. "Tinha-vos (aos jornalistas) dito que vos daria de todo o coração a minha bênção. Muitos de vós não pertencem à Igreja Católica, outros não são crentes. Dou-vos de coração esta bênção, em silêncio, a cada um de vós, respeitando a consciência de cada um, mas sabendo que cada um de vós é filho de Deus. Que Deus vos abençoe."
No passado dia 12, frente àquela pompa toda dos 115 cardeais a entrar na Capela Sistina, para o conclave, perguntei-me pela simplicidade do Evangelho e sobretudo quem representava as mulheres, as famílias, os jovens, os católicos em geral. A Francisco de Assis pareceu--lhe uma vez, numa pequena ermida, ouvir dos lábios de Cristo crucificado: "Francisco, repara a minha Igreja, que ameaça ruína." Espera-se que o Papa Francisco refaça o rosto da Igreja tão desfigurado. No quadro de uma Igreja-instituição descredibilizada, que reforme a Cúria Romana, tornando-a ágil, transparente e colegial. Significativamente, Francisco tem-se referido a si mesmo como bispo de Roma e não como Papa, transmitindo a mensagem de que quer descentralizar, tornando eficaz a colegialidade dos bispos: ele exerce o ministério da unidade numa Igreja solidariamente co-responsável. Francisco tem força e determinação para acabar com os escândalos da pedofilia, do Vatileaks, do Banco do Vaticano.O peruano Vargas Llosa, prémio Nobel da literatura, agnóstico, pensa que Francisco "parece moderno" e espera que "inicie o processo de modernização da Igreja, libertando-a de anacronismos como não tratar temas como o sexo e a mulher". Francisco de Assis impôs-se também pela fraternidade. Como poderá então Francisco Papa esquecer mais de metade dos católicos, as mulheres, ainda discriminadas na Igreja, povo de Deus? Um pormenor: dirigiu-se ao povo como irmãos e "irmãs". E como pode não proceder a uma revisão da atitude da Igreja face ao corpo e à sexualidade? Aí está a questão dos anticonceptivos, do celibato obrigatório - neste domínio, talvez comece pela ordenação de homens casados. Neste contexto de fraternidade franciscana, pode contar-se com a sua luta pela justiça, pelos direitos dos pobres, dos mais débeis, para que todos possam realizar dignamente a sua humanidade. O meio ambiente, os problemas ecológicos, a preservação da natureza, criação de Deus e habitação da humanidade não serão esquecidos.” Anselmo Borges em Artigo de Opinião publicado no DN de 23/03/2013

UNESCO ATRIBUI CÁTEDRA À UNIVERSIDADE DE ÉVORA

Património Cultural Imaterial e Saber Fazer Tradicional
"A UNESCO atribuiu à Universidade de Évora a Cátedra de Património Cultural Imaterial e Saber-Fazer Tradicional, dirigida por Filipe Themudo Barata.
Segundo Filipe Themudo Barata, “a Cátedra assenta numa estreita parceria entre Portugal e Cabo Verde e os resultados desse trabalho poderão ser ampliados ou transferidos para outros países, como Angola e Moçambique”. Ainda segundo este responsável, “os diferentes seminários e palestras serão realizados, preferencialmente, em regime de ensino à distância”. A Cátedra UNESCO na Universidade de Évora integra “ projectos que correspondem a prioridades da UNESCO e às Metas de Desenvolvimento do Milênio”, acrescenta.
Este trabalho baseia-se numa rede de investigadores e instituições na região do Mediterrâneo e em África para apoiar a investigação, a formação, os alunos e a mobilidade dos profissionais, bem como a partilha de conhecimentos nas áreas de património tangível e intangível e do saber fazer tradicional.
Em conjunto com uma ampla rede de parceiros, será desenvolvido e implementado um programa de cooperação para apoiar, do ponto de vista científico, a criação de um centro de investigação de excelência da Universidade de Cabo Verde (UNICV).
É objectivo da Cátedra UNESCO fornecer formação pós-graduada nas áreas de património imaterial e saber-fazer tradicional, bem como oferecer acções de formação de curta duração suportadas em TIC, dirigidas não só a profissionais, mas também a grupos sociais frágeis e marginalizados.
Na Cátedra UNESCO prevê-se que se projectem e implementem actividades que visem melhorar o conhecimento de jovens investigadores e profissionais sobre o património material e imaterial, bem como no saber-fazer tradicional, visando desenvolver as competências de actores públicos e privados a nível local, nacional e regional, nas áreas em foco.
Filipe Themudo Barata foi nomeado Professor Associado de História Medieval, fez a agregação na Universidade de Évora em 2004, onde leciona várias disciplinas e seminários relacionados com História (especialmente Medieval), Património e Museologia. É membro da Comissão Científica e Pedagógica do Mestrado Erasmus Mundus TPTI - Techniques, Patrimoines, Territoires de l'Industrie, membro do Comité de Direcção da Associação HERIMED (Palermo), Professor convidado na Universidade de Cabo Verde e membro associado do Centre d'Histoire des Techniques (Paris Sorbonne - Panthéon). Tem liderado várias equipas de projecto sobre história e património."  + info
 
