sexta-feira, 23 de novembro de 2012

Versos do Tempo


Versos de Frio

Deixei que viesses
e para mim tangesses
a aliciante lira
da tua mentira.

Deixei que viesses
e que me prendesses
nos laços doirados
dos nossos pecados.

Deixei que viesses,
não por que te amasse.
Foi para que morresses
e eu não te chorasse
Maria Ondina Braga, in “ A rosa de Jericó – contos escolhidos”, Ed. Caminho

 As raízes do voo

São as cores?
Ou declarar-me assim a esta árvore?
Num sobressalto, desassossego
lento - as colmeias de ramos e de folhas,
o corpo em curvas densas,
as raízes,
e, delicadamente, o coração

Apaixonar-me e outra vez,
agora por um tempo de nervura
acesa, o fogo - e sem palavra que chegasse
para habitar o mundo:
são as cores, dir-lhe-ia,
ou os meus olhos?

E se faltar olhar, ouvido, cheiro, mãos,
ver-te sem ver, sentir-te sem sentir:
neste musgo e por dentro
poder perder-me, fingir-me distraída
pelo puro prazer de me fingir,
sem sossego nenhum
- aprender a voar -
pelo desassossego de um dedo
preso à terra

Mas se as asas faltarem,
serão sempre as cores,
uma leve impressão de nervos, digital,
de qualquer coisa

Há-de ser isto assim:
luz para além de azul,
paz muito além do verde a respirar
- ou eu, igual ao sol,
comovendo-me em ar e
por raízes -

Ana Luísa Amaral, In "Se fosse um intervalo", Publicações D. Quixote

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