terça-feira, 9 de outubro de 2012

A Lua já não dá luar


Os filhos da época

Somos os filhos da época,
e a época é política.
Todas as coisas - minhas, tuas, nossas,
coisas de cada dia, de cada noite
são coisas políticas.
Queiras ou não queiras,
teus genes têm um passado político,
tua pele, um matiz político,
teus olhos, um brilho político.
O que dizes tem ressonância,
o que calas tem peso
de uma forma ou outra - político.
Mesmo caminhando contra o vento
dos passos políticos
sobre solo político.
Poemas apolíticos também são políticos,
e lá em cima a lua já nao dá luar.
Ser ou não ser: eis a questão.
Oh, querida que questão mal parida.
A questão política.
Não precisas nem ser gente
para teres importância política.
Basta ser petróleo, ração,
qualquer derivado, ou até
uma mesa de conferência cuja forma
vem sendo discutida meses a fio.
Enquanto isso, os homens se matam,
os animais são massacrados,
as casas queimadas,
os campos se tornam agrestes
como nas épocas passadas
e menos políticas.

Wislawa Szymborska, in "Antologia de 63 poetas eslavos", tradução e organização - Aleksandar Jovanovic - Editora Hucitec, São Paulo, 1996


Coisas sólidas e verdadeiras
Por Manuel António Pina
"O leitor que, à semelhança do de O'Neill, me pede a crónica que já traz engatilhada perdoar-me-á que, por uma vez, me deite no divã: estou farto de política! Eu sei que tudo é política, que, como diz Szymborska, "mesmo caminhando contra o vento/ dás passos políticos/ sobre solo político". Mas estou farto de Passos Coelho, de Seguro, de Portas, de todos eles, da 'troika', do défice, da crise, de editoriais, de analistas!
Por isso, decidi hoje falar de algo realmente importante: nasceram três melros na trepadeira do muro do meu quintal. Já suspeitávamos que alguma coisa estivesse para acontecer pois os gatos ficavam horas na marquise olhando lá para fora, atentos à inusitada actividade junto do muro e fugindo em correria para o interior da casa sempre que o melro macho, sentindo as crias ameaçadas, descia sobre eles em voo picado.
Agora os nossos novos vizinhos já voam. Fico a vê-los ir e vir, procurando laboriosamente comida, os olhos negros e brilhantes pesquisando o vasto mundo do quintal ou, se calha de sentirem que os observamos, fitando-nos com curiosidade, a cabeça ligeiramente de lado, como se se perguntassem: "E estes, quem serão?"
Em breve nos abandonarão e procurarão outro território para a sua jovem e vibrante existência. E eu tenho uma certeza: não, nem tudo é política; a política é só uma ínfima parte, a menos sólida e menos veemente, daquilo a que chamamos impropriamente vida."
Manuel António Pina em Crónica publicada no JN de 1/08/2012

2 comentários:

  1. Estamos todos fartos de políticos, de desgraça, de tristeza e de mais e mais imagens de pura demagogia nos ditos canais noticiosos que repetem exaustivamente notícias de calamidades, de sofrimento humano como preenchimento do tempo que antecede a publicidade e os blocos informativos. Acreditam, assim,que são os melhores na cobertura e divulgação dos grandes acontecimentos que castigam o Homem. Chamar a isso eficiência e qualidade é um rematado e torpe artifício. O que fazem não passa de uma vil banalização do sofrimento humano. A tirania da insensibilidade busca sempre sementes nas práticas abusivas.
    Por isso, estou de acordo com Manuel António Pina. Estou farto de todos eles. A vida merece muito mais.

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  2. A notícia não acontece, inventamo-la nós, qualquer um, todos os dias!

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