Assírio & Alvim vai editar obra de Sophia Mello Breyner

“O grupo Porto Editora anunciou no  Dia Mundial da Poesia, a edição completa da obra poética de Sophia de Mello Breyner Andresen.
Em comunicado enviado à Lusa, o grupo revelou que ainda no decorrer de 2013 serão publicados pela Assírio & Alvim as primeiras obras da poetisa portuense: Poesia (originalmente publicado em 1944), Coral de 1950, No Tempo Dividido, de 1954, e de 1958.
Vasco Teixeira, Director editorial do grupo editorial, afirmou que a possibilidade de se publicar a obra poética de Sophia de Mello Breyner Andresen na Assírio & Alvim estava a ser analisada há algum tempo e que este anúncio não podia acontecer em melhor data.
"Estamos particularmente satisfeitos com a concretização deste nosso desejo. A Assírio & Alvim é a casa ideal para dar a visibilidade que a obra poética da Sophia de Mello Breyner Andresen merece", sublinhou Vasco Teixeira.
De lembrar que, em Outubro de 2012, a Porto Editora já tinha assegurado os direitos de edição da obra em prosa da escritora.A obra da escritora estava dispersa por diversas editoras como a Salamandra, Portugália, Livros do Brasil ou Caminho" por Lusa, publicado por João Moço in DN
PORTOCARTOON LANÇA TEMA 2013
Cartaz PortoCartoon
Liberdade, Igualdade e Fraternidade
"- Manoel de Oliveira e Saramago são prémios especiais
O tema “Liberdade, Igualdade e Fraternidade” vai servir de mote para o PortoCartoon - World Festival de 2013.
O convite à participação acaba de ser lançado aos cartoonistas de todo o mundo.
Como se pode ler no Regulamento do PortoCartoon 2013, “vivem-se tempos difíceis e controversos, com o mundo ainda longe dos ideais da revolução francesa: liberdade, igualdade e fraternidade”. Acrescenta o documento, justificando o tema: “O velho mundo está em crise e os chamados 'países emergentes' escondem muita miséria e falta de liberdade real”. Apesar de alguns aparentes 'oásis', lê-se, o individualismo aumenta e, por tudo isso, “vale a pena empunhar, de novo e sempre, os ideais que mudaram o mundo em 1789”.
Excepcionalmente são instituídos  nesta edição do PortoCartoon, dois prémios especiais de caricatura, pela sua oportunidade. Um para celebrar os 104 anos do realizador Manoel de Oliveira que continua filmando. É o mais velho cineasta do mundo no activo  O outro, para evocar José Saramago, prémio Nobel da literatura, que teria 90 anos, se fosse vivo.
Esta será a 15ª edição de uma iniciativa do Museu Nacional da Imprensa que tem estado no pódio do cartoon mundial e que começou em 1998, precisamente com o tema das “Descobertas”, na altura inaugurado pelo Presidente Jorge Sampaio.
Georges Wolinski, um dos mais credenciados cartoonistas da actualidade  voltará a ser o presidente do Júri, reforçando assim a qualidade selectiva que tem sido apanágio do PortoCartoon.
No conjunto das catorze edições anteriores participaram mais de 7000 cartoonistas  dos cinco continentes.
O PortoCartoon tem tido a particularidade de ser subordinado anualmente a um tema de grande relevo internacional. A última edição foi dedicada aos “Ricos, pobres, indignados” e contou com o Presidente da república Cavaco Silva na inauguração. Das edições anteriores poderemos destacar: a Água, a Mudança de Século/Milénio, o Desporto, Gutenberg, a Globalização, Direitos Humanos, as Crises, ‘Aviões e Máquinas Voadoras’ e ‘Comunicação e Tecnologias’."
Museu Nacional da Imprensa 

domingo, 24 de março de 2013

Ao Domingo Há Música


Um poema é sempre escrito numa língua estrangeira
com os contornos duros das consoantes
com a clara música das vogais
Por isso devemos lê-lo ao nível dos seus sons
e apreendê-lo para além do seu sentido
como se ele fosse um fluente felino verde ou com a cor do fogo
O que de vislumbre em vislumbre iremos compreendendo
será a ágil indolência de sucessivas aberturas
em que veremos as labaredas de um outro sentido
tão selvagem e tão preciosamente puro que anulará o sentido das palavras
É assim que lemos não as palavras já formadas
mas o seu nascimento vibrante que nas sílabas circula
ao nível físico do seu fluir oceânico
António Ramos Rosa, in “Deambulações Oblíquas” 2001,Ed. Quetzal

