segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

Um Fim de Ano

Cartoon Rodrigo, Expresso

 Estamos no último dia de 2012. Ao longo deste ano,fizemos referência a muitas obras literárias. Muita prosa , imensa poesia, e muito mais. O romance “ O retorno” foi uma dessas obras aqui  mencionadas. O Jornal Globo publicou, no dia 28 do corrente mês, a lista  dos melhores livros de 2012 onde  consta o livro "O Retorno", da portuguesa Dulce Maria Cardoso, lançado este ano no Brasil.
Refere a Agência Lusa que “A selecção anual, feita pela equipa do suplemento literário de O Globo, apresenta 15 títulos, que incluem obras de ficção e não-ficção de autores brasileiros e estrangeiros.
Entre os brasileiros estão "Solidão Continental", de João Gilberto Noll, "Formas do Nada", do poeta Paulo Henrique Britto, "Um útero é do tamanho de um punho", de Angélica Freitas, e "Barba Ensopada de Sangue", de Daniel Galera.
Além do livro de Dulce Maria Cardoso, apenas três títulos não são de autores brasileiros.
A norte-americana Jennifer Egan, com "A visita cruel do tempo", o poeta sírio Adonis, com a colectânea "Poemas", e o britânico Julian Barnes com "O Sentido de um fim" são os outros autores estrangeiros incluídos na selecção do jornal.
"O Retorno", editado pela Tinta da China, foi lançado no Brasil em Julho passado, durante a participação de Dulce Maria Cardoso na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip).”
 “ O retorno” foi considerado o Livro do ano pelos jornais Público, Expresso e revista Ler. Recebeu o Prémio especial da Crítica de 2011.

Sobre o livro:
"1975 Luanda. A descolonização instiga ódios e guerras. Os brancos debandam e em poucos meses chegam a Portugal mais de meio milhão de pessoas. O processo revolucionário está no seu auge e os retornados são recebidos com desconfiança e hostilidade. Muitos não têm para onde ir nem do que viver. Rui tem quinze anos e é um deles.
1975. Lisboa. Durante mais de um ano, Rui e a família vivem num quarto de um hotel de 5 estrelas a abarrotar de retornados — um improvável purgatório sem salvação garantida que se degrada de dia para dia. A adolescência torna­-se uma espera assustada pela idade adulta: aprender o desespero e a raiva, reaprender o amor, inventar a esperança. África sempre presente mas cada vez mais longe."

E porque termina o ano de 2012  , transcreve-se um excerto desse romance  relativo ao término do ano 1974 , em Luanda , na noite de  passagem de ano.

“ Na mesma noite em que o Sr. Manuel partiu com a família no Príncipe Perfeito, fomos à farra da passagem de ano, a minha irmã vestiu uma maxi-saia  e pintou-se a sério pela primeira vez, estava bonita como nunca a tinha visto, o pai olhava para a multidão que dançava na festa , o copo cheio de Ye Monks, o pai perguntava, como é que esta gente toda pode lá ir embora, a mãe bebia gasosa por um copo de pé alto, parecia uma actriz de cinema só que menos bonita. Aquela gente não pôde ter ido embora. O conjunto desafinava mas ninguém deixava de dançar por causa disso, estava  à toa na vida , o meu amor me chamou, pra ver a banda passar cantando coisas de amor, a minha gente sofrida, despedia-se da dor, pra ver a banda passar cantando coisas de amor, as pessoas atreladas umas nas outras, as filas cada vez maior e as voltas na sala do clube cada vez mais pequenas, nada tinha mudado, a banda passava cantando coisas de amor e a gente sofrida despedia-se da dor, o pai começou a beber Ye Monks da garrafa, a mãe nunca bebe por causa dos comprimidos mas naquela noite bebeu e dançou para o pai, estava tanta gente  à roda a bater palmas enquanto a mãe dançava para o pai, não se podem ter ido todos embora , ainda não tinham dado as badaladas da meia-noite e as rabanadas já tinham azedado em cima das mesas, as broas secas como palha, toda a gente se queixava do maldito calor que dá cabo de tudo Quando começaram os slows convidei a Paula para dançar , as minhas mãos no pescoço da Paula, a pele da Paula tão macia, 1975 ia ser um ano bom, se calhar o melhor ano das nossas vidas, íamos deixar de ser portugueses de segunda, o futuro era aqui, o pai estava certo apesar das chaimites nas ruas e dos tiros que tinham começado (…), mas também dizia que não havia mais nada na metrópole do que fome e piolhos , ou que as vizinhas eram todas mal casadas, não é que o pai pensasse assim, a culpa era do Ye Monks, a cidade estava em festa mas não interessava, a mãe cantava acompanhando a desafinação do conjunto, mas para meu desencanto, o que era doce acabou, tudo tomou o seu lugar, depois que a banda passou, e cada qual no seu canto, em cada canto uma dor , depois de a banda passar, cantando coisa de amor, é dançar minha gente como se não houvesse amanhã, as serpentinas agarravam-se às costas nuas das raparigas suadas, os confeitos não paravam de cair  em todo o lado, as lentes dos óculos  da D. Magui cheias de confeitos colados, não aproveites para olhar para as brasas  de minissaia, o marido da D. Magui riu-se mostrando o canino de ouro e fez a D. Magui rodopiar-lhe nos braços  como se fossem um casal novo (…) A banda nunca ia deixar de passar cantando coisas de amor, o futuro ia acontecer sem grandes sobressaltos como os futuros  devem acontecer, a Paula ia aceitar o meu pedido de namoro e ia deixar-me desapertar-lhe o sutiã, eu ia tirar a carta de condução e levá-la ao cinema Miramar, o pai ia tirar letras no banco para comprar a Scania que estava em exposição no stand da Baixa, a cabeça da mãe nunca mais teria  crises, a minha irmã ia terminar o sétimo ano e arranjar um namorado melhor que o Roberto que estava   apaixonado pela Lena indiana que gostava do Carlos, a Pirata ia morrer de velha como o Bardino morreu e anos antes do Bardino a Jane, as vizinhas  iam continuar a levar a mal à mãe  o que não podiam mesmo deixar de levar a mal, só ia mudar o que fosse necessário para a nossa vida ficar ainda mais igual à vida que o pai tinha pensado quando embarcou no Pátria.
Durante as primeiras horas de 1975 todos tinham de concordar que o Sr. Manuel tinha sido um profeta agoirento, não ia haver um mar de sangue, 61 estava enterrado como os mortos que tinha feito.(…) Quando voltámos para o pé dos outros a festa estava a acabar. Fomos para casa e o pai abriu mais uma garrafa de Ye Monks, quis que brindássemos outra vez a 1975, a minha irmã brindou com água, a mãe aflita a dizer que dava azar, crendices , deixa-te de crendices, mulher, brindámos a 1975 que ia ser o melhor ano das nossas vidas.” Dulce Maria Cardoso, in “ O retorno”, Edições Tinta –da-China, 2011

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