segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

Um Fim de Ano

Cartoon Rodrigo, Expresso

 Estamos no último dia de 2012. Ao longo deste ano,fizemos referência a muitas obras literárias. Muita prosa , imensa poesia, e muito mais. O romance “ O retorno” foi uma dessas obras aqui  mencionadas. O Jornal Globo publicou, no dia 28 do corrente mês, a lista  dos melhores livros de 2012 onde  consta o livro "O Retorno", da portuguesa Dulce Maria Cardoso, lançado este ano no Brasil.
Refere a Agência Lusa que “A selecção anual, feita pela equipa do suplemento literário de O Globo, apresenta 15 títulos, que incluem obras de ficção e não-ficção de autores brasileiros e estrangeiros.
Entre os brasileiros estão "Solidão Continental", de João Gilberto Noll, "Formas do Nada", do poeta Paulo Henrique Britto, "Um útero é do tamanho de um punho", de Angélica Freitas, e "Barba Ensopada de Sangue", de Daniel Galera.
Além do livro de Dulce Maria Cardoso, apenas três títulos não são de autores brasileiros.
A norte-americana Jennifer Egan, com "A visita cruel do tempo", o poeta sírio Adonis, com a colectânea "Poemas", e o britânico Julian Barnes com "O Sentido de um fim" são os outros autores estrangeiros incluídos na selecção do jornal.
"O Retorno", editado pela Tinta da China, foi lançado no Brasil em Julho passado, durante a participação de Dulce Maria Cardoso na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip).”
 “ O retorno” foi considerado o Livro do ano pelos jornais Público, Expresso e revista Ler. Recebeu o Prémio especial da Crítica de 2011.

Sobre o livro:
"1975 Luanda. A descolonização instiga ódios e guerras. Os brancos debandam e em poucos meses chegam a Portugal mais de meio milhão de pessoas. O processo revolucionário está no seu auge e os retornados são recebidos com desconfiança e hostilidade. Muitos não têm para onde ir nem do que viver. Rui tem quinze anos e é um deles.
1975. Lisboa. Durante mais de um ano, Rui e a família vivem num quarto de um hotel de 5 estrelas a abarrotar de retornados — um improvável purgatório sem salvação garantida que se degrada de dia para dia. A adolescência torna­-se uma espera assustada pela idade adulta: aprender o desespero e a raiva, reaprender o amor, inventar a esperança. África sempre presente mas cada vez mais longe."

E porque termina o ano de 2012  , transcreve-se um excerto desse romance  relativo ao término do ano 1974 , em Luanda , na noite de  passagem de ano.

“ Na mesma noite em que o Sr. Manuel partiu com a família no Príncipe Perfeito, fomos à farra da passagem de ano, a minha irmã vestiu uma maxi-saia  e pintou-se a sério pela primeira vez, estava bonita como nunca a tinha visto, o pai olhava para a multidão que dançava na festa , o copo cheio de Ye Monks, o pai perguntava, como é que esta gente toda pode lá ir embora, a mãe bebia gasosa por um copo de pé alto, parecia uma actriz de cinema só que menos bonita. Aquela gente não pôde ter ido embora. O conjunto desafinava mas ninguém deixava de dançar por causa disso, estava  à toa na vida , o meu amor me chamou, pra ver a banda passar cantando coisas de amor, a minha gente sofrida, despedia-se da dor, pra ver a banda passar cantando coisas de amor, as pessoas atreladas umas nas outras, as filas cada vez maior e as voltas na sala do clube cada vez mais pequenas, nada tinha mudado, a banda passava cantando coisas de amor e a gente sofrida despedia-se da dor, o pai começou a beber Ye Monks da garrafa, a mãe nunca bebe por causa dos comprimidos mas naquela noite bebeu e dançou para o pai, estava tanta gente  à roda a bater palmas enquanto a mãe dançava para o pai, não se podem ter ido todos embora , ainda não tinham dado as badaladas da meia-noite e as rabanadas já tinham azedado em cima das mesas, as broas secas como palha, toda a gente se queixava do maldito calor que dá cabo de tudo Quando começaram os slows convidei a Paula para dançar , as minhas mãos no pescoço da Paula, a pele da Paula tão macia, 1975 ia ser um ano bom, se calhar o melhor ano das nossas vidas, íamos deixar de ser portugueses de segunda, o futuro era aqui, o pai estava certo apesar das chaimites nas ruas e dos tiros que tinham começado (…), mas também dizia que não havia mais nada na metrópole do que fome e piolhos , ou que as vizinhas eram todas mal casadas, não é que o pai pensasse assim, a culpa era do Ye Monks, a cidade estava em festa mas não interessava, a mãe cantava acompanhando a desafinação do conjunto, mas para meu desencanto, o que era doce acabou, tudo tomou o seu lugar, depois que a banda passou, e cada qual no seu canto, em cada canto uma dor , depois de a banda passar, cantando coisa de amor, é dançar minha gente como se não houvesse amanhã, as serpentinas agarravam-se às costas nuas das raparigas suadas, os confeitos não paravam de cair  em todo o lado, as lentes dos óculos  da D. Magui cheias de confeitos colados, não aproveites para olhar para as brasas  de minissaia, o marido da D. Magui riu-se mostrando o canino de ouro e fez a D. Magui rodopiar-lhe nos braços  como se fossem um casal novo (…) A banda nunca ia deixar de passar cantando coisas de amor, o futuro ia acontecer sem grandes sobressaltos como os futuros  devem acontecer, a Paula ia aceitar o meu pedido de namoro e ia deixar-me desapertar-lhe o sutiã, eu ia tirar a carta de condução e levá-la ao cinema Miramar, o pai ia tirar letras no banco para comprar a Scania que estava em exposição no stand da Baixa, a cabeça da mãe nunca mais teria  crises, a minha irmã ia terminar o sétimo ano e arranjar um namorado melhor que o Roberto que estava   apaixonado pela Lena indiana que gostava do Carlos, a Pirata ia morrer de velha como o Bardino morreu e anos antes do Bardino a Jane, as vizinhas  iam continuar a levar a mal à mãe  o que não podiam mesmo deixar de levar a mal, só ia mudar o que fosse necessário para a nossa vida ficar ainda mais igual à vida que o pai tinha pensado quando embarcou no Pátria.
Durante as primeiras horas de 1975 todos tinham de concordar que o Sr. Manuel tinha sido um profeta agoirento, não ia haver um mar de sangue, 61 estava enterrado como os mortos que tinha feito.(…) Quando voltámos para o pé dos outros a festa estava a acabar. Fomos para casa e o pai abriu mais uma garrafa de Ye Monks, quis que brindássemos outra vez a 1975, a minha irmã brindou com água, a mãe aflita a dizer que dava azar, crendices , deixa-te de crendices, mulher, brindámos a 1975 que ia ser o melhor ano das nossas vidas.” Dulce Maria Cardoso, in “ O retorno”, Edições Tinta –da-China, 2011