"...quando lemos versos que são realmente admiráveis, realmente bons, temos a tendência para o fazer em voz alta. Um verso bom não permite ser lido em voz baixa, ou em silêncio. Se pudermos fazê-lo, não é um verso válido: o verso exige ser pronunciado. O verso recorda sempre que foi uma arte oral antes de ser uma arte escrita, recorda que foi um canto.” Jorge Luis Borges

E as vozes dos três tenores em Concerto pronunciaram versos sem fim,  nos palcos do Mundo. Em canto sempre reconhecido, Plácido Domingo, José Carreras e Luciano Pavarotti  revestem em fulgor e encanto  a composição "Ti voglio tanto bene" de E. De Curtis e D. Furnò, acompanhados pela Orquestra de Paris, dirigida pelo Maestro James Levine, em Paris, no ano de 1998.

sábado, 23 de março de 2013

Até sempre,Óscar Lopes


Morreu o professor e ensaísta Óscar Lopes
“O ensaísta e crítico literário, Óscar Lopes, professor jubilado da Faculdade de Letras do Porto, morreu esta sexta-feira, aos 95 anos.
Considerado como um dos grandes historiadores da literatura portuguesa, é o autor, com António José Saraiva, de História da Literatura Portuguesa e de A Busca do Sentido. Nasceu em 1917, o ano da revolução bolchevique e da aparição da Senhora de Fátima, no seio de uma família católica, monárquica e conservadora. Da infância, guardou, para sempre, o “espectáculo” medonho da pobreza, das gentes de Leça e Matosinhos. Aos 12 anos, leu A Ilustre Casa de Ramires e, desde então, Eça é a sua figura tutelar.
Chegou à política conspirando com Vitorino Magalhães Godinho e o grupo dos socialistas liderado por António Macedo. Apesar dos comunistas desconfiarem dele, foi pelo seu próprio pé que pediu, em 1944, para entrar no PCP. Crítico — “desde cedo o estalinismo começou-me a fazer doenças de pele, havia brutalidades imensas” —, mantém-se fiel aos ideais comunistas, continua a acreditar na revolução comunista ao mesmo tempo que persiste em tentar perceber e o que é linguagem: “O que é falar? Ainda hoje me preocupa. Se quiser, é a minha religião.”
Aos 19 anos, mudou-se para Lisboa, para estudar Filologia Clássica, na Faculdade de Letras, formação complementada mais tarde em Coimbra, com cadeiras de Histórico-Filosóficas. Os seus primeiros primeiros textos foram sobre música e para um pequeno jornal de Sintra. Óscar Lopes era um amante de música e chegou mesmo a fazer o curso do Conservatório de Música do Porto.
Autor de uma vasta e importante obra no domínio da Linguística, em que se destaca a Gramática Simbólica do Português, o ensaísta chegou tarde à docência na Faculdade de Letras do Porto devido à sua filiação política, tendo mesmo chegado a ser preso duas vezes durante o Estado Novo.
Antes de leccionar na universidade, foi um muito respeitado e acarinhado professor de liceu, lembra Isabel Pires de Lima, catedrática da Faculdade de Letras do Porto e sua amiga. “É uma perda imensa”, disse ao PÚBLICO a ex-ministra da Cultura, que entrou para a docência universitária no mesmo ano de o ensaísta, 1974. “Era uma das pessoas mais disponíveis que conheci. Certamente um dos maiores intelectuais portugueses do século XX. De sempre.”
 A sua extensa bibliografia inclui dezenas de ensaios, estudos e críticas sobre literatura, linguística e cultura portuguesas.
Colaborou ainda em algumas das mais importantes revistas literárias portuguesas, como a Colóquio/Letras e a Seara Nova.
Óscar Lopes foi condecorado em 2006 pelo Presidente da República, Aníbal Cavaco Silva, com a Grã-Cruz da Ordem da Liberdade.
Ainda ao PÚBLICO, numa entrevista que deu a Carlos Câmara Leme, em 1999, dizia que a ideia da História da Literatura Portuguesa partiu de António José Saraiva, em finais dos anos 40: “Tivemos aí uns três anos para meditar. A primeira edição saiu em 1953, já o Saraiva estava em Paris e carteávamo-nos para acertar as coisas”.
Em jovem chegou a escrever poesia e mais tarde tentou o romance. Era irmão de Mécia de Sena, a viúva do escritor Jorge de Sena.
O corpo de Óscar Lopes estará até sábado, hoje, na Associação de Jornalistas e Homens de Letras do Porto, frente ao Café Garça Real, na Praça de D.João I. Às 15h haverá uma breve cerimónia, após a qual o corpo seguirá para o Cemitério de Matosinhos, onde será cremado às 16h30.”Público e outros
Algumas obras de Óscar Lopes:Os Sinais e os Sentidos: Literatura Portuguesa do Século XX(1986), Entre Fialho e Nemésio: Estudos de Literatura Portuguesa Contemporânea (1987) e A Busca de Sentido. Questões de Literatura Portuguesa (1994).

