quinta-feira, 29 de novembro de 2012

O ano da Poesia


O ANO DE 1888 E  A POESIA

"Em 1888 nasceram três grandes poetas, glórias da língua italiana, da língua portuguesa e da língua inglesa: a 8 de Fevereiro, em Alexandria, Egipto, Giuseppe Ungaretti; a 13 de Junho, em Lisboa, Fernando Pessoa; a 26 de Setembro, em St. Louis, Missouri, Estados Unidos, T. S. Eliot. A poesia das suas respectivas línguas e a poesia universal só por equívoco continuaram a ser as mesmas depois da revolução expressiva que cada um deles efectuou. E sem dúvida que Pessoa, se vivo fosse, conheceria este ano uma consagração gloriosa como a que os países anglo-saxónicos estão tributando a T. S. Eliot, e como a que não sei se a Itália terá tributado a quem é hoje o seu maior poeta vivo. Altos espíritos, para nenhum deles a poesia foi um dom gratuito dos deuses, mas uma atenção, uma coragem, um desassombro. Críticos lúcidos, influíram poderosamente no pensamento estético do seu tempo, e com eles, como com outros que os precederam ou seguiram de pouco, sofre um golpe mortal a concepção romântica da poesia como devaneio sentimental. São, em que pese a crítica, poetas da inteligência, da emoção dilucidada, da acuidade expressiva. Não são artistas do verso - que os houve sempre demais, e mesmo entre os românticos -, mas artistas da criação poética, da poesia como conhecimento e apreensão profunda. Homens de expressão exacta, densa oblíqua, ultrapassaram simultaneamente a ambiguidade simbolista, que a todos marcou, e a imprecisão romântica, a que todos fugiram. E, sobretudo, liquidaram o arsenal de convenções temáticas, imagísticas e linguísticas da mediocridade poética, expondo-o no pelourinho da secura irónica ou da severidade ascética da expressão. Pessoa não necessita de ser relembrado em seus versos, pois que, depois de Camões, nenhum poeta português conheceu, como a sua obra está conhecendo, um tão autêntico e tão vasto prestígio. Mas de Eliot e Ungaretti, menos conhecidos entre nós, até por menos difundidas as suas línguas que o espanhol ou o francês, há que lembrá-los por poemas seus. A seguir encontrará o leitor a tradução, que fiz, de dois dos mais célebres poemas e dos mais característicos de uma certa maneira de cada um: O «Boston Evening Transcript», de T. S. Eliot, Io Sono uma Creatura, de G. Ungaretti."


O «BOSTON EVENING TRANSCRIPT»
de T. S. Eliot

Os leitores do Boston Evening Transcript
Curvam-se ao vento como seara madura.
Quando a tarde se apressa um pouco na rua
Despertando apetites de vida em alguns
E a outros trazendo o Boston Evening Transcript,
Eu subo as escadas, toco a campainha,
Voltando-me cansado, como que se voltaria para acenar adeus a Rochefoucauld,
Se a rua fosse tempo e ele no fim da rua,
E digo: - Prima Henriqueta, aqui está o Boston Evening Transcript.
(Prufrock and Other Observations, 1917)

SOU UMA CRIATURA
de G. Ungaretti

Como esta pedra
do S. Miguel
assim fria
assim dura
assim enxuta
assim refractária
assim totalmente
desanimada
como esta pedra
é o meu pranto
que não se vê

A morte
desconta-se
vivendo.
(Allegria di Naufragi, 1919)

Jorge de Sena , in  “ O Dogma da Trindade Poética (Rimbaud) e Outros Ensaios, Edições Asa, 1994 , (publicado, originalmente, na Gazeta Musical e de todas as Artes, Ano IX, 3ª série, nº 91/92 de Outubro/Novembro de 1958)

 II
HORIZONTE
O mar anterior a nós, teus medos
Tinham coral e praias e arvoredos.
Desvendadas a noite e a cerração,
As tormentas passadas e o mistério,
Abria em flor o Longe, e o Sul sidério
'Splendia sobre as naus da iniciação.

Linha severa da longínqua costa -
Quando a nau se aproxima ergue-se a encosta
Em árvores onde o Longe nada tinha;
Mais perto, abre-se a terra em sons e cores:
E, no desembarcar, há aves, flores,
Onde era só, de longe a abstracta linha

O sonho é ver as formas invisíveis
Da distância imprecisa, e, com sensíveis
Movimentos da esp'rança e da vontade,
Buscar na linha fria do horizonte
A árvore, a praia, a flor, a ave, a fonte -
Os beijos merecidos da Verdade.
Fernando Pessoa, in " Mensagem", Edições Ática, 1959

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