quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

Os homens matam e morrem


Hotel América
 por *Milton Hatoum

"Quando ele fechou a porta, a palavra América piscou e acendeu, anunciando a noite
Aquele sábado já tão distante não prometia tumulto. No fim da tarde os dois homens saíram à rua quase ao mesmo tempo. O primeiro deixou uma pensão modesta, na esquina da Joaquim Sarmento com a Sete de Setembro. Lembro que uns cachorros feios dormiam por ali. O segundo homem deixou o hotel América no outro lado da rua coberta de pedras.Eram altos, talvez altos demais para um menino sentado num carro pequeno. O terceiro homem estava ausente: era meu tio, que tinha acabado de entrar em seu escritório na Joaquim Sarmento para apanhar um documento. Devia esperá-lo dentro do carro, e assim fiz. Os dois homens se encontraram no meio da rua: estavam bem vestidos, roupa engomada e sapatos engraxados. Alinhados, como se dizia. Um deles, ao tirar o chapéu, mostrou a cabeça calva e avermelhada. O outro, de cabelo grisalho, tinha o rosto dividido por uma pequena mancha preta. Eu era tão jovem que não sabia calcular a idade deles. Quarenta ou cinquenta anos? Eu tinha onze, e minha infância terminou naquele anoitecer. Me impressionou a deferência quase cavalheiresca do encontro: o aperto de mãos breve, mas cordato. Não podia escutar a conversa dos dois, mas podia intuir a cumplicidade entre amigos. Porque eles se olhavam mais do que falavam. E em algum momento sorriram.Se todos os homens fossem assim, haveria menos ódio? Seis batidas dos sinos da matriz soaram na tarde que se acabava: mais um sábado sem graça, no começo de uma juventude entediada. O que haveria além da praça, além do rio e da floresta? Os dois homens vinham de muito longe, de um lugar que só cabia na imaginação. Forasteiros. E alguma coisa os unia na cidade estranha. Não pareciam turistas. E só no dia seguinte soube o nome e a profissão deles, mas isso não importa. Despediram-se com um cumprimento mais demorado e caloroso. O grisalho ofereceu ao outro um cigarro, ambos fumaram em silêncio, enquanto a fachada dos edifícios e as palmeiras da praça perdiam o brilho no pôr-do-sol precipitado do equador. 
O calvo ficou parado, o chapéu preso ao sovaco do braço esquerdo, a mão direita solta, o cigarro na boca: um ponto avermelhado que acendia e apagava, a fumaça expelida pelo nariz em brasa. O homem grisalho começou a andar na minha direcção. Eu ia me abaixar para não ser visto, mas permaneci sentado, pois ele olhava as pedras da rua e caminhava lentamente, como se cada passo, curto e calculado, reiterasse uma decisão grave. Parou a poucos metros do carro; então notei que a mancha no rosto era um bigode espesso, que o envelhecia e dava-lhe um ar destemido. Em algum momento virou o rosto para a porta do escritório do meu tio. Um mau presságio invadiu meu pensamento, como um ruído na tarde quieta. Depois o homem grisalho olhou para a fachada do hotel América, e sorriu para alguém que eu não pude enxergar. Ou sorriu para ele mesmo, como acontece com você, com todos nós em algum momento do dia ou da vida. 
Mais longe de mim, o calvo continuava no mesmo lugar, o cigarro no centro do rosto sério. O chapéu de abas curtas, cinzento e feio, estava no chão, perto dos pés. 
O grisalho ficou de frente para o outro. Assim, parados como dois homens de pedra, eles enchiam a rua de austeridade. Esperavam por alguém ou se despediam em silêncio. Um silêncio demorado, estranho. Não sei por quê, senti medo; ou tive consciência de que algo podia acontecer na cidade, na vida. Na porta do escritório entreaberta apareceu o rosto do meu tio. Acenei para ele com timidez, e sua resposta foi um gesto rápido e brusco, que eu não entendi. Quando ele fechou a porta, a palavra América piscou e acendeu, anunciando a noite. Na única janela aberta do hotel vi, de relance, a cabeça de uma mulher, o cabelo amarelo tapando a metade do rosto. Parecia uma pintura com pouca luz, emoldurada por sombras; pensei no quadro de um amigo que queria ser artista, mas foi o pensamento de um instante porque um barulho seco e forte me assustou. Na rua, o homem calvo segurava uma pistola e pisava o chapéu, a bagana ainda na boca. Vi várias pessoas na calçada do América. Uma mulher alta e loura correu no meio da rua e sumiu como um fantasma. Saí do carro, procurei o homem grisalho e vi a mulher debruçada sobre o corpo dele, beijando-lhe os olhos. Ia me aproximar dos dois, mas meu tio segurou meus braços e disse Volta para o carro. Ainda insisti, porque nunca tinha visto uma mulher beijar um rosto ensanguentado.
Entra e vamos embora, gritou meu tio. Ele está morto. Morreu no duelo.
Eu olhava a mulher em prantos, beijando o morto e tentando erguê-lo. O outro, o calvo, era um homem quieto. Ninguém ousava se aproximar dele. Cuspiu a bagana, largou a pistola e cruzou os braços. 
Quando o carro deu marcha a ré, perguntei por que tinham duelado.
Por paixão, disse meu tio. Amor louco, ciúme... Os homens matam e morrem por ciúme e dinheiro." Milton Hatoum,em artigo publicado no nº 23 de “EntreLivros”

*Milton Hatoum nasceu em Manaus, Brasil, em 1952. Estudou arquitectura e ensinou literatura brasileira nas universidades do Amazonas e da Califórnia, em Berkeley. Pela sua primeira obra de  ficção  – Relato de um Certo Oriente -, publicada em 1990, recebeu o prémio Jabuti de melhor romance . Duas outras obras se seguiram – Dois Irmãos, de 2001, e Cinzas do Norte, de 2006 –, ambas igualmente laureadas com o Prémio Jabuti, e esta última premiada com o Prémio Portugal Telecom de Literatura. É um dos grandes escritores vivos da Literatura Brasileira. Os seus livros já foram editados em diversos países, entre eles a França, Inglaterra, Portugal, Estados Unidos, Itália, Espanha, Alemanha, Holanda, Grécia e Líbano. 

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