domingo, 30 de dezembro de 2012

Ao Domingo Há Música



TANTO SILÊNCIO

Para cá de mim e para lá de mim, antes e depois.
E entre mim eu, isto é, palavras,
formas indecisas
procurando um eixo que
lhes dê peso, um sentido capaz de conter
a sua inocência
uma voz (uma palavra) a que se prender
antes de se despedaçarem
contra tanto silêncio.
São elas, as tuas palavras, quem diz "eu";
se tiveres ouvidos suficientemente privados
podes escutar o seu coração
pulsando sob a palavra da tua existência,
entre o para cá de ti e o para lá de ti.
Tu és aquilo que as tuas palavras ouvem,
ouves o teu coração (as tuas palavras "o teu coração")?
Manuel António Pina, in "Os livros", Ed. Assirio & Alvim, 2003

As palavras de Manuel  António Pina, poeta maior da Literatura Portuguesa, que nos deixou neste ano e o grito no silêncio do retorno, em "Un bel di vedremo " da Ópera "Butterfly" de Puccini, na  voz prodigiosa de Ying Huang , encerram os Domingos de 2012. 
Esperando  continuar a " escutar o coração" em 2013, tenham um excelente Ano Novo.



Un bel dì, vedremo
levarsi un fil di fumo
dall'estremo confin del mare. E poi la nave
appare. Poi la nave bianca
entra nel porto, romba il
suo saluto. Vedi? È venuto!
Io non gli scendo incontro.
Io no. Mi metto là sul ciglio del
colle e aspetto, e aspetto gran tempo
e non mi pesa, la lunga attesa.
E uscito dalla folla cittadina
un uomo, un picciol punto
s'avvia per la collina.
Chi sarà? chi sarà?
E come sarà giunto
che dirà? che dirà? Chiamerà
Butterfly dalla lontana.
Io senza dar risposta
me ne starò nascosta un po' per celia...
e un po' per non morire
al primo incontro,
ed egli alquanto in pena chiamerà, chiamerà:
piccina mogliettina olezzo di verbena,
i nomi che mi dava
al suo venire
Tutto questo avverrà, te lo prometto.
Tienti la tua paura,
io con sicura fede l'aspetto.

sábado, 29 de dezembro de 2012

O pensamento na Poesia

 No seu último ensaio, "A Poesia do Pensamento", George Steiner "apresenta-nos uma profunda análise da relação entre a filosofia ocidental e a sua linguagem.De forma precisa e pormenorizada, Steiner analisa mais de dois milénios de cultura ocidental, entrelaçando filosofia e literatura. O resultado evidencia que em toda a filosofia existe literatura oculta.
Steiner acredita que «o génio poético do pensamento abstracto se ilumina, se torna audível. O próprio raciocínio analítico tem o seu ritmo percussivo. Torna-se ode. Haverá melhor expressão dos andamentos finais da Fenomenologiade Hegel do que o non, rien de rien de Edith Piaf, uma dupla negação que Hegel teria apreciado? Este ensaio é uma tentativa de escutar melhor», um esforço do autor para integrar tudo o que até hoje escreveu sobre cultura."
Eis um pequeno excerto dessa excepcional obra:

"Este ensaio mais não fez do que arranhar a superfície. Os embates, as cumplicidades, as  interpretações e amálgamas entre a filosofia e a literatura, entre o poema e o tratado metafísico são uma constante. Para além da escrita,  estendem-se à música. Às belas-artes ( como o testemunha, datado de 1999, o perturbante busto de Sócrates por Egbert Verbeeck). Os temas platónicos proliferam. Não referi o “ De Amore” ( 1469) de Ficino, o “ Alcibiades” (1675) de Thomas Otway,  o influente “ Gespprache des Sokrates” (1756) de Wieland nem o “ Socrate” (1759) de Voltaire, marcado pela sua abominação de Aristófanes, que o autor considerava em parte culpado do destino de Sócrates.(…) A tradução que Shelley fez do “Banquete” foi igualmente encenada . O fascínio persiste.
Há os que negam qualquer diferença essencial. Para Montaigne, toda a filosofia “ n’est qu’une poésie sophistiquée”. Não há oposição. “ Cada uma delas faz a dificuldade da outra. Juntas são a própria dificuldade: de fazer sentido”( Jean-Luc  Nancy). Outros consideraram as intimidades entre o filosófico e o poético incestuosa e reciprocamente funestas. Husserl , por exemplo.
O ponto que tentei elucidar é simples: a literatura e a filosofia, como as conhecemos, são produtos da linguagem. É esse, inalteravelmente, o seu solo comum, ontológico e substantivo. O pensamento na poesia , a poética do pensamento, são obras da gramática, da linguagem em movimento. Os seus meios, as imposições que os constrangem , são os do estilo. O indizível, no sentido imediato da palavra, circunscreve-os a ambos. A poesia visa reinventar a linguagem, fazê-la de novo. A filosofia esforça-se por tornar a linguagem rigorosamente transparente, purgá-la de ambiguidade e de confusão. Por vezes, esforça-se por superar as limitações lexicais e sintácticas e o conjunto das atrofias herdadas, recorrendo à lógica formal e aos algoritmos metamatemáticos, como no caso de Frege. Mas a matriz total continua a ser o discurso humano. Este aspecto tem uma ilustração soberba no “ Zibaldone” de Leopardi. A seu ver, não havia poesia válida sem filosofia;  nem, sem poesia, filosofia que valesse a pena aprender. O acesso generativo a uma e a outra é uma filologia apaixonante. Leopardi examina por meio de uma erudição muitas vezes microscópica as unidades lexicais, as ordens gramaticais e as aplicações pragmáticas. Deus – ou por outras palavras, o milagre do sentido comunicável – reside no pormenor linguístico. Como vemos no cabalista que deriva da simples letra os próprios impulso  e magia da criação. As letras estão escritas no fogo primordial. Da incandescência deste, vêm toda a filosofia, toda a poesia – e os paradoxos do seu uníssono autónomo.
Sugeri que esta concepção da linguagem como núcleo que define a existência – como doação , em última instância teológica, da humanidade ao homem – se encontra hoje em refluxo. Que nem no seu estatuto ontológico, nem no seu alcance existencial , a palavra mantém a sua centralidade tradicional. Sob muitos aspectos, este pequeno livro, bem como o interesse e atenção que espera dos seus leitores – estatisticamente, uma ténue  minoria – são  já arcaicos. Reportam-se, por exemplo, às artes monásticas da atenção da Alta Idade Média ou à biblioteca vitoriana. Convivem mal com a redução dos textos literários nos ecrãs ou com a anti-retórica do blogue. A simples sobrevivência de um ensaio deste género depende da sua acessibilidade on-line.O futuro do armazenamento dispendioso – e, ao mesmo tempo, já quase incontrolável, de tão pletórico – nas bibliotecas públicas e universitárias é cada vez mais questionável.
As novas tecnologias atingem o coração da linguagem. Nos Estados  Unidos , a faixa etária dos oito aos dezoito anos passa cerca de onze horas por dia acoplada aos suportes da comunicação electrónica. A conversa limita-se cara  a cara. A realidade torna-se a realidade virtual dos ciberespaços. Os computadores portáteis, os iPods , os telemóveis, o email, a Web planetária e a Internet modificam a consciência. O funcionamento mental é alimentado por cabo. A memória compõe-se de dados recuperáveis . O silêncio e a intimidade privada, as coordenadas clássicas  dos encontros  com o poema e com o enunciado filosófico tornam-se ideológica e socialmente luxos suspeitos. Um crítico, Crowther, escreve: “ A cacofonia dentro e fora das nossas cabeças assassinou o silêncio e a reflexão.” Estado de coisas que poderá vir a revelar-se terminal, uma vez que a qualidade do silêncio se encontra organicamente ligada à da palavra. Nenhum dos dois pode aceder à sua força plena na falta do outro.(…)
Há no horizonte a perspectiva de descobertas bioquímicas e neurológicas que demonstrarão que os processos inventivos e cognitivos da psique humana são, em última instância , de origem material. Que até mesmo a conjectura metafísica ou o achado poético maior são formas complexas de química molecular.
Não é uma visão da qual uma consciência obsolescente ,  e muitas  vezes tecnófoba, como a minha possa extrair conforto. Vem depois das “humanidades” que tão desoladoramente nos faltaram na longa noite do século XX. Mas talvez seja uma aventura formidável. E algures  um cantor rebelde, um filósofo que a solidão embriague, dirá “ Não”. Uma sílaba carregada da promessa da criação. “
George Steiner, in “ A Poesia do Pensamento, Do Helenismo a Celan”, Relógio D’Água Editores, Setembro 2012

sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

2012 em revisão


2012 (Next) Year in Review
O cartoonista Patrick Chappatte do  International Herald Tribune faz uma revisão do ano de 2012. 
Ver2012 (Next) Year in Review

A "PALAVRA DO ANO" DE 2012 SERÁ ESCOLHIDA PELOS PORTUGUESES
Linguistas do Departamento de Dicionários da Porto Editora apontam as 10 palavras que marcaram este ano. A escolha será feita por votação online.
Em 2009, foi "Esmiuçar". Em 2010, "Vuvuzela". Em 2011, "Austeridade". Qual será a "Palavra do Ano" de 2012?
A resposta será conhecida no início de 2013 e será dada pelos portugueses, que poderão votar através do site www.portoeditora.pt/palavradoano até às 23:59 de 31 de Dezembro.
A equipa de linguistas do Departamento de Dicionários da Porto Editora acompanha e analisa a realidade da língua portuguesa e, com base nos critérios de frequência de uso e de relevância assumida, especialmente nos meios de comunicação social e nas redes sociais, selecciona a lista das 10 palavras candidatas a Palavra do Ano.
Tal como aconteceu o ano passado, em que "Austeridade" foi eleita após uma votação muito disputada com "Esperança", a lista de palavras candidatas reflecte, sobretudo, a realidade socio económica vivida no nosso país.
A lista é composta pelas seguintes 10 palavras:
bosão O bosão de Higgs, conhecido vulgarmente por "partícula de Deus", é considerado essencial à explicação do mundo e é tido, pelos físicos, como fundamental para perceber vários mistérios do Universo.
cortes (financeiros)
A crise económica e a política de austeridade introduziram esta realidade na vida dos portugueses, sendo recorrente ouvir-se, ler-se e falar-se de cortes nos salários, nos subsídios e nas reformas.
democracia O contexto político, social e económico faz com que, este ano, muitos apontem a necessidade urgente de avaliar a saúde da democracia em Portugal.
desemprego O desemprego, cuja taxa tem atingido sucessivos recordes, é uma preocupação actual em Portugal e no mundo.
entroikado Com as condições de austeridade impostas pela troika aos portugueses, muitos sentem-se entroikados.
imposto O agravamento de impostos continua a fazer parte do dia a dia dos portugueses.
manifestação Este ano, por diversas vezes, milhares de pessoas saíram para a rua em protesto contra a troika e contra as medidas de austeridade do Governo.
refundar O governo, através do Primeiro-Ministro, apontou a necessidade de refundar o país e o Estado Social, colocando o assunto no topo da agenda política, económica e social.
solidariedade A solidariedade une todos os portugueses e destaca-se em 2012, no contexto do Ano Europeu do Envelhecimento Activo e da Solidariedade entre Gerações.
TSU (Taxa Social Única)
A TSU entrou de rompante no léxico comum dos portugueses este ano, em consequência das alterações que o governo tentou  introduzir.
A "Palavra do Ano" é uma iniciativa da Porto Editora que tem como objectivo principal enaltecer o património da língua portuguesa, sublinhando a importância que as palavras e os seus diferentes sentidos representam no nosso quotidiano.
Data da notícia: 07-12-2012
Entidade: Porto Editora, Lda

O ano de 2012 ficou marcado por diversos acontecimentos na política internacional, mas também por feitos e recordes. A TSF relembra em 20 fotografias alguns dos acontecimentos marcantes deste ano.
Guimarães foi Capital Europeia da Cultura. Teve uma agenda variada e rica em eventos e uma afluência muito intensa que transformou a cidade numa grande casa de convívio cultural. Dessa experiência falam os próprios habitantes no registo que se segue:


 Os dias da esperança perdida
Portugal na rua
Um ano de muita perda e de muito desespero para os portugueses. A política imposta pela troika e por uma UE tendenciosamente desigual e hipocritamente (des)unida transformou o país num celeiro de penúria declarada. Falar de Portugal é falar de retrocesso, de temor e de fracasso. Um país onde as estatísticas revelam um crescendo imparável de sortilégio e de sofrimento. A mais alta taxa de desemprego desde 1983, 16,3% . O dobro de casais desempregados do ano anterior, 10.495. Uma dívida pública assustadora de 198 136 milhões de Euros, que repartida dá a cada português 19 184 Euros.Todos os dias 34 portugueses declaram falência e 19,6% da população vive abaixo do limiar da pobreza ( com menos de 421 Euros por mês, por agregado familiar).
Um país que se pensava livre da  ameaça dos fantasmas do passado e  do espectro dos dias de míngua  , retorna ao patamar de partida sem esperança de saída. Um pais onde as  crianças e os mais velhos são vítimas de violência e permanecem expostos à fome, é um país em declínio , é um pais de tréguas adiadas.
Portugal de 2012 é a sombra de um futuro perdido que não acredita em 2013.

quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

Francisco Carreira,sapateiro prodigioso

"Chamava-se Francisco Carreira e era sapateiro. A sua loja era um escuro cubículo sem janelas, com uma porta por onde só crianças podiam entrar sem se curvarem, pois pouco mais haveria de ter que um metro e meio de altura. Sempre o vi sentado no mocho, atrás de uma banca em cima da qual dispunha os utensílios do ofício e onde se viam, emergindo de uma imemorial camada de terriço, pregos tortos, aparas de sola, alguma agulha romba, um alicate sem serventia. Era um homem doente, gasto antes do tempo, com a coluna vertebral deformada. Toda a sua força se lhe juntara nos braços e nos ombros, potentes como alavancas. Com eles batia a sola, dava cera na linha, repuxava os pontos e apontava as cardas com duas pancadas secas que nunca lhe vi falhar. Enquanto eu me entretinha a fazer buracos  num pedaço de cabedal com um vazador ou remexia na água a que a sola de molho dava o toque adstringente do tanino, contava-me histórias da sua mocidade, difusas conspirações políticas, a pistola que lhe havia sido mostrada como tenebroso aviso e que , palavras do avisador, se destinava a quem traísse a causa... Depois perguntava-me como ia nos estudos, que notícias tinha do que se ia passando em Lisboa, e eu desenrascava-me o melhor que podia para satisfazer-lhe a curiosidade. Um dia encontrei-o preocupado. Alisava os cabelos ralos com a sovela, suspendia o movimento dos braços ao puxar a linha, sinais que eu bem lhe conhecia e que anunciavam uma pergunta de especial importância. Daí a pouco o Francisco Carreira inclinava para trás o corpo torcido, empurrava os óculos para a testa e disparava à queima-roupa: " O amigo acredita na pluralidade dos mundos?" Ele tinha lido Fontenelle, eu não, ou só de ouvido gozaria de alguma escassa luz sobre o assunto. Engrolei uma resposta sobre o nome de Copérnico, e por aí me fiquei. De todo o modo,  sim, acreditava na pluralidade dos mundos, a questão estava em saber se haveria lá alguém. Ele deu-se por satisfeito, ou assim me pareceu, e eu respirei de alívio. Muitos anos depois escreveria sobre ele duas páginas  a que daria o título , obviamente inspirado em Lorca, de " O Sapateiro Prodigioso".  Que outra palavra poderia eu usar senão essa? Um sapateiro  da minha aldeia , nos anos 30, a falar de Fontenelle..."
José Saramago, in " As pequenas Memórias", Editorial Caminho, 2006

quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

Vou como vim


O Caminho Branco
Vou por um caminho branco
Viajo sem levar nada.
Minhas mãos estão vazias.
Minha boca está calada.
Vou só com o meu silêncio
e a minha madrugada.
Não escuto, entre os barrancos,
a voz do galo estridente
que, na treva do terreiro,
anuncia as alvoradas.
Nem mesmo escuto a minha alma:
não sei se ela vai dormindo
ou me acompanha acordada,
se ela é vento ou se ela é cinza
ou nuvem rubra raiante
no dia que se levanta
como vela desdobrada
em nave que corta as vagas.
Não sei nem mesmo se é alma
ou apenas sal de lágrimas.
Vou por um caminho branco
que parece a Via Láctea.
Só sei que vou tão sozinho
que nem sequer me acompanho,
como se eu fosse um caminho
pisado por vulto estranho.
Não sei se é dia ou se é noite
o que surge à minha frente,
se é fantasma do passado
ou vivente do presente.
Não sei se é a torrente clara
da água que corre entre pedras
ou se um gavião me espreita
oculto no nevoeiro,
espantalho prometido
ao meu dia derradeiro.
Atravessando barrancos
e plantações de tomate
e ouvindo o canto escarlate
de airosos galos polacos,
vou por um caminho branco:
brancura de bruma e prata.
Entre tufos de carqueja
há constelações de orvalho
e um clarão de meio-dia
cega a minha madrugada.
Vou como vim, sem saber
a razão da travessia.
Nem sequer levo na boca
o gosto de água salgada
que relembra a minha infância
feita de mar e de mangue.
Nem sequer levo nos olhos
- nos meus olhos de menino -
a mancha rubra de sangue
deixada pelo assassino
que vi certa madrugada.
Vou por um caminho branco
e nada levo nem tenho:
nem ninho de passarinho
nem fogo santo de lenho.
Só vou levando o meu nada.
Foi tudo quanto juntei
para oferecer a Deus
nesta madrugada.
Lêdo Ivo, in “ Poesia Completa", Ed. Topbooks, Rio de Janeiro

terça-feira, 25 de dezembro de 2012

Voto de Natal

"Adoração dos pastores",Agnolo Bronzino (Itália, 1503-1572), Museu de Belas Artes,  Budapeste

Acenda-se de novo o Presépio do Mundo!
Acenda-se Jesus nos olhos dos meninos!
Como quem na corrida entrega o testemunho,
passo agora o Natal para as mãos dos meus filhos.



E a corrida que siga, o facho não se apague!
Eu aperto no peito uma rosa de cinza.
Dai-me o brando calor da vossa ingenuidade,
para sentir no peito a rosa reflorida!

Filhos, as vossas mãos. E a solidão estremece,
como a casca do ovo ao latejar-lhe vida...
Mas a noite infinita enfrenta a vida breve:
dentro de mim não sei qual é que se eterniza.

