quinta-feira, 4 de outubro de 2012

Dores pungentes


Que raio de gente esta!
Por Baptista Bastos

"Aprendi, há muitos anos, que os homens se dividem em sólidos, líquidos e gasosos. Ensinou-me o meu pai estas definições, que o rodar do tempo confirmou serem adequadas e justas. Já ultrapassei a idade com que o meu pai morreu e sinto-me desconfortavelmente adaptado às dores do corpo. Que remédio! Às da alma, é que não. São dores pungentes porque tocam nas coisas da esperança e do sonho desunidos. Poucos homens sólidos há, hoje. A época tem sido fértil em amolecer caracteres e em estimular e premiar a velhacaria e a malandrice. Gosto muito da palavra "sólido". Tenho vivido e respirado palavras, não passo de um vago senhor português, com a tineta de que as palavras podem modificar o destino de milhões de homens, e a palavra "sólido" ainda hoje me surge como um significado de dignidade.
Conheço, agora, muitos mais homens líquidos e gasosos de que antes. Não quero dizer que os não houvesse; mas, hoje, estão mais expostos à própria malignidade do tempo. Vêmo-los e assistimos ao que dizem, mentirosos sem remissão; infalíveis tratantes; uma congregação de gente moldada ignora-se como, de quê e por quê. O nivelamento por baixo atingiu todos os sectores da sociedade. A indolência, de ordem cívica, é a pior de todas as afrontas éticas. E, de repente, ficámos aturdidos com um milhão de pessoas nas ruas, sem saber o significado mais profundo dessas razões. Sem saber o que fazer desta e com esta multidão. Pessoas sólidas, inesperadamente tornadas indefectíveis aos valores e aos princípios, e, até, às ideias, que calculávamos soterrados.
É verdade que uma comoção alegre nos atingiu. Porém, estamos tão desavindos, tão mortiços, tão perdidos, ignorância de pobres e de cegos, que perguntamos, tontos e incrédulos: e agora?
Os homens líquidos e os homens gasosos continuam nessa desfilada indecente. Fala-se, agora, em "impreparação" de quem dirige o País. Oculta-se o projecto ideológico que lhe subjaz, e no tripudiar dos conceitos morais. Esta casta não é nova: procede, directamente, do oportunismo nascido das sociedades em ruptura, e que pratica uma constante "transacção" de interesses. A manifestação de 15 de Setembro representou a repulsa por esta gente. Mas, também, pelos que se lhe não opõem.
Temos assistido a episódios deploráveis, como aquele, na segunda-feira, no qual António José Seguro ficou perplexo por desconhecer que a substituição da taxa social única fora aprovada em Bruxelas, sem que o Governo o tivesse consultado. A humilhação fez espelho nas televisões. O pobre homem, um pouco espavorido, balbuciou uma módica frase de tristíssima indignação. Não serve de nada: Passos despreza-o e despreza-nos. No decálogo ensinado pelo Velho Bastos, em que categoria colocaríamos o secretário-geral do PS: líquido ou gasoso?; sólido, certamente, não.”
Baptista Bastos em Crónica publicada no DN, em 3 de Outubro de 2012

1 comentário:

  1. Baptista-Bastos, Mestre na Arte do jornalismo!... E velho amigo, e homem resistente!
    Pessoalmente, quanto lhe devemos, quanto nos ensinou da Vida, da vida que algumas vezes lhe saíu madrasta!...
    Ao seu lado, naquele Bairro Alto que acolhia por esse tempo de "chuva" e perseguição, dentro das suas "muralhas", quase todos os jornais diários de Lisboa, um Bairro Alto tão diferente do que hoje se apresenta, a seu lado colhemos de si, desse Homem íntegro e honestíssimo, um pouco da sua Sabedoria.
    Colhemos com avidez esse conhecimento que não vem em livro algum nem nunca virá, que se transmite de alma a alma, de sonho em sonho, de página em página, de suelto em suelto, de crónica em crónica!
    Todo o tempo do mundo...
    Ao som monótono do matraquear das velhas máquinas "escrevinhadoras", no espanto do sonoro resmalhar do papel seco, pingando de alucinação, da verdade que os cheiros das tintas provocam, colhemos com ambas as mãos um conhecimento sempre sangrando beleza e grandiosidade e luta!...
    Porque a luta de todos os dias está associada à notícia, à reportagem, ao dar voz aos muitos que não têm voz!...
    E são tantos, tantos os que não têm voz, nem lhes permitem que a tenham!...
    Abraço muito amigo e solidário ao Armando (Baptista-Bastos)! - V. P.

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