segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

Sobre a Poesia XVI


Ruy Belo nasceu em S. João da Ribeira em 1933. Estudou Direito, primeiro na Universidade de Coimbra, depois na Universidade de Lisboa, onde se diplomou em 1956. Doutorou-se em Direito Canónico na Universidade de S. Tomás de Aquino, em Roma. Em 1967, concluiu a licenciatura em Filologia Românica, na Faculdade de Letras de Lisboa .De 1971 a 1977 foi Leitor na Universidade de Madrid. Tal como Jorge de Sena foi forçado a sair de Portugal porque não arranjou trabalho. Neste país, não houve lugar para estes dois grandes poetas que foram próximos, amigos. "Portugal não é pátria, mas país" escreveu Ruy Belo.
Professor, editor, poeta , jornalista, tradutor, ensaísta, crítico literário, Ruy Belo morreu subitamente aos 45 anos de idade, em 1978.
O seu nome ocupa um lugar de excelência na poesia portuguesa da segunda metade do séc. XX. Poesia que não é militante, elaborada com uma linguagem inovadora e revolucionária, fora dos cânones do neo-realismo e de qualquer escola. Ruy Belo viveu muito atento à passagem do tempo, à efemeridade, à inquietação, à angústia e fez disso poesia, " a minha vida passou para o dicionário que sou".
Da sua obra poética fazem parte "Aquele Grande Rio Eufrates" (1961), "O Problema da Habitação" (1962), "Boca Bilingue" (1966), "Homem de Palavra(s)" (1969), "Transporte no Tempo" (1973), " País Possível "(1973), " A Margem da Alegria" (1974), "Toda a Terra" (1976),"Despeço-me da Terra da Alegria" (1977).
A Editorial  Assírio & Alvim reuniu a obra Poética de Ruy Belo, publicando-a sob o título de "Todos os Poemas".
Os 50 anos da obra de "Aquele Grande Rio Eufrates", de Ruy Belo, foram assinalados, a 3 e 4 de Novembro de 2011, na Fundação Gulbenkian, com o  colóquio internacional ” Ruy Belo: Homem de Palavra(s)”. Desse evento literário demos conhecimento. A poesia de  Ruy Belo tem sido uma constante presença neste espaço.
Revisitá-lo na XVI edição de “ Sobre a Poesia” é (re)descobrir através das suas palavras o que pensa da poesia, enquanto poeta.   