Extinga-se o rumor, dissipem-se os fantasmas!
Ó calor destas mãos nos meus dedos tão frios!
Acende-se de novo o Presépio nas almas.
Acende-se Jesus nos olhos dos meus filhos.
                                                          
                                                           1960
David Mourão-Ferreira, "Cancioneiro de Natal", in Obra Poética 1948-1988
, Editorial Presença, 1996, 2.ª edição

“Sanctus coronation mass in c major k317 " de W. A. Mozart pela Orquestra Filarmónica de Viena,  sob a direcção do maestro Herbert von Karajan , com as excelentes vozes de Kathleen Battle, Trudeliese Schmidt, Gösta Winbergh, Ferruccio Furlanetto e o Coro Singverein de Viena, na Basílica de S.Pedro, Vaticano - Roma. 

segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

A Verdade é Belém

Os Profetas

Assombra, esta verdade que trazemos.
Aterra, a nitidez com que falamos.
Mas nós, mais do que vós, nos aterramos
Da certeza que temos.
Porque há distâncias que ninguém transpôs
E predizer é ser no Tempo - Aquém.
Correm palavras, como um rio, em nós:
A Verdade é Belém

Reinaldo Ferreira, in “ Poemas”, 2ª ed. 1962 , Ed. Portugália

domingo, 23 de dezembro de 2012

O poeta Lêdo Ivo morre em Sevilha


Passagem

Que me deixem passar
- eis o que peço diante da porta ou diante do caminho.
E que ninguém me siga na passagem.
Não tenho companheiros de viagem
nem quero que ninguém fique ao meu lado.
Para passar, exijo estar sozinho,
somente de mim mesmo acompanhado.
Mas caso me proíbam de passar por seu eu diferente ou indesejado
mesmo assim eu passarei.
Inventarei a porta e o caminho e passarei sozinho".

Lêdo Ivo, in "O Rumor da Noite",Editora Nova Fronteira. Rio de Janeiro – 2000
 Morreu Lêdo Ivo
"O escritor, poeta, ensaísta e jornalista brasileiro Lêdo Ivo morreu este Domingo em Sevilha, onde estava de férias, na sequência de um enfarte do miocárdio. Tinha 88 anos.
Segundo informações de familiares, Lêdo Ivo sentiu-se mal quando almoçava num restaurante, tendo seguido até ao hotel, onde recebeu tratamento médico, mas acabou por falecer antes mesmo de seguir para o hospital.
Segundo os familiares, o escritor, membro da Academia Brasileira de Letras, conhecido essencialmente como poeta, iria passar o Natal em Espanha, na companhia de alguns familiares, entre eles o filho e artista plástico Gonçalo Ivo. O escritor será cremado em Espanha, sendo as suas cinzas transladadas, no início do próximo ano, para o Brasil, onde se prevê que se virão a realizarão missas no Rio de Janeiro e Maceió, onde nasceu.
A presidente da Academia Brasileira de Letras Ana Maria Machado lamentou a morte do escritor, descrevendo-o como um “poeta e ficcionista versátil, de obra variada, que abarcava vários géneros.” A responsável disse também que no próximo dia 10 de Janeiro terá lugar uma sessão extraordinária na academia, à porta fechada, na qual os restantes membros vão recordar o poeta. "Como poeta, ele foi um representante significativo da chamada Geração de 45, momento em que o modernismo brasileiro procurou voltar a formas poéticas fixas e se afastar da linguagem coloquial. Ele dominava muito bem o artesanato do poema", disse a presidente, citada pelo jornal brasileiro Folha de São Paulo.
Segundo a agência de noticias espanhola EFE, Ivo defendia um modelo de poesia comprometido com o indivíduo e com a sociedade. O poeta moderno, segundo Ivo, dever-se-ia interessar pelo mundo de hoje e pela experiência pessoal vivida, ao invés de se concentrar em poemas sobre a criação poética. Amante do soneto e dos versos longos, tinha o americano T.S. Eliot como uma grande referência.
Lêdo Ivo nasceu em 1924, em Maceió, tendo-se estreado na Literatura em 1944 com o livro de poesia "As Imaginações" e no ano seguinte com "Ode e Elegia". Entre as suas obras mais conhecidas encontramos "Ninho de Cobras", "A Noite Misteriosa", "A Ética da Aventura" e "Confissões de Um Poeta". As suas obras estão traduzidas em inglês, espanhol, francês e italiano, entre outras línguas.” In Público, 23/12/2012

Ao Domingo Há Música

"Open your heart
To those who need you
In the name of love and devotion"

Neste tempo que vem de tão longe, acreditar  na força de um mundo novo continua a ser chave que poderá  abrir  todos os corações. Eis a mensagem que Katherine Jenkins e Andrea Bocelli  lançam em " I Believe", uma  harmoniosa canção.



I Believe

One day I'll hear
The laugh of children
In a world where war has been banned.

One day I'll see
Men of all colours
Sharing words of love and devotion.

Stand up and feel
The Holy Spirit
Find the power of your faith.

Open your heart
To those who need you
In the name of love and devotion.

Yes, I believe.

I believe in the people
Of all nations
To join and to care
For love.

I believe in a world
Where light will guide us
And giving our love
We'll make heaven on earth.

I believe in the people
Of all nations
To join and to care
For love.

I believe in a world
Where light will guide us
And giving our love
We'll make heaven on earth.

Yes, I believe.

I believe in the people
Of all nations
To join and to care
For love.

I believe in a world
Where light will guide us
And giving our love
We'll make heaven on earth.

I believe.

sábado, 22 de dezembro de 2012

O corpo tem degraus


ISTO É O MEU CORPO

O corpo tem degraus, todos eles inclinados
milhares de lembranças do que lhe aconteceu
tem filiação, geometria
um desabamento que começa do avesso
e formas que ninguém ouve

O corpo nunca é o mesmo
ainda quando se repete:
de onde vem este braço que toca no outro,
de onde vêm estas pernas entrelaçadas
como alcanço este pé que coloco adiante?

Não aprendo com o corpo a levantar-me,
aprendo a cair e a perguntar.
José Tolentino Mendonça, in "Estação Central", Ed. Assírio & Alvim, 2012

