sábado, 29 de dezembro de 2012

O pensamento na Poesia

 No seu último ensaio, "A Poesia do Pensamento", George Steiner "apresenta-nos uma profunda análise da relação entre a filosofia ocidental e a sua linguagem.De forma precisa e pormenorizada, Steiner analisa mais de dois milénios de cultura ocidental, entrelaçando filosofia e literatura. O resultado evidencia que em toda a filosofia existe literatura oculta.
Steiner acredita que «o génio poético do pensamento abstracto se ilumina, se torna audível. O próprio raciocínio analítico tem o seu ritmo percussivo. Torna-se ode. Haverá melhor expressão dos andamentos finais da Fenomenologiade Hegel do que o non, rien de rien de Edith Piaf, uma dupla negação que Hegel teria apreciado? Este ensaio é uma tentativa de escutar melhor», um esforço do autor para integrar tudo o que até hoje escreveu sobre cultura."
Eis um pequeno excerto dessa excepcional obra:

"Este ensaio mais não fez do que arranhar a superfície. Os embates, as cumplicidades, as  interpretações e amálgamas entre a filosofia e a literatura, entre o poema e o tratado metafísico são uma constante. Para além da escrita,  estendem-se à música. Às belas-artes ( como o testemunha, datado de 1999, o perturbante busto de Sócrates por Egbert Verbeeck). Os temas platónicos proliferam. Não referi o “ De Amore” ( 1469) de Ficino, o “ Alcibiades” (1675) de Thomas Otway,  o influente “ Gespprache des Sokrates” (1756) de Wieland nem o “ Socrate” (1759) de Voltaire, marcado pela sua abominação de Aristófanes, que o autor considerava em parte culpado do destino de Sócrates.(…) A tradução que Shelley fez do “Banquete” foi igualmente encenada . O fascínio persiste.
Há os que negam qualquer diferença essencial. Para Montaigne, toda a filosofia “ n’est qu’une poésie sophistiquée”. Não há oposição. “ Cada uma delas faz a dificuldade da outra. Juntas são a própria dificuldade: de fazer sentido”( Jean-Luc  Nancy). Outros consideraram as intimidades entre o filosófico e o poético incestuosa e reciprocamente funestas. Husserl , por exemplo.
O ponto que tentei elucidar é simples: a literatura e a filosofia, como as conhecemos, são produtos da linguagem. É esse, inalteravelmente, o seu solo comum, ontológico e substantivo. O pensamento na poesia , a poética do pensamento, são obras da gramática, da linguagem em movimento. Os seus meios, as imposições que os constrangem , são os do estilo. O indizível, no sentido imediato da palavra, circunscreve-os a ambos. A poesia visa reinventar a linguagem, fazê-la de novo. A filosofia esforça-se por tornar a linguagem rigorosamente transparente, purgá-la de ambiguidade e de confusão. Por vezes, esforça-se por superar as limitações lexicais e sintácticas e o conjunto das atrofias herdadas, recorrendo à lógica formal e aos algoritmos metamatemáticos, como no caso de Frege. Mas a matriz total continua a ser o discurso humano. Este aspecto tem uma ilustração soberba no “ Zibaldone” de Leopardi. A seu ver, não havia poesia válida sem filosofia;  nem, sem poesia, filosofia que valesse a pena aprender. O acesso generativo a uma e a outra é uma filologia apaixonante. Leopardi examina por meio de uma erudição muitas vezes microscópica as unidades lexicais, as ordens gramaticais e as aplicações pragmáticas. Deus – ou por outras palavras, o milagre do sentido comunicável – reside no pormenor linguístico. Como vemos no cabalista que deriva da simples letra os próprios impulso  e magia da criação. As letras estão escritas no fogo primordial. Da incandescência deste, vêm toda a filosofia, toda a poesia – e os paradoxos do seu uníssono autónomo.
Sugeri que esta concepção da linguagem como núcleo que define a existência – como doação , em última instância teológica, da humanidade ao homem – se encontra hoje em refluxo. Que nem no seu estatuto ontológico, nem no seu alcance existencial , a palavra mantém a sua centralidade tradicional. Sob muitos aspectos, este pequeno livro, bem como o interesse e atenção que espera dos seus leitores – estatisticamente, uma ténue  minoria – são  já arcaicos. Reportam-se, por exemplo, às artes monásticas da atenção da Alta Idade Média ou à biblioteca vitoriana. Convivem mal com a redução dos textos literários nos ecrãs ou com a anti-retórica do blogue. A simples sobrevivência de um ensaio deste género depende da sua acessibilidade on-line.O futuro do armazenamento dispendioso – e, ao mesmo tempo, já quase incontrolável, de tão pletórico – nas bibliotecas públicas e universitárias é cada vez mais questionável.
As novas tecnologias atingem o coração da linguagem. Nos Estados  Unidos , a faixa etária dos oito aos dezoito anos passa cerca de onze horas por dia acoplada aos suportes da comunicação electrónica. A conversa limita-se cara  a cara. A realidade torna-se a realidade virtual dos ciberespaços. Os computadores portáteis, os iPods , os telemóveis, o email, a Web planetária e a Internet modificam a consciência. O funcionamento mental é alimentado por cabo. A memória compõe-se de dados recuperáveis . O silêncio e a intimidade privada, as coordenadas clássicas  dos encontros  com o poema e com o enunciado filosófico tornam-se ideológica e socialmente luxos suspeitos. Um crítico, Crowther, escreve: “ A cacofonia dentro e fora das nossas cabeças assassinou o silêncio e a reflexão.” Estado de coisas que poderá vir a revelar-se terminal, uma vez que a qualidade do silêncio se encontra organicamente ligada à da palavra. Nenhum dos dois pode aceder à sua força plena na falta do outro.(…)
Há no horizonte a perspectiva de descobertas bioquímicas e neurológicas que demonstrarão que os processos inventivos e cognitivos da psique humana são, em última instância , de origem material. Que até mesmo a conjectura metafísica ou o achado poético maior são formas complexas de química molecular.
Não é uma visão da qual uma consciência obsolescente ,  e muitas  vezes tecnófoba, como a minha possa extrair conforto. Vem depois das “humanidades” que tão desoladoramente nos faltaram na longa noite do século XX. Mas talvez seja uma aventura formidável. E algures  um cantor rebelde, um filósofo que a solidão embriague, dirá “ Não”. Uma sílaba carregada da promessa da criação. “
George Steiner, in “ A Poesia do Pensamento, Do Helenismo a Celan”, Relógio D’Água Editores, Setembro 2012

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