terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Lisboa por José Cardoso Pires

Lisboa vista do rio Tejo
"Logo a abrir, apareces-me pousada sobre o Tejo como uma cidade de navegar. Não  me admiro sempre que me sinto em alturas de abranger o mundo, no pico dum miradouro ou sentado numa nuvem, vejo-te em cidade-nave, barca com ruas e jardins por dentro, e até  a brisa que corre me sabe  a sal.  Há ondas de  mar aberto desenhadas nas tuas calçadas; há âncoras , há sereias. O convés, em praça larga com uma rosa-dos-ventos bordada no empedrado, tem a comandá-lo duas colunas saídas das águas que fazem guarda de honra à partida para os oceanos. Ladeiam a proa ou figuram como tal, é a ideia que dão;  um pouco atrás , está um rei-menino montado  num cavalo verde a olhar, por entre elas, para o outro lado da Terra e a seus pés vêem-se nomes de navegadores e datas de descobrimentos anotados a basalto no terreiro batido pelo sol. Em frente é o rio que corre para os meridianos do paraíso. O tal Tejo de que falam os cronistas enlouquecidos, povoando-o de tritões a cavalo de golfinhos.
(...)" Se fosse Deus parava o sol sobre Lisboa ", escreveu Fernando Assis Pacheco num poema tonto de luz ( a tão citada luz  sempre imprevista). De acordo, mas uma cidade de caprichos como esta nunca o sol a pode iluminar por igual. Tem de se lhe afeiçoar aos contornos e aos instintos desordenados, à sua placidez  aqui, ao burburinho dos bairros velhos  acolá, e é com esses desvelos que ele lhe dá cor singular.
Terreiro do Paço , estátua de D. José e Arco da Rua Augusta
Cor. De Lisboa é caso para dizer que até os daltónicos lhe discutem a cor. Veja  lá , de preferência o ocre pombalino, recomenda um byroniano de passagem. O verde, o verde, contrapõe alguém logo a seguir, com os olhos no Terreiro do Paço, " até o cavalo de D. José  vai ficando verde , comido de mar", já lá dizia Cecília Meireles. Ou o branco , o branco lembra espumas de oceano, cal de muros, Mediterrâneo, " sente-se uma nostalgia branca...", escreveu Mary McCarthy numa Carta de Portugal e Alain Tanner, cineasta civilizado, não esteve com mais aquelas e chamou a isto Cidade Branca.
Cidade Branca, que cegueira a deste Tanner lumière. É cor , o branco do filme dele ou é metáfora? Interroga as impetuosidades duma luz que no mesmo lugar, no mesmo instante e na mesma cor nunca se repete? Pergunto.
Largo de Camões de Abel Manta, (1888-1982)
Por essas e por outras é que a cor da nossa cidade é tão difícil aos pintores. Descobrimo-la por vezes nos desenhos aguarelados de Bernardo Marques, sim, um pouco; ou na suavidade ingénua de Carlos Botelho. Está naquele entardecer quase soturno do " Largo de Camões" de Abel Manta, na " Rua Augusta à Noite" dum modestissimo académico como José Contente ou na descrição do " Alto de Santa Catarina" por João Abel , aí sem dúvida. Podemos vê-la em azul na versão de Vieira da Silva como já a tínhamos visto  num célebre azulejo do século XVIII, mas em Vieira da Siva , Lisboa  é uma memória que lhe ficou no coração porque , mesmo noutros temas bem distantes , muitos dos seus discursos cromáticos são ecos dos azulejos lisboetas na luz e na composição.
(...) " « Noutros tempos , longos tempos , havia uma sereia em Lisboa, uma sereia...» Conheço uns versos de Robert Desnos que começam desta maneira mas é melhor ficar por aqui porque o Tejo não é de fábula nem de poema e corre sem nostalgias. E Lisboa a mesma coisa, disso podemos estar nós bem seguros. Só que, com o saber dos séculos e os sinais de muito mundo que a perfazem, sugere várias leituras, e daí que a cada visitante sua Lisboa, como tantas vezes se ouve dizer.
Grande panorama de Lisboa, a cidade das sete colinas e das mil Igrejas, Sec.XVII
Daí também que nós , os que somos dela, lhe estejamos tão errantes na paixão. Um dia pode acontecer que, sentados como agora sobre o rio , a tentemos ler pela voz dos outros e então ainda nos sentiremos mais errantes, mais incertos. Entre uma Lisboa de Tirso de Molina, saudada como "a oitava maravilha " e a Lisboa que Fielding, o genial , amaldiçoou como um pesadelo leproso, correm águas insondáveis. Beckford viveu-a em palácio, Sade inventou-a num cárcere de rancores. " Lisboa oferece uma apreciável variedade de escolhas para um nobre suicídio", escreveu um dos grandes narradores dela, António Tabuchhi. Vozes , tudo vozes. Olhares. Memorações.
Quando por fim fechamos a página onde líamos a cidade, descobrimos que a vidraça do café  está toldada por uma dança de gaivotas em turbilhão e que não há Tejo. Que desapareceu por detrás de uma desordem  de asas e já não é prenúncio de oceano.