Inovador e popular


A beleza é leve
DE SÃO PAULO
Por Ferreira Gullar
"Amanhece o dia 6 de Dezembro de 2012, mas o meu amigo Oscar Niemeyer já não está aqui para vivê-lo. Saio à rua a caminhar e sinto que o mundo não é mais o mesmo.
É verdade que fazia algum tempo que não nos víamos nem nos falávamos, coisas da vida. Mas a minha admiração e meu afeto por ele se mantinham os mesmos que ao longo desses mais de 50 anos.
Desde o momento em que ele morreu, no Hospital Samaritano, aqui no Rio, todos os meios de comunicação se mobilizaram, e não apenas para noticiar o fato, mas também para colher o pronunciamento de pessoas que privaram com ele ou que estudaram sua obra.
E durante aquela noite e os dias seguintes, a morte de Oscar Niemeyer foi o assunto principal do país, que se voltou inteiramente para essa perda inaceitável.
De minha parte, não apenas me solicitaram a falar sobre ele, como me mantive diante da televisão a acompanhar esse acontecimento que foi transmitido, minuto a minuto, durante todo aquele primeiro dia, a noite e os dois dias seguintes.
Vi quando o caixão mortuário foi retirado do hospital, posto no carro funerário e transportado, ladeado de batedores, para o aeroporto Santos Dumont. Não pude evitar de pensar que ele, quando vivo, não queria saber de avião, mas agora, morto, voaria para Brasília. Os mortos se defendem mal. E foi. Chegado a Brasília, um carro do Corpo de Bombeiros o levou até o Palácio do Planalto, onde seria velado. E eu me dizia: ele jamais supôs que isso fosse acontecer após sua morte. E o imaginava dentro daquele caixão mortuário, sendo conduzido sob os olhos da nação inteira para o velório no palácio que ele mesmo concebera.
Tenho certeza de que, se lhe perguntassem se estava de acordo com tal procedimento ritual, diria que não, já que sempre foi pouco afeito a pompas e solenidades. Isso não tem nada a ver com ele, mas não importa; o que significou para todos nós excede sua modéstia e sua simplicidade.
E me lembrei de nossos encontros em diferentes momentos, desde quando o conheci, em 1955, ao entrevistá-lo para a revista "Manchete", ou de nosso convívio em Brasília, em 1961, quando dirigi a Fundação Cultural. Nessa ocasião, propus-lhe que projetasse um pequeno museu onde reuniríamos um acervo de arte popular brasileira. Ele o projetou, o museu foi construído: as paredes eram de tijolos de vidro e o teto de palha, uma mistura inusitada e bela. Ficava perto do antigo aeroporto, que foi abandonado. E o museu também.
Mas a vida prosseguiria, e o golpe militar de 1964 mudou nossas vidas. Ele foi para Paris e eu para Moscou. Mais tarde, eu já em Buenos Aires, ele me enviou um exemplar do livro sobre sua arquitetura que acabara de ser editado na França. Era fascinante ver cada uma de suas obras ali. E desse fascínio nasceu o poema "Lições da Arquitetura", que escrevi e lhe mandei pelo correio.
Permito-me citar alguns versos: "No ombro do planeta / (em Caracas) / Oscar depositou / para sempre / uma ave uma flor / (ele não faz de pedra / nossas casas: / faz de asa)".
É verdade, pois seus prédios, de tão leves, parecem flutuar. Essa é uma das inovações que ele introduziu na arquitetura moderna, que se caracterizava pela construção ortogonal e a linha reta, tendo a funcionalidade como princípio básico: a forma segue a função.
Le Corbusier era o mestre por excelência dessa nova arquitetura e foi nele que Oscar se inspirou, mas sempre dissentindo, como no caso do prédio do MEC, no Rio, hoje Palácio Gustavo Capanema. Mas a ruptura se dá mesmo é quando ele concebe o conjunto da Pampulha em Belo Horizonte, e introduz a linha curva na linguagem dessa nova arquitetura. Muda-lhe o rumo e a história: agora é antes e depois de Oscar Niemeyer.
Brasília foi um passo a mais nessa reinvenção da arquitetura, pois, em seus palácios, a forma arquitetônica nasce da estrutura construtiva: as colunas do Palácio da Alvorada, por exemplo, são ao mesmo tempo sustentação e beleza. Oscar realizava a milagre de ser ao mesmo inovador e popular."
Ferreira Gullar, em Crónica publicada na Folha de S. Paulo, em 16/12 /2012

sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

Abraço


A muitos mares de mim
estás tu. Estás a dois passos.
Muralhas. Ferros. Tem fim
a música dos meus braços?
Nó. A morte vem aí.
Entras por mim, eu por ti
à força do amor. Já só
o exemplo e a luz do espaço.
Apertámos tanto o nó
que fomos além do abraço.

Fernando Echevarria, in “Obra Inacabada”, Afrontamento, 2006

quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Um homem íntegro


Augusto Abelaira o Elogio da Integridade
por Baptista Bastos

"Ainda não há muitos anos, a cultura possuía um poder marcado pela integridade e pelas recusas morais dos autores. Confundiu-se tudo agora…".
"Ainda não há muitos anos, a cultura possuía um poder marcado pela integridade e pelas recusas morais dos autores. Confundiu-se tudo agora…". Ele dizia isto sem acrimónia mas, também, sem indulgência para com os tempos. Encontrávamo-nos, ocasionalmente, numa pequena pastelaria, a Guadalupe, à Estrada da Luz; ele mantinha o hábito de escrever nos cafés, como o fizera, décadas a fio. Era um homem cansado pela doença e, talvez, por uma dissimulada solidão. Não perdera, porém, o sorriso discreto, o olhar vivíssimo, a elegância no trato. Éramos amigos desde 1955, fôramos apresentados pelo Jacinto Baptista, grande jornalista e probo historiador da República, eu escrevera, n'"O Século Ilustrado", um balanço do ano cinematográfico, "54 Semanas de Cinema", tinha 20 anos, andava cheio de mim porque o texto fora muito elogiado, e transcrito nos boletins dos cineclubes.