Breve Programa para uma iniciação ao Canto
“Ao escrever, e independentemente do valor do que escrevo, tenho às vezes a vaga consciência de que contribuo, embora modestamente, para o aperfeiçoamento desta terra onde um dia nasci para nela morrer um dia para sempre. Dou palavras um pouco como as árvores dão frutos, embora de uma forma pouco natural e até antinatural porquanto, sendo como o é a poesia uma forma de cultura, representa uma alteração, um desvio e até uma violência exercidos sobre a natureza. Mas, ao escrever, dou à terra, que para mim é tudo, um pouco do que é da terra. Nesse sentido, escrever é para mim  morrer um pouco, antecipar um regresso definitivo à terra.
Escrevo como vivo, como amo, destruindo-me. Suicido-me nas palavras. Violento-me. Altero uma ordem, uma harmonia, uma paz que, mais do que a paz invocada como instrumento de opressão, mais do que a paz dos cemitérios, é a paz, a harmonia das repartições públicas, dos desfiles militares, da concórdia doméstica, das instituições de benemerência. Ao escrever, mato-me e mato. A poesia é um acto de insubordinação a todos os níveis, desde o nível da linguagem como instrumento de comunicação, até ao nível do conformismo, da conivência com a ordem, qualquer ordem estabelecida.
O poeta deve surpreender-se e surpreender, recusar-se como instituição, fugir da integração, da reforma que até mesmo pessoas e grupos aparentemente progressivos lhe começam subtilmente a tentar impor o mais tardar aos trinta anos. Abaixo o oportunismo, a demagogia, seja a que pretexto for. O poeta deve desconfiar dos aplausos , do êxito e até passar a abominar o que escreveu logo depois de o ter escrito. Numa sociedade onde quase todos , pertencentes a quase todos os sectores, procuram afinal instalar-se o mais cedo possível, permanecer fiéis à imagem que de si próprios criaram pessoalmente ou por interpostas pessoas, o poeta denuncia-se e denuncia, introduz a intranquilidade nas consciências , nas correntes literárias ou ideológicas, na ordem pública, nas organizações patrióticas ou nas patrióticas organizações.
Escrever é desconcertar, perturbar e, em certa medida, agredir. Alguém se encarregará de institucionalizar o escritor , desde os amigos, os conterrâneos, os companheiros de luta, até todas aquelas pessoas ou coisas que abominou e combateu. Acabarão por lhe encontrar coerência, evolução harmoniosa, enquadramento numa tradição.  Servir-se-ão dele, utilizá-lo-ão, homenageá-lo-ão. Sabem que assim o conseguirão calar, amordaçar, reduzir.
É claro que falo do poeta e não do poetastro, do industrial e comerciante de poemas, do promotor da venda das palavras que proferiu. Falo do homem que nunca repousou sobre o que escreveu, que se recusou a servir-se a si e a servir, que constantemente se sublevou.
Falo do homem que, ombro a ombro com os oprimidos, empunhando a palavra como uma enxada ou uma arma, encontrou ou pelo menos procurou na linguagem  um contorno para o silêncio que há no vento, no mar,  nos campos.
O poeta , sensível e até mais sensível porventura que os outros homens imolou o coração à palavra, fugiu da autobiografia, tentou evitar a todo o custo a vida privada.  Ai dele se não desceu à rua, se não sujou as mãos nos problemas  do seu tempo, mas ai dele também se, sem esperar por uma imortalidade rotundamente incompatível com a sua condição mortal, não teve sempre os olhos postos no futuro, no dia de amanhã, quando houver mais justiça, mais beleza sobre esta terra sob a qual jazerá, finalmente tranquilo, finalmente pacífico, finalmente adormecido, finalmente senhor e súbdito do silêncio que em  vão tentou apreender com palavras , finalmente disponível não já tanto para o som dos sinos como para o som dos guizos e chocalhos dos animais que comem  a erva que afinal pôde crescer no solo que ele, apodrecendo, adubou o seu corpo merecidamente morto e sepultado.”
Ruy Belo, “ Transporte no Tempo”, in “ Todos os Poemas”,Vol.II, Editora Assírio & Alvim 
Enterro sob o Sol
Era a calma do mar naquele olhar
Ela era semelhante a uma manhã
Teria a juventude de um mineral
Passeava por vezes pelas ruas
e  as ruas uma a uma eram reais
Era o cume da esperança: eternizava
cada uma das coisas que tocava
Mas hoje é tudo como um fruto de setembro
ó meu jardim sujeito à invernia
A aurora  da cólera desponta
já não sei da idade do amor
Só me resta colher as uvas do castigo
Sou um alucinado pela  sede
Caminho pela areia dêem-me um
Enterro sob o sol enterro de água
Ruy Belo, “Monte Abrão”, in “ Todos os Poemas” Vol.II, Editora Assírio & Alvim  
                                                                                                                             
Mas que sei eu
Mas que sei eu das folhas no outono
ao vento vorazmente arremessadas
quando eu passo pelas madrugadas
tal como passaria qualquer dono?

Eu sei que é vão o vento e lento o sono
e acabam coisas mal principiadas
 no ínvio precipício das geadas
que pressinto no meu fundo abandono

Nenhum súbito  súbdito lamenta
a dor de assim passar que me atormenta
e me ergue no ar como outra folha

qualquer. Mas eu que sei destas manhãs?
As coisas vêm vão e são tão vãs
como este olhar que ignoro que me olha
Ruy Belo, “Monte Abrão”, in “ Todos os Poemas” Vol.II, Editora Assírio & Alvim  

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