sexta-feira, 22 de março de 2013

Um comboio para Lisboa no Cinema


"Jeremy Irons voltou a Lisboa. Ao fazê-lo, na pele de um professor de literaturas clássicas suíço, Raimund Gregorius, faz uma viagem à procura de si mesmo a pretexto de seguir um livro que encontrou, ou que o encontrou a ele, escrito por um português que passou também ele uma curta vida à procura do sentido da vida e da morte. Sem Deus nem eternidade. «O Comboio Nocturno para Lisboa», do realizador dinamarquês Billie August, estreou esta quinta-feira em Portugal.
A história - uma produção germano suíça, com participação minoritária portuguesa - fala da resistência à ditadura, fala de amores, amizades e traições, mas esta é sobretudo uma história de reflexões e pensamentos sobre o sentido da existência.
O filme do realizador de «A Casa dos Espíritos» e de «Mandela, Meu Prisioneiro, Meu Amigo» - que volta a Lisboa com Jeremy Irons 20 anos depois de terem rodado «A Casa dos Espíritos» - baseia-se no romance homólogo (Nachtzug nach Lissabon) de Pascal Mercier, e desenrola-se na década de 1970, com «visitas» ao passado da época de Salazar. Começa numa manhã chuvosa, quando uma mulher se prepara para saltar de uma ponte de Berna, mas que é salva por Gregorius. A mulher volta a desaparecer, mas deixa para trás o seu casaco vermelho, onde o professor encontra um pequeno livro da autoria do português Amadeu de Almeida Prado, «Um Ourives das Palavras».Lá dentro estão dois bilhetes de comboio para Lisboa e, enquanto procura a misteriosa mulher movido como se por uma força inconsciente, Gregorius vê-se a caminho e chega à cidade branca, luminosa, com o casario a escorregar pelas colinas e os eléctricos amarelos a percorrer as ruas estreitas e íngremes.Ali começa a busca pelo autor do livro, Amadeu de Almeida Prado, um médico de família aristocrática que viveu durante o período do Estado Novo e morreu, em 1974, no dia Revolução.Ao descobri-lo e reconstruir a sua história, o solitário intelectual suíço acaba por fazer a descoberta de si mesmo. Gregorius vai lendo o livro e percorre as ruas e vielas de Lisboa acompanhado pelos pensamentos e reflexões de Prado, um pensador cuja mente brilhante e insaciável pôs em causa os valores da sociedade da época e cedo se desprendeu das baias de uma família que fazia parte do status quo. Juntamente com o melhor amigo, de uma classe social muito inferior, leu e pensou as coisas, juntou-se à Resistência, contestou a ditadura, a religião.
Henri Miller, Karl Max, Jean-Paul Sartre enchiam as leituras de ambos, a sua religião era a Lealdade, os seus valores a Verdade. «Quando a ditadura é um facto, a revolução é um dever», lia-se numa inscrição do seu jazigo.
Mas mais que contestar uma sociedade regida por uma ditadura, Amadeu Prado procurava o sentido mais profundo da vida. «Era um sacerdote ateu», como o descreveu um amigo, que Gregorius foi encontrar num lar de idosos, um antigo pianista cujas mãos tinham sido destruídas pela Pide.
O solitário e até arrogante Gregorius ganhou um novo sentido com as personagens que conheceu. «Eram extraordinários, fazem sentir a minha vida tão insignificante», afirma.
«Deixamos algo de nós para trás quando deixamos os sítios (…) e há coisas em nós que só encontramos quando voltamos lá», escreveu Prado. Gregorius procurou por ele.
No final, a mulher misteriosa regressa e revela a sua identidade. Um pouco forçado."DD
Ficha técnica:
Título: «Comboio Nocturno para Lisboa» Título original: «Night Train to Lisbon»
Realização: Bille August
Elenco: Adriano Luz, August Diehl, Beatriz Batarda, Bruno Ganz, Charlotte Rampling, Jack Huston, Jeremy Irons, Mélanie Laurent e Nicolau Breyner
Género: Drama
Duração: 124 minutos
País: Alemanha
Ano: 2013