Lembro-me muito bem dessa época e dos seus mais importantes protagonistas. O que havia de melhor entre nós reunia-se nos cafés, em tertúlias hoje lendárias. Café Chiado, Martinho do Rossio, Portugal, Chave d'Oiro; depois, Café Bocage, Monte Carlo, Tony dos Bifes, ei-los. E os mesários desses convívios eram Aquilino Ribeiro, Alves Redol, Lopes-Graça, Mário Dionísio, Carlos de Oliveira, José Gomes Ferreira, o poeta, claro!; Manuel da Fonseca, Nikias Skapinakis, João José Cochofel, por vezes o matemático Gustavo de Castro, inúmeros mais. O homem que sou devo-o à construção firme e fraterna desses, os inigualáveis.
O Abelaira era frequente em todos os grupos. Invulgarmente culto, nunca impôs os formidáveis conhecimentos que possuía, desde a literatura à física, da pintura à música, da filosofia ao cinema e ao teatro. Era, além disso, um melómano distintíssimo, de apurado ouvido, fino gosto e extraordinário sentido crítico. Ouvi-lo era um prazer sem igual, tanto mais que ele não fazia alarde da sua imensa cultura, pelo contrário: ocultava-se numa modéstia impressionante.
Os seus romances, as suas peças de teatro eram manifestações de criatividade, de brilhantismo e de inteligência. Um livro do Abelaira, ao ser publicado, recebia o entusiasmo da crítica e do leitor. E estão aí, nas estantes mais selectas, para nos fornecer um retrato da sociedade portuguesa e, sobretudo, dos meios académicos e culturais.
Há tempos, um pobre sujeito, escreveu umas escorrências sobre a reedição de "Bolor", sem perceber nada do texto nem do que queria dizer. Percebe-se: Abelaira escreveu sempre para adultos, com uma elegância e uma sabedoria muito direccionadas. Nunca quis ser um autor "popular"; quis, tão-somente, ser lido e entendido pelos melhores da sua época. E foi-o.
Quando o jornal "O Século" foi vendido ao banqueiro Jorge de Brito, e dirigido por Manuel Figueira, este convidou o Abelaira a escrever, diariamente, um comentário de vinte linhas, à maneira do que fazia Jacques Fauvet no "Le Monde." Foi um êxito. As "Entrelinhas" tornaram-se referência obrigatória. Foi essa presença como jornalista que lhe permitiu a magríssima reforma com que subsistiu até ao fim da vida (1926-2003), com dificuldades e uma frugalidade correspondentes à sua configuração moral.
Estivemos ambos envolvidos em conspirações contra o regime. Distribuímos panfletos, assinámos documentos a favor da liberdade; trabalhámos na revista "Almanaque", na qual, certo dia, teve um desaguisado com um tal Vasco "Pulido Valente", arriscando-se este a uma reprimenda mais coerciva do que as palavras. Corajoso e resoluto, convicto e de uma lealdade a toda a prova, Augusto Abelaira foi preso pela PIDE, por ter atribuído, como membro de júri, o Prémio de Novelística da então Sociedade Portuguesa de Escritores, a "Luuanda", de Luandino Vieira, na altura preso no campo de concentração do Tarrafal.
A obra ímpar e a vida exemplar deste português maior parecem estar esquecidas. Confunde-se tudo, como ele tristemente me disse. A mediocridade circundante promove a miuçalha, que assim se promove e protege. Chega a ser penoso ver-se o que os jornais admitem como genuíno aquilo que não passa de aldrabice. Ao assistir, com melancolia, à baixeza a que a sociedade chegou, faz-me bem recordar gente desta estirpe. E para vos dizer que nem sempre, mesmo nos períodos mais ominosos, as coisas e as pessoas chegaram a patamares tão abjectamente baixos.”Baptista Bastos em Crónica publicada no Jornal de Negócios, em 07 Dezembro 2012

quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

No ano que vem

As pedras não são de ninguém em Jerusalém
De cada pedra o dono é o tempo que tem

São pedras sobre pedras, dizem Jerusalém
As pedras falam, falam, mas ninguém ouve bem

E a história recomeça sempre em Jerusalém
E mais as mil histórias que essa história contém

'Stórias de amor e sangue erguem Jerusalém
E a mais linda história começou em Belém

A palavra brotou da boca dum homem bom
De Gaza a Ramallah, e de Jenin a Hebron

E tanto faz
Se é guerra ou paz
No ano que vem
Jerusalém
Tanto nasci
Tanto morri
No ano que vem
Jerusalém

A dor que reconstrói cada palavra de bem
Mas é como se aqui não estivesse ninguém...

Letra: José Mário Branco 
Música: Ennio Morricone


A voz incomparável de Dulce Pontes interpretando a música de Ennio Morricone, em " No ano que vem".

Os mais antigos pergaminhos bíblicos


Os Manuscritos do Mar Morto
“Muitos anos depois de terem sido descobertos, e milhares de anos depois de terem sido escritos, os Manuscritos do Mar Morto já estão disponíveis online, através de uma colaboração entre a Google e a Autoridade de Antiguidades de Israel. No total, são mais de cinco mil os documentos e imagens disponíveis em alta resolução desde esta terça-feira, à distância de um clique.
Entre os manuscritos encontram-se fragmentos dos mais antigos pergaminhos bíblicos do Antigo Testamento, entre os quais os referentes aos Dez Mandamentos, aos Salmos, ao Livro de Isaías e aos textos apócrifos. Existe ainda um capítulo do Génesis, datado do I século a.C.
Os Manuscritos do Mar Morto incluem as versões mais antigas da Bíblia hebraica e outros textos apócrifos e livros de regras da seita que os compilou, os essénios. Desde que foram encontrados, apenas um reduzido número de investigadores podia consultá-los, o que, ao longo dos anos, tem gerado controvérsia. Foi para fazer frente às críticas e tornar os manuscritos acessíveis a um maior número de pessoas que as autoridades israelitas avançaram com este projecto online.
“Apenas cinco conservadores em todo o mundo têm acesso aos Manuscritos do Mar Morto”, disse à AP Shuka Dorfman, arqueólogo e director da Autoridade de Antiguidades de Israel, acrescentando que agora o acesso é livre. “Todos podem clicar.”
Esta é a segunda fase do projecto que começou a ficar disponível no ano passado, quando o Museu de Israel anunciou que cinco fragmentos desta vasta colecção ficariam disponíveis online. Agora, não são apenas cinco, mas todos os manuscritos, praticamente os únicos documentos bíblicos do primeiro século da era cristã (e alguns possivelmente do século III a.C.) que chegaram até hoje.
Na transposição dos documentos para a sua visualização online foram utilizadas técnicas desenvolvidas por especialistas da agência espacial norte-americana NASA. As imagens dos manuscritos têm uma definição 200 vezes superior à de uma câmara fotográfica digital comum, tendo cada uma cerca de 1200 megapíxeis, o que permite uma melhor análise dos documentos e do seu próprio estado de conservação.
Para o responsável da Google em Israel, Yossi Matias, a parceria com a Autoridade de Antiguidades "é mais um passo em frente que permite aos utilizadores de todo o mundo desfrutarem deste tipo de material cultural". "Estamos a trabalhar para disponibilizar online material importante cultural e historicamente, preservando-o para as gerações futuras", acrescentou Matias.
Muitos destes manuscritos, que se acredita terem sido descobertos numa gruta de Qumran por um pastor em 1947, têm permanecido guardados no Museu de Israel, tendo raramente sido expostos ao público devido aos cuidados que o seu estado de conservação exige.” Público, 18/12/2012


terça-feira, 18 de dezembro de 2012

O talento da dança

Em 17 de Dezembro de 1892 estreou no Teatro Mariinsky em São Petersburgo na Rússia, o ballet " Quebra -Nozes" com música do grande Tchaikovsky e libreto de Lev Ivanov. Recorda-se , hoje, data do  aniversário desta excelente obra, o talento desse grande compositor. A magia da época natalícia perpassa, perdura e sempre estará presente nesta peça intemporal.

