sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

Amigo dos Amigos

Rio Vltav, Ponte Carlos ( Karlův most), Praga
"Digo no meu livro " En esto creo ": " O que não temos encontramos no amigo ." Gabo  ( Gabriel García Márquez) e eu partilhamos muitas amizades e muitas inimizades. Na política são inevitáveis as diferenças de opinião e a prova da amizade é que o que poderia separar-nos nos une ainda mais : o respeito. Deixo  de lado a nossa conflituosa latino-americanidade, pensando às vezes que a América latina só se concebe a si mesma, política e economicamente, como um problema que obriga o mundo a reparar em nós e, uma e outra vez, a resgatar-nos da nossa própria incompetência. Gabo é fascinado pelo fenómeno do poder e " O Outono do Patriarca " não apenas dá fé, como encarna em todas as direcções o picaresco e a tragédia do poder. Do meu ponto de vista, na nossa relação com homens de poder, destacaria três. Com François Mitterrand, um demónio de inteligência, cultura literária e maquiavelismo político. Nas suas memórias, " A Palha e o Grão", Mitterrand recorda que foi outro queridissimo amigo comum, Pablo Neruda, quem lhe disse: " Leia imediatamente  " Cem Anos de Solidão " . É o mais belo romance produzido pela América latina desde a última guerra." Mitterrand conhece García Márquez e escreve : " É um homem idêntico à sua obra. Quadrado, sólido, risonho e silencioso. " Com William Styron, Arthur Miller e  García Márquez, assisti à pomposa inauguração do Presidente Mitterrand, em Maio de 1981. Durante o almoço de estado no Eliseu, o novo presidente pediu-nos que o acompanhássemos ao seu gabinete para testemunharmos o seu primeiro acto de governo: assinar volumosos decretos outorgando a nacionalidade francesa  a Milan Kundera e Julio Cortázar, ambos exilados por ditaduras , comunista a de Praga, fascista a de Buenos Aires.  A cultura literária de um  presidente francês nunca surpreende. Neruda contou-me que as suas reuniões com o presidente  Pompidou, sendo Pablo  embaixador  do Chile em França, tinham como pretexto discutir a política económica do Clube de Paris, mas na realidade eram longas conversas sobre a poesia de Baudelaire. O que surpreende é que um presidente dos Estados Unidos leia livros. Coisa  que Gabo e eu descobrimos uma noite em Martha's Vineyard, ouvindo Bill Clinton recitar de memória passagens inteiras de Faulkner, demonstrar que tinha lido o " D. Quixote " e por que razão Marco Aurélio era o seu autor de cabeceira. Pergunta desnecessária: O que terá lido Bush?  E para fechar o capítulo político, outro leitor-estadista : Felipe González, um homem que fala como um livro porque pensa como um livro porque leu todos os livros e, no entanto - oh, Mallarmé - não está triste. Digo que Gabo  e eu temos tido muitos amigos e inimigos literários - nem sempre partilhados. - Mas olhando a nossa vida de capítulos intercambiáveis, creio que há um amigo escritor ou , melhor  dizendo, um escritor amigo de ambos que Gabo e eu colocamos acima de todos. É Júlio Cortázar  e creio que nem Gabo nem eu seríamos o que somos ou o que ainda quisermos ser sem a radiosa amizade do Gran Cronopio. Em Cortázar marcavam encontro o génio literário e a modéstia pessoal, a cultura universal e a coragem local ( " As Malvinas são argentinas - costumava dizer. - Os desaparecidos também".) Tinha lido tudo, visto tudo, só para partilhar tudo. Uma das noites inesquecíveis da nossa amizade ocorreu no comboio  Paris-Praga, em Dezembro de 1968. Íamos convidados por Kundera para manter a ficção - quer dizer, a esperança - de uma cultura checa independente num país  rodeado de tanques soviéticos. Cotázar foi alinhavando temas como um contista árabe da praça de Marraqueche. Recordou todos os romances que sucediam em comboios, em seguida os filmes em comboios e, por último, a partir do swing de Glenn Miller, o ritmo de locomotora do jazz e, em especial, uma memória assombrosa da relação entre o jazz e o piano... Quando chegámos de madrugada a Praga, esperava-nos na estação Kundera, que nos levou , a Gabo e a mim, a uma sauna, e quando pedimos um duche para tirarmos o calor, Milan conduziu-nos ao rio Vltava e empurrou-nos,  nus como minhocas, para a água congelada. Recordo o comentário de Gabo quando saímos roxos do rio: " Por um instante Carlos, julguei que íamos morrer juntos na terra de Kafka".
* Carlos Fuentes , in " Gabo , Memórias da Memória", Livro integrante da 1ª edição das memórias de Gabriel Garcías Márquez , "Viver para Contá-la", Ed. D. Quixote, Abril de 2003
*Carlos Fuentes nasceu no México em 1928. Intelectual consagrado e um dos principais expoentes da narrativa latino-americana, é autor de uma vasta obra que inclui romances, contos, teatro e ensaio. Ao longo da sua carreira recebeu numerosos prémios, entre eles o Prémio Cervantes (1987) e o Prémio Príncipe das Astúrias (1994). Em 2003 foi condecorado com a Legião de Honra pelo governo francês e em 2008 recebeu a Grã-Cruz da Ordem de Isabel a Católica. Era também conhecido pelo seu olhar crítico sobre a sociedade mexicana contemporânea e a política neoconservadora do ex-presidente americano George W. Bush.
Carlos Fuentes começou a escrever aos 29 anos e o seu último romance “Adão no Éden” foi publicado  pela Porto Editora, em 2012, ano da sua morte, aos 83 anos num hospital da Cidade do México. 

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