Para salvar o Planeta

CAMINHADA DE 1000 PASSOS PELO PLANETA EM LISBOA

"Às 20 horas e 30 minutos (hora local) de sábado, dia 23 de Março, centenas de milhões de pessoas em todo o mundo, independentemente de raça, religião ou localização geográfica juntam-se numa acção simbólica em defesa do ambiente, um momento único de contemplação do planeta e celebração do compromisso de protegê-lo durante todo o ano.
Pelo sétimo ano consecutivo o mundo fica às escuras em sinal de apoio a uma iniciativa que começou em Sydney em 2007.
Caminhada de 1000 passos pelo Planeta em Lisboa
Este ano para assinalar a Hora mais importante do ano, a WWF, em parceria com a MAG -Brand & Entertainment, organiza em Lisboa uma caminhada de 1000 passos pelo Planeta ao longo da Rua de Cintura do Porto (ponto de encontro - Cais da Viscondessa, 20h00). Em simultâneo todos os participantes vão poder ver ao vivo o ‘apagão’ de alguns dos mais emblemáticos monumentos da cidade como o Cristo Rei e a Ponte 25 de Abril; a marcha inicia-se precisamente às 20h30, no momento em que for desligado o interruptor simbólico, que marca o início da Hora do Planeta, instalado na WWF Village.
Esta prova, aberta a todos os cidadãos que nessa hora queiram mostrar o seu compromisso com o Planeta, vai ser identificada pela “luminosidade” das pulseiras glow que serão distribuídas pelos participantes, originando um efeito singular e inédito, fazendo deste evento um momento único de celebração do ambiente.
Ângela Morgado, da WWF, diz que “a caminhada da Hora do Planeta vai envolver famílias e todos os que apoiam o ambiente, incluindo alguns dos nossos embaixadores, numa acção simbólica pelo planeta, por isso a WWF desafia todos para virem até Santos no dia 23 de Março, para se reunirem num objectivo comum – o de mostrar ao mundo que todos temos o poder para mudar o mundo em que vivemos”.
Para participar basta ir ao site da WWF www.wwf.pt e efectuar a inscrição preenchendo o formulário. O custo de participação na "Caminhada Hora do Planeta" é de 7€; 1€ reverterá a favor da WWF e dos seus projectos em Portugal.
Sandra Coias é voz da Hora do Planeta 2013
Sandra Coias, embaixadora da iniciativa desde 2011, é, pelo segundo ano consecutivo, a voz do spot de rádio e televisão da campanha deste ano da Hora do Planeta; com edição da produtora Sync, o spot de de 25 segundos tem locução de Sandra Coias com a música "Without You" de David Guetta e Usher.
Em Portugal a adesão à Hora do Planeta, já conta com três novas caras conhecidas dos portugueses que representam as diferentes gerações que se comprometem pelo nosso Planeta, as actrizes Eunice Munhoz e Beatriz Figueira e a apresentadora Diana Bouça-Nova. Também Joana Seixas (actriz), Sandra Coias (actriz e modelo) e Mário Franco (modelo) já confirmaram que mantém o seu apoio a esta iniciativa e já estão a pensar nos seus compromissos para este ano.
Desde a primeira edição da Hora do Planeta, em 2007, os defensores e apoiantes deste evento global incluem nomes como o prémio Nobel da Paz, Arcebispo Desmond Tutu; o secretário-geral da ONU, Ban Ki-Moon; as actrizes Cate Blanchett e Nicole Kidman, além de Kylie Minogue, Yoko Ono, Ashton Kutcher, a supermodelo brasileira Gisele Bundchen, a apresentadora de TV Jamie Durie, o actor Kevin Bacon, a personalidade televisiva Amanda Holden, a cantora Alexandra Burke, os chefs Bill Granger e Tom Aiken, o vocalista dos Coldplay, Chris Martin, o actor Edward Norton e a modelo da Victoria's Secret, Miranda Kerr.
"A Hora do Planeta é um grande momento para as celebridades e figuras públicas de elevado prestígio usarem a sua influência para chamarem a atenção para os problemas que o nosso planeta está a enfrentar. Este ano, mais do que nunca, pedimos a essas celebridades, não só para incentivarem os seus fãs e simpatizantes a participarem no apagão global, mas também que eles próprios se comprometam a ir mais além nesta luta que é de todos", diz a WWF incentivando as celebridades e as pessoas em geral a partilharem um desafio pessoal com o mundo, sob o mote: "O que estás disposto a fazer para salvar o planeta?"
Breve Resumo Hora do Planeta 2012:
Em 2012, 152 países e territórios participaram na Hora do Planeta, mais de 7000 cidades e localidades juntaram-se à iniciativa e 7 países fizeram o seu desafio IWIYI (Eu faço se tu fizeres). Em Portugal além do apoio de 10 embaixadores (celebridades) à iniciativa, mais de 90 municípios aderiram e 5 centenas de monumentos emblemáticos nacionais ficaram às escuras, como a Ponte 25 de Abril, o Mosteiro dos Jerónimos, o Cristo Rei, em Lisboa e o Convento de Cristo, em Tomar.
2013 – 30 Cidades portuguesas já aderiram à Hora do Planeta, incluindo Lisboa, Faro e Porto
À data de hoje, em Portugal, 20 municípios, onde se inclui a capital Lisboa e as cidades do Porto e Faro, já aderiram à Hora do Planeta 2013 que se celebra no próximo dia 23 de Março. Na noite de 23 de Março, entre as 20H30 e as 21H30, os monumentos mais emblemáticos de cada uma destas cidades portuguesas celebrarão a Hora do Planeta como a Torre de Belém, o Mosteiro dos Jerónimos, os Paços do Concelho e o Padrão das Descobertas e a estátua do Marquês de Pombal em Lisboa, o Santuário do Cristo Rei, a Ponte 25 de Abril, o Palácio de Monserrate, a Igreja do Sameiro, a Torre do Relógio em Albufeira, o Castelo de Montemor-o-Velho são alguns dos monumentos que ficarão apenas iluminados pela luz das estrelas na noite de 23 de Março.
No contexto da plataforma “Eu farei se tu fizeres” as cidades portuguesas comprometem-se com acções positivas pelo ambiente ao longo de todo o ano, se os seus munícipes desligarem as luzes na noite de 23 de Março na Hora do Planeta. Em Loulé, a autarquia promete desligar o stand by de todos os equipamentos eléctricos existentes no município após o horário laboral. Em Ribeira Grande, na última 6ª feira de cada mês, vai ser desligada a iluminação exterior dos edifícios escolares do 1º ensino básico do Concelho. Em Alenquer, a Câmara promete desligar as luzes da fonte cibernética em períodos que não correspondam a épocas festivas.
2013 – Hora do Planeta no mundo
A WWF Rússia lança a Hora do Planeta 2013 com uma petição para proibir o corte industrial de madeira em florestas de protegidas após o sucesso da assinatura de uma lei que o Parlamento russo aprovou para proteger os mares da poluição por hidrocarbonetos como resultado da campanha ‘I Will If You Will’ / Hora do Planeta que a WWF Rússia lançou em 2012.
O Uganda cria a primeira floresta Hora do Planeta uma iniciativa que também representa a luta dos ugandeses para alterar a estatística de 6.000 hectares de desflorestação que ocorre no país, a cada mês. A WWF Uganda identificou cerca de 2.700 hectares de área florestal degradada e definiu uma meta para restaurar esta área com pelo menos 500 mil árvores nativas como parte de sua campanha Hora do Planeta 2013.
Sobre a Hora do Planeta
A Hora do Planeta é uma iniciativa global ambiental em parceria com a WWF. Indivíduos, empresas, governos e comunidades são convidados a desligarem as suas luzes durante uma hora no sábado, dia 23 de Março de 2013 às 20:30 para mostrarem o seu apoio a esta acção ambientalmente sustentável. Em 2012, a Hora do Planeta é I WILL IF YOU WILL (Eu faço se tu fizeres) um conceito que convida pessoas e organizações a desafiarem outros ao mesmo tempo que assumem o seu próprio compromisso ambiental e vão para além da hora. A Hora do Planeta começou numa única cidade em 2007 e em 2012 atingiu mais de 2 mil milhões de pessoas, em 152 países em todos os continentes, recebendo títulos como "a maior campanha do mundo pelo planeta".
A WWF é uma das maiores e mais respeitadas organizações independentes de conservação do mundo, com quase cinco milhões de apoiantes e uma rede global activa em mais de 100 países. A missão da WWF é travar a degradação do ambiente natural do planeta e construir um futuro no qual os seres humanos vivam em harmonia com a natureza, pela conservação da diversidade biológica do mundo, garantindo que a utilização dos recursos naturais renováveis seja sustentável e promovendo a redução da poluição e do desperdício."e-cultura

