terça-feira, 13 de novembro de 2012

Sobre a Poesia XV


«Não abras a porta, / se for o sublime diz que não estou, / já temos palavras de mais, sentimentos demais.»Manuel António Pina , in " Todas as palavras",Ed. Assírio&Alvim

Manuel António Pina, jornalista, poeta e escritor nasceu no Sabugal. Licenciou-se em Direito pela Universidade de Coimbra. Vivia no Porto e foi jornalista do "Jornal de Notícias" durante três décadas. Morreu aos 68 anos, em 19 de Outubro deste ano. Galardoado em 2011 com o Prémio Camões, o mais importante da Língua Portuguesa, tinha mais de 50 livros publicados e muitos dos seus livros nasceram da leitura de ensaios, conforme declarou na entrevista que deu ao PÚBLICO, após ter recebido o Prémio.  Sentia-se, primordialmente e acima  de qualquer género, um poeta,  embora a sua actividade literária seja vasta e  diversificada,   abrangendo  a novelística, a dramaturgia , a literatura infantil,  o ensaio . Durante anos foi um excelente cronista de que é exemplo a  crónica diária, “Por outras Palavras”, que  mantinha na última página do “JN”.   
A sua obra está publicada em Espanha, França, Dinamarca, Alemanha, Países Baixos, Croácia, Bulgária, Rússia e Estados Unidos.
O último livro de originais de Manuel António Pina, "Como se desenha uma casa", publicado pela Assírio & Alvim , acaba de ser anunciado, ontem, 12 de Novembro, o vencedor da 8.ª edição do Prémio de poesia Teixeira de Pascoaes 2012. O Prémio, de periodicidade bienal, foi instituído pela autarquia de Amarante, em 1997 e será entregue a título póstumo, a 15 de Dezembro.
"Todas as palavras – Poesia reunida” é o livro mais recente  de Manuel António Pina, publicado este ano, também pela Assírio & Alvim que já editara, em 2001,  a primeira edição da Poesia Reunida deste grande poeta. Nessa altura, escreveu Eduardo Prado Coelho, no Público: «Talvez agora, no momento em que a Assírio & Alvim publica a "Poesia Reunida" de Manuel António Pina, estejamos em condições de poder afirmar que nos encontramos perante um dos grandes nomes da poesia portuguesa actual. Uma extrema delicadeza pessoal, uma discrição obsessiva, uma cultura ziguezagueante e desconcertante, mas sempre subtil e envolvente, um sentido profundo da complexidade da literatura, e também, sobretudo, da complexidade da vida, têm talvez impedido a descoberta plena e mediática deste jornalista e homem de letras também voltado para os jogos mais leves e embaladores da literatura infantil. Contudo, torna-se imperioso dizê-lo agora: este tom deliberadamente menor sustenta uma obra maior da literatura portuguesa». A edição que saiu no corrente ano, apresenta-se numa belíssima edição encadernada e substancialmente ampliada, onde está incluído todo o trabalho poético do autor de 1974 a 2011."
Para a XVª edição de "Sobre a Poesia",   espaço onde os poetas reflectem sobre Poesia, retomamos as palavras que Manuel António Pina utilizou numa entrevista concedida ao Jornal de Notícias , "Onde sinto meu sangue é na poesia", bem como aquelas que fizeram a crónica «Persistência da Poesia», publicada na Revista Visão. 