Então, ternamente , confiadamente, reconhecemo-nos ainda mais ancorados  à cidade que nos viu partir." José Cardoso Pires, in " Lisboa, Livro de Bordo, vozes, olhares memorações", Publicações Dom Quixote,1997
Sobre o Livro, nas palavras do autor: Este livro foi um ajuste de contas comigo mesmo para com uma cidade que eu me fartei de ver, e vejo sempre interpretada de uma maneira um bocado convencional e que eu vejo de uma maneira muito diferente.(...) É uma Lisboa que tenho na memória.(…)Neste livro quis fazer outra coisa: uma espécie de levantamento que desse, com toda a sinceridade, o modo como sinto Lisboa. E é aí que o livro me parece muito diferente da Lisboa convencional do Tejo que é bonito, etc. Há ainda muitas coisas que faltam e que espero trabalhar numa próxima edição: a sintaxe lisboeta. Está abordada, mas não aprofundada. E os cheiros... (…)Quis uma coisa leve, não exaustiva. Chamar a atenção para o lado artístico de Lisboa e para o humor de Lisboa. Um tipo só gosta de uma cidade - e é isso que eu pretendia que se sentisse neste meu livro- quando é cúmplice dela. Interrogar a cidade é fácil, isso qualquer turista faz. Mas um tipo só está a viver numa cidade quando se sente interrogado por ela: "O que é que tu tens a ver comigo?", "Porque é que tu estás aqui?", "Como é que tu te adaptas?", "Porque é que tu não te entendes?" Paris, por exemplo, não me interroga, despreza-me. Enquanto que nas cidades de que gosto (Londres, Rio de Janeiro, Barcelona, Praga), sinto-me interrogado. Em toda a parte há bocados de mim.”            
Sobre o autor:
José Augusto Neves Cardoso Pires nasceu no dia 2 de Outubro de 1925 em São João do Peso, Vila de Rei, Castelo Branco, mas veio para Lisboa com poucos meses de idade. Lisboa era a cidade  que conhecia profundamente e pela qual tinha um fascínio muito grande. O seu primeiro livro foi publicado em 1949 e o último em 1997. Considerado um dos maiores escritores portugueses do século XX, deixou-nos uma extensa , extraordinária e premiada obra que se reparte por diversos géneros literários. Viveu intensamente  e soube traduzir essa vivência na escrita, mesmo as experiências trágicas como aquela em que   sofreu um acidente vascular-cerebral ( 1995) e entrou em coma. Dessa passagem  escreveu "De Profundis, Valsa Lenta" (1997) que é apresentado pelo autor como uma “viagem à desmemória”. É a única narrativa da sua obra que pode ser considerada autobiográfica.
Em 1997, ganha o Prémio Pessoa, Prémio D. Dinis da Fundação da Casa de Mateus e Prémio da Crítica da Associação Internacional de Críticos Literários (AICA).
Em Julho de 1998  é internado após novo acidente vascular cerebral. Entra em coma e não mais saiu, vindo a falecer em 26 de Outubro de 1998. A Associação Portuguesa de Escritores (APE) atribui-lhe o Prémio Vida Literária, que foi  entregue à mulher do escritor a 23 de Setembro. 
Eduardo Lourenço define-o como :«Homem, nem de certezas nem de incertezas, nem olímpico nem angustiado, o autor de "O Delfim" investiu-se, como uma espécie de predestinação, no papel de detective por conta própria, apostado na descoberta de enigmas ou crimes, secularmente sepultados, sob o espesso silêncio português, raiz e matriz do tempo sonâmbulo (a frase é dele) que lhe coube viver. Viver e reviver em contos e romances inseparavelmente realistas e alegóricos, onde em quem os ler respirará um pouco aquele ar refeito de um passado português que foi o da sua geração e, eminentemente, o seu.» (Público, 27/10/98)
E Urbano Tavares Rodrigues acrescenta:«José Cardoso Pires foi sem dúvida uma figura cimeira entre os melhores escritores portugueses do seu tempo. A sua linguagem é muito depurada, de um grande rigor, por vezes com conotações bem pessoais e intensamente sugestivas.» (Público, 28/10/98)
OBRAS DE JOSÉ CARDOSO PIRES
CONTOS
1949-Os Caminheiros e Outros Contos,1952-Histórias de Amor,1960-Cartilha do Marialva,1963-Jogos de Azar
1972-Dinossauro Excelentíssimo (fábula),1979-O Burro-em-Pé,1988-A República dos Corvos
ROMANCES
1958-O Anjo Ancorado,1963-O Hóspede de Job,1968-O Delfim,1982-Balada da Praia dos Cães,1987-Alexandra Alpha
TEATRO
1960-O Render dos Heróis,1980-Corpo Delito na Sala de Espelhos
CRÓNICAS, ENSAIOS E OUTROS TEXTOS
1977-E Agora, José?,1994-A Cavalo no Diabo1997-De Profundis-Valsa Lenta1997-Lisboa, Livro de Bordo
PRÉMIOS RECEBIDOS
1963-Prémio Camilo Castelo Branco: O Hóspede de Job-1982-Grande Prémio de Romance e Novela da APE: A Balada da Praia dos Cães-1988-Prémio Especial da Associação de Críticos do Brasil:Alexandra Alpha
1991-Prémio Internacional União Latina-1997-Prémio Pessoa-1997-Prémio D.Dinis: De Profundis, Valsa Lenta
1998-Prémio Vida Literária da APE
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