quinta-feira, 21 de março de 2013

Sobre a Poesia XVII

"O valor das palavras na poesia é o de nos conduzirem ao ponto onde nos esquecemos delas, e o ponto onde nos esquecemos delas é onde nunca mais se pode ter repouso." Natália Correia

No dia mundial da Poesia, publica-se a XVIIª edição de Sobre a Poesia, espaço onde os poetas falam da própria poesia,  preenchida com as  palavras de uma  poeta maior  da literatura portuguesa. Em Março, celebrou-se o dia da Mulher e   assinalando  o 20º  aniversário da morte de Natália Correia ,Coimbra instituiu o Prémio bienal Natália Correia para  distinguir livros de poesia.
"O universo da maternidade configurado na pessoa da mãe, foi a matriz primordial da   forte personalidade de Natália Correia"  que segundo Fernando Rebelo  se destacava «profundamente materna porque  aprendeu com a sua mãe a liberdade de pensar, a dignidade do amor e o sentido da responsabilidade cívica. " Uma mulher extraordinária, uma  escritora multifacetada onde a poesia prevaleceu sobre os outros géneros."Sou uma impudência a mesa posta /de um verso onde o possa escrever /ó subalimentados do sonho ! /a poesia é para comer." 
Celebrar a Poesia com as palavras de Natália Correia é honrar e homenagear o  dia em que, no Mundo, os poetas são os que mais ordenam.