Persistência da poesia
Por Manuel António Pina

"Talvez, quem sabe?, a poesia seja alguma espécie obscura de religião. 
A poesia é um mistério incompreensível. Porque escrevem as pessoas poesia? E porque a lêem ou ouvem outras pessoas? Eu sei que pode escrever-se poesia (o que quer que "poesia" signifique) por muitos motivos, nem todos respeitáveis.
Ao longo da História, a poesia tem servido um pouco para tudo, seja ut doceat, ut moveat aut delectet, que é como quem diz "para ensinar, comover ou deleitar" (a fórmula tem 500 anos e é de Rudolfo Agrícola) seja para enaltecer e louvar ou, se não para ganhar a vida, ao menos para fazer por ela.
Hoje, como provam os programas de Língua Portuguesa da dra. Maria de Lurdes Rodrigues, a poesia é coisa perfeitamente dispensável no ensino e qualquer telenovela comove e deleita mais gente que um poema de Cesário ou de Herberto; por outro lado, já ninguém encomenda um poema para eternizar os seus feitos (a verdade é que também faltam feitos que mereçam ser eternizados) nem nenhuma dama se deixa seduzir com protestos de amor decassilábicos e metáforas. Quanto a ganhar a vida estamos falados; com raras excepções, os livros de versos vendem umas poucas centenas de exemplares e só editores suicidas se metem em tal negócio. Há tempos, um editor punha a uma selecta audiência de poetas a seguinte pergunta: como se edita poesia e se tem uma pequena fortuna ao fim de uns anos? A resposta é: começando com uma grande fortuna. No entanto, continua a haver gente a escrever poesia e gente a editá-la. E gente a ler ou a ouvir poesia.
Na semana passada realizou-se em Maiorca o Festival de Poesia do Mediterrâneo (outro mistério: por todo o lado continuam a realizar-se festivais de poesia). Havia poetas catalães, castelhanos, asturianos, árabes, portugueses.
Na última noite, 500 ou 600 pessoas ouviram ler poemas em línguas que não conheciam. Muitas vezes (pelo menos no caso do árabe e do português) não faziam a mínima ideia do que falavam os poetas. Mas escutavam como se participassem numa celebração cujo significado estivesse além (ou aquém) das palavras.
Que procuravam ali aquelas pessoas? Só a "música das palavras"? Mas a poesia não é música, é um pouco menos e um pouco mais que música. É certo que também não é apenas sentido mas algo entre uma coisa e outra ou ambas ao mesmo tempo, "música do sentido", como diz Castoriadis, e talvez, quem sabe?, alguma forma de sentido que a música possa fazer. Como os outros, também eu escutava. Às vezes julgava reconhecer uma palavra e agarrava-me a ela como um náufrago até a perder algures fora e dentro de mim, ou percebia uma sonoridade dolorosa, uma inflexão irónica, uma invectiva (em árabe, meu Deus!, que mais podia eu perceber?), e isso me bastava para, por um momento, me sentir absurdamente feliz.
Talvez, quem sabe?, a poesia seja alguma espécie obscura de religião, talvez ela própria seja uma língua estrangeira falada em regiões distantes e interiores, talvez escrevendo poesia e lendo e ouvindo poesia estejamos perto de algo maior do que nós ou do nosso exacto tamanho. Porque alguma razão há-de haver para a persistência da poesia mesmo em tempos tão pouco gloriosos como os nossos."
Manuel António Pina  em Crónica publicada na VISÃO,  Junho de 2007
FotogaleriaManuel António Pina (1943-2012)


Farewell Happy Fields

Entre a minha vida e a minha morte mete-se subitamente
A Atlética Funerária, Armadores, Casa Fundada em 1888.
A esse sítio acorrem então, aflitíssimos, o teu vago sorriso
e a vaga maneira como dizes os esses;
vêm de muito longe e chegam incompletamente
ao pequeno vulnerável sítio entre
toda a minha vida e toda a minha morte,
quando a minha última recordação atirou já com a porta
e tudo está acabado até a tua respiração
na cama ao meu lado,
e também tu estás morta,
duma forma que já não me importa.

Vamos então os dois outra vez
ao longo de certas ruas sombrias e de certos dias
e sorris e falas alto; está calor mas tens as mãos frias,
compramos coisas, visitamos
talvez algum último amigo
sem sabermos que eu já não estou vivo.

Poderia ter sido de outro modo?
Poderiam ter sido outras duas pessoas
vivendo a minha e a tua vida, morrendo a minha e a tua morte?
(Mesmo o armador, poderia ter sido outro?)
Aparentemente foi por pouco;
se fosse um pouco mais tarde ou um pouco mais cedo,
se eu não tivesse chegado a casa cansado
se a louça não estivesse por lavar
e a janela da sala de jantar
não estivesse fechada, se o mundo não tivesse acabado,
nem eu tivesse ido ao supermercado,
e se eu não estivesse cheio de medo.

Agora estou voltado para cima,
para onde cantas ainda há muito tempo.
Se calhar isto (alguma coisa) vai demorar mas já não me impaciento.
Voltamos, tu eu, ao mesmo jardim desflorido
onde eu morro sozinho
e conversamos comigo
como com um desconhecido.
Que diremos agora um ao outro?

É tarde. Ainda há um momento
me apetecia conversar, agora estou outra vez cansado!
Reparaste como o Outono este ano veio por outro lado,
como se fosse pelo lado de dentro?

Manuel António Pina, «Farewell Happy Fields» in “Poesia Reunida”, Lisboa, Assírio & Alvim, 2001

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