A angústia contemporânea



 “O imprevisto já não é um conceito exótico, como era ainda há cem anos. Tornou-se o nosso elemento, o sinal distintivo das relações estratégicas da nossa época, com a rapidez dos nossos vectores, a potência de fogo das nossas armas, as novidades das nossas tecnologias, a instantaneidade da informação e as novas formas de terrorismo. A história recente, que é balizada por terríveis explosões, catástrofes naturais e grandes massacres, mostrou até que ponto as surpresas podem ser devastadoras. Esta mistura de violência e instantaneidade, de instabilidade e desordem, afecta tanto as nossas almas como os nossos espíritos. O desfasamento crescente entre o homem e a história comporta, por este motivo, um risco de tipo ontológico: põe em perigo a relação que liga a consciência humana ao tempo. A forte ligação ao passado, a transmissão dos valores, a continuidade das gerações, aquilo que liga os homens entre si, tudo isso está ameaçado pelo imediatismo em que vivemos e pelo caos que nos rodeia. Tanto a impaciência do presente como a desvitalização do passado transformam o tempo num vector de agitação e angústia, tanto mais que as metamorfoses introduzidas pelas revoluções tecnológicas têm um ritmo demasiado rápido para que o espírito humano possa seguir o seu curso. Logo, este é muitas vezes reduzido a um papel de espectador, que não espera nada mais da história - a não ser que perdure.
Mas quando apenas pedimos à história que perdure, não devemos queixar-nos se ela, por vezes nos der respostas brutais. (...) A surdez da história é também a do homem que só formidáveis explosões conseguem fazer estremecer. O que nos causa horror no ciclo de crueldade gratuita que os ecrãs de televisão apresentam, com a encenação de reféns degolados como animais ou a profanação dos mortos nos cemitérios, é o modo como o terror e a barbárie penetram em todos os lares por meio da imagem, mas é também, que esses rituais exprimem uma espécie de "norma" visualizada da extrema violência que reina no mundo, e perguntamo-nos aonde poderá conduzir. O que acontece sobretudo é que, presentemente, só os grandes crimes conseguem emocionar-nos. O regresso do crime-espectáculo desperta um mal-estar maior precisamente porque não se produz nas praças públicas, como no tempo de Voltaire, mas no conforto dos salões. O desfasamento é insuportável, do mesmo modo que a banalização da violência. Tucídides, que continua a ser a referência mais preciosa de todos quanto reflectem sobre a história, afirma que determinados períodos exprimem uma forma de exacerbação das paixões humanas. Se for o caso, o nosso tempo é um desses períodos, como o foram os anos 30 do século passado, em que a condenação do humanismo e do intelectualismo foi feita, em nome de tudo o que refreava as paixões humanas impondo-lhes normas.”Thérèse Delpech, in "O Regresso da Barbárie",( Prémio Femina de Ensaio),Lisboa, Quidnovi

segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Somos fonte de significação e de Liberdade

"..la réflexion, quand elle transfigure le désir, met le bonheur à notre portée."



 A Revista francesa “lirepublicou uma entrevista concedida pelo filósofo Robert Mishari, autor do excelente ensaio “Le Bonheur. Essai sur la joie”(2011), obra onde explicita os princípios que sempre o nortearam e que designa como “ uma ética da alegria”. Robert Mishari é um reputado filósofo francês, foi professor na Sorbonne desde 1950 e  distingue-se dos outros filósofos pela elaboração de uma doutrina de vida apoiada na relação desejo-liberdade sob o horizonte da Felicidade. Tem publicada uma volumosa obra composta por mais de 30 livros.
Pelo interesse que reveste a entrevista, publica-se um excerto e a indicação do respectivo link para a sua leitura integral.

“Que pourrait être une philosophie de la joie ou une philosophie du bonheur aujourd'hui ? Telle est la question à laquelle tente de répondre Robert Misrahi, né en 1926, et dont le moins qu'on puisse dire est qu'il s'est démarqué de ses contemporains. A l'âge de 16 ans, il rencontre Jean-Paul Sartre. Puis il suit les cours de Vladimir Jankélévitch, Gaston Bachelard, Maurice Merleau-Ponty, avant de devenir lui-même professeur de philosophie et d'enseigner pendant trente ans à la Sorbonne. Autant dire qu'il a formé quelques générations d'étudiants (dont un certain Michel Onfray) ! De Jankélévitch à Onfray, la ligne est claire, il s'agit de rendre la philosophie populaire et compréhensible par tous. On doit à ce spécialiste de Spinoza une passionnante autobiographie dans laquelle il interroge la cohérence de sa démarche, revient sur son itinéraire et sa philosophie. Robert Misrahi est arrivé en studio, à France Inter, avec un immense sourire. Deux soirs durant, il a raconté sa vie, expliqué les concepts qui continuent de guider son existence et défini avec précision ce qu'il appelle "une éthique de la joie". Il venait alors de publier un merveilleux petit livre (Le Bonheur. Essai sur la joie) et mettait la dernière main à l'autobiographie qui vient de paraître et que Lire a distinguée comme la meilleure de l'année. Nous reproduisons cet entretien avec l'accord de France Inter.
A 86 ans, vous avez dû l'entendre un certain nombre de fois cette question, très simple et un peu naïve : à quoi sert la philosophie ? Quelle est votre réponse?
Robert Misrahi. La philosophie sert à vivre. Je ne dirai pas comme mon vieux maître Jankélévitch que la philosophie ne sert à rien et que c'est pour ça qu'elle est importante. Non, je dirai le contraire : c'est parce que la philosophie est absolument indispensable pour bien vivre qu'elle est importante. La philosophie n'est pas quelque chose d'abstrait réservé à quelques érudits. C'est, tout simplement, un effort de réflexion un petit peu plus serré, que tout le monde peut faire s'il a l'intention ferme de réfléchir à sa vie.

« La mort, la guerre, la destruction, les persécutions. Je connais tout cela »

Pourquoi le bonheur a-t-il si peu droit de cité chez les philosophes?
La plupart des philosophes du XXe siècle ne se préoccupaient pas beaucoup du bonheur parce qu'ils pensaient qu'il était préférable de s'intéresser d'abord à ce qui a marqué le XXe siècle : le malheur. La mort, la guerre, la destruction, les persécutions. Je connais tout cela. Nos contemporains, fortement influencés par Schopenhauer, Hegel, Heidegger ou Sartre, pensent qu'une philosophie tragique est la meilleure qui soit pour exprimer les malheurs de notre temps. Personnellement, je pense exactement le contraire ! Pas par esprit de provocation, mais parce qu'il ne me paraît pas suffisant de dire cela. Il faudrait d'abord se poser cette question : pourquoi nous tous, malheureux ou non, misérables ou non, nous combattons la misère, l'injustice et la guerre ? On ne s'est pas demandé pourquoi. On a pensé que c'était évident. Or ce n'est pas évident." Propos recueillis par François Busnel (Lire), publié le 14/12/2012