"Natália Correia nasceu a 13 de Setembro de 1923 na Ilha de São Miguel, nos Açores. Veio estudar para Lisboa ainda criança e cedo iniciou a sua actividade literária.Poeta, dramaturga, ficcionista, ensaísta, tradutora, autora de libretos de ópera, foi também colaboradora de vários títulos da imprensa periódica como o Diário de Notícias, a Capital e assumiu cargos directivos em O Século Hoje e na  Vida Mundial. Foi directora literária na Editorial Estúdios Côr (1971) e na Editora Arcádia (1973); argumentista do telefilme Santo Antero, de programas culturais transmitidos pela RTP e emprestou a sua voz para a gravação de textos literários produzidos pela Editora Discográfica Sassetti. Integrou a equipa da Secretaria de Estado da Cultura, em 1977, como consultora cultural, a convite de David Mourão-Ferreira. Opositora ao regime fascista, foi condenada em 1966 a três anos de pena suspensa pela publicação da “Antologia da Poesia Portuguesa Erótica e Satírica”, considerada ofensiva aos costumes. Já em democracia, é eleita para o Parlamento em 1980,  onde se distingue pela defesa dos direitos humanos, das causas da mulher, da cultura e do património. Natália Correia recebeu, em 1991, o Grande Prémio de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores pelo livro Sonetos Românticos. No mesmo ano, a 26 de Novembro, foi feita Grande-Oficial da Ordem da Liberdade." A sua obra está traduzida em várias línguas e galardoada com múltiplos prémios. Natália Correia morreu , em Lisboa, vítima de um enfarte, a 16 de Março de 1993, meses antes de completar 70 anos. 

Tudo chegava pelo lado da sombra
“Tudo chegava pelo lado da sombra, do terror, da pegajosa ignomínia. Os esbirros amordaçavam a luz. Com as mãos mergulhadas nas estrelas que escondia nos bolsos o poeta assobiava uma pátria de brancura e paz. E deu flor: um poema para ensinar risadas de camélias aos animais do medo. O poema foi arrastado para a treva onde os estranguladores da palavra constroem o silêncio da sala de espelhos onde o tirano se masturba. O poema atravessou o inferno e alguns dos seus sons ficaram queimados.
Uma vez exalado o grito de libertação que fez entrar a Cidade no exercício dos seus timbales o poema pediu ao poeta que lhe arrancasse as suas folhas mais ressequidas e em seu lugar pusesse as gotas de água do canto que quer correr para a vida. E o poeta fez a vontade ao poema que queria cantar. E aqui e além o corrigiu dotando-o da actualidade que as máquinas do inferno lhe roubaram.
COMUNICAÇÃO
EM QUE SE DÁ NOTÍCIA
DUMA CIDADE CHAMADA VULGARMENTE
LUSITÂNIA
ATRAVÉS DE ALGUNS FRAGMENTOS
DOS OXYRHYNCHUS PAPYRI
INTERPRETADOS PELA AUTORA
QUE DESEJANDO JULGAR O SEU
TEMPO OUSOU LER NO PASSADO
A SIGNA DO PRESENTE
Recentes escavações feitas no Sudoeste da Europa confirmaram a existência de uma cidade soterrada pelo prodígio diário de um lento e assombroso cataclismo.
Dessa cidade - a Lusitânia - contam contos espantosos que uma mulher a quem chamavam a Feiticeira Cotovia foi condenada às chamas por práticas de uma magia maior e estranha a que ela dava o nome de Poesia. Pronunciada que foi a sentença a misteriosa e sereníssima criatura anunciou com a força coroscante de um fulmíneo augúrio: «O meu corpo em chamas será o rastilho de uma fogueira que consumirá a Lusitânia ano após ano, geração após geração numa combustão invisível e prolongada pela Palavra que fulge no Ponto onde todos os nomes se reúnem na Luz.» E a profecia fez-se lume duradouro porque aquele lume ardia sem matéria pois que era pura chama do Espírito. E os Deuses afagaram as suas pombas porque estavam contentes com o que a Mulher tinha feito.”
Natália Correia, in “Cântico do país emerso, 1961.Poesia Completa”, Publicações Dom  Quixote
O poema

O poema não é o canto
que do grilo para a rosa cresce.
O poema é o grilo
é a rosa
e é aquilo que cresce.

É o pensamento que exclui
uma determinação
na fonte donde ele flui
e naquilo que descreve.
O poema é o que no homem
para lá do homem se atreve.

Os acontecimentos são pedras
e a poesia transcendê-las
na já longínqua noção
de descrevê-las.

E essa própria noção é só
uma saudade que se desvanece
na poesia. Pura intenção
de cantar o que não conhece.
Natália Correia, in “POEMAS, 1955 - Introdução ao mistério da Poesia,Poesia Completa “, Publicações Dom  Quixote
  
Poema involuntário

Decididamente a palavra
quer entrar no poema e dispõe
com caligráfica raiva
do que o poeta no poema põe.

Entretanto o poema subsiste
informal em teus olhos talvez
mas perdido se em precisa palavra
significas o que vês.

Virtualmente teus cabelos sabem
se espalhando avencas no travesseiro
que se eu digo prodigiosos cabelos
as insólitas flores que se abrem
não têm sua cor nem seu cheiro.

Finalmente vejo-te e sei que o mar
o pinheiro a nuvem valem a pena
e é assim que sem poetizar
se faz a si mesmo o poema.
Natália Correia, in «O Vinho e a Lira», Poesia Completa", Publicações Dom  Quixote

Manhã cinzenta

À Partida de São Miguel

Ai madrugada pálida e sombria
em que deixei a terra de meus pais
e aquele adeus que a voz do mar trazia
dum lenço branco, a acenar no cais...

O meu veleiro - era de espuma fria -
Levava-o o fervor dos vendavais.
À passagem gritavam-me: onde vais?
Mas só o meu veleiro respondia.

Cruzei o mar em direcções diferentes.
Por quantas terras fui, por quantas gentes,
Nesta longa viagem que não finda.

Só uma estrada resta - mais nenhuma:
na ilha que o passado envolve em bruma,
um lenço que me acena ainda...
Natália Correia, “in Inéditos, 1941/47 POESIA COMPLETA “, Publicações Dom  Quixote

Do Sentimento trágico da Vida

Não há revolta no homem
que se revolta calçado.
O que nele se revolta
é apenas um bocado
que dentro fica agarrado
à tábua da teoria.

Aquilo que nele mente
e parte em filosofia
é porventura a semente
do fruto que nele nasce
e a sede não lhe alivia.

Revolta é ter-se nascido
sem descobrir o sentido
do que nos há-de matar.

Rebeldia é o que põe
na nossa mão um punhal
para vibrar naquela morte
que nos mata devagar.

E só depois de informado
só depois de esclarecido
rebelde nu e deitado
ironia de saber
o que só então se sabe
e não se pode contar.
Natália Correia, in “POEMAS, 1955 – Apontamentos Poesia Completa”, Publicações Dom  Quixote                                   

Do dever de deslumbrar

A inútil tragédia da vida
Não chega a merecer um poema.
Só o poema merece, por vezes
A inútil tragédia da vida.

As pessoas caem como folhas
E secam no pó do desalento
Se não as leva consigo
A fúria poética do vento.

Para que se justifique a nossa vida
É preciso que alguém a invente em nós.
Os que nunca inspiraram um poema
São as únicas pessoas sós.
Natália Correia, in “Inéditos, 1947/49, Poesia Completa “, Publicações Dom  Quixote                             
Algumas obras de Natália Correia: Poesia – Rio de Nuvens (1947); Poemas (1955); Dimensão Encontrada (1957); Passaporte (1958); Comunicação (1959); Cântico do País Emerso (1961); O Vinho e a Lira (1966); Mátria (1968); As Maçãs de Orestes (1970); Mosca Iluminada (1972); O Anjo do Ocidente à Entrada do Ferro (1973); Poemas a Rebate (1975); Epístola aos Iamitas (1976); O Dilúvio e a Pomba (1979); Sonetos Românticos (1990); O Armistício (1985); O Sol das Noites e o Luar nos Dias (1993); Memória da Sombra (com fotos de António Matos; 1994). Ficção – Anoiteceu no Bairro (1946); A Madona (1968); A Ilha de Circe (1983). Teatro – O Progresso de Édipo (1957); O Homúnculo (1965); O Encoberto (1969); Erros meus, má fortuna, amor ardente (1981); A Pécora (1983). Ensaio – Poesia de arte e Realismo Poético (1958); Uma Estátua para Herodes (1974). Obras várias – Descobri que era Europeia (viagens, 1951); Não Percas a Rosa (diário, 1978); A questão académica de 1907 (1962); Antologia da Poesia Erótica e Satírica (1966); Cantares Galego-Portugueses (1970); Trovas de D. Dinis (1970); A Mulher (1973); O Surrealismo na Poesia Portuguesa (1973); Antologia da Poesia Portuguesa no Período Barroco (1982); A Ilha de São Nunca (1982).