segunda-feira, 10 de setembro de 2012

Luísa


"(...)Luísa espreguiçou-se. Que seca ter de se ir vestir! Desejaria estar numa banheira de mármore cor-de-rosa, em água tépida, perfumada, e adormecer! Ou numa rede de seda, com as janelas cerradas, embalar-se, ouvindo música! Sacudiu a chinelinha; esteve a olhar muito amorosamente o seu pé pequeno, branco como leite, com veias azuis, pensando numa infinidade de coisinhas: em meias de seda que queria comprar, no farnel que faria a Jorge para a jornada, em três guardanapos que a lavadeira perdera...Tornou a espreguiçar-se. E, saltando na ponta do pé descalço, foi buscar ao aparador por detrás de uma compota um livro um pouco enxovalhado, veio estender-se na voltaire, quase deitada, e, com o gesto acariciador e amoroso dos dedos sobre a orelha, começou a ler, toda interessada.
Era A Dama das Camélias. Lia muitos romances; tinha uma assinatura, na Baixa, ao mês. Em solteira, aos dezoito anos, entusiasmara-se por Walter Scott e pela Escócia; desejara então viver num daqueles castelos escoceses, que têm sobre as ogivas os brasões do clã, mobilados com arcas góticas e troféus de armas, forrados de largas tapeçarias, onde estão bordadas legendas heróicas, que o vento do lago agita e faz viver; e amara Ervandalo, Morton e Ivanhoe, ternos e graves, tendo sobre o gorro a pena de águia, presa ao lado pelo cardo da Escócia de esmeraldas e diamantes. Mas agora era o moderno que a cativava: Paris, as suas mobílias, as suas sentimentalidades. Ria-se dos trovadores, exaltara-se por Mr. de Camors; e os homens ideais apareciam-lhe de gravata branca, nas ombreiras das salas de baile, com um magnetismo no olhar, devorados de paixão, tendo palavras sublimes. Havia uma semana que se interessava por Margarida Gautier: o seu amor infeliz dava-lhe uma melancolia enevoada: via-a alta e magra, com, o seu longo xale de caxemira, os olhos negros cheios da avidez da paixão e dos ardores da tísica; nos nomes mesmo do livro — Júlia Duprat, Armando, Prudência, achava o sabor poético de uma vi da intensamente amorosa; e todo aquele destino se agitava, como numa música triste, com ceias, noites delirantes, aflições de dinheiro, e dias de melancolia no fundo de um coupé, quando nas avenidas do Bois, sob um céu pardo e elegante, silenciosamente caem as primeiras neves.- Até logo, Zizi — gritou Jorge do corredor, ao sair.
— Olha! Ele veio, com a bengala debaixo do braço, apertando as luvas.- Não apareças muito tarde, hem? Escuta-me, traze-me uns bolos do Baltreschi para a D. Felicidade. Ouve. Vê se passas pela Madame François, que me mande o chapéu. Escuta.
— Que mais, bom Deus? — Ah!, não! Era para ires pelo livreiro, que me mande mais romances... Mas está fechado!
Foi com duas lágrimas a tremer-lhe nas pálpebras que acabou as páginas d'A Dama das Camélias. E estendida na voltaire, com o livro caído no regaço, fazendo recuar a película das unhas, pôs-se a cantar baixinho, com ternura, a ária final da Traviata:
Addio, del passato... Lembrou-lhe de repente a notícia do jornal, a chegada do primo Basílio...Um sorriso vagaroso dilatou-lhe os beicinhos vermelhos e cheios. Fora o seu primeiro namoro, o primo Basílio! Tinha ela então dezoito anos! Ninguém o sabia, nem Jorge, nem Sebastião
De resto, fora uma criancice: ela mesmo, às vezes, ria, recordando as pieguices ternas de então, certas lágrimas exageradas! Devia estar mudado, o primo Basílio.Lembrava-se bem dele -alto, delgado, um ar fidalgo, o pequenino bigode preto levantado, o olhar atrevido, e um jeito de meter as mãos nos bolsos das calças fazendo tilintar o dinheiro e as chaves!
Aquilo começara em Sintra, por grandes partidas de bilhar muito alegres, na quinta do tio João de Brito, em Colares. Basílio tinha chegado então de Inglaterra: vinha muito bife, usava gravatas escarlates passadas num anel de ouro, fatos de flanela branca, espantava Sintra! Era na sala de baixo pintada a oca, que tinha um ar antigo e morgado; uma grande porta envidraçada abria para o jardim, sobre três degraus de pedra. Em roda do repuxo havia romãzeiras, onde ele apanhava flores escarlates. A folhagem verde-escura e polida dos arbustos de camélias fazia ruazinhas sombrias; pedaços de sol faiscavam, tremiam na água do tanque; duas rolas, num gaiola de vime, arrulhavam docemente; e, no silêncio aldeão da quinta, o ruí do seco das bolas de bilhar tinha um tom aristocrático.Depois vieram todos os episódios clássicos dos amores lisboetas passados em Sintra: os passeios em Seteais ao luar, devagar, sobre a relva pálida, com grandes descansos calados no Penedo da Saudade, vendo o vale, as areias ao longe, cheias de uma luz saudosa, idealizadora e branca; as sestas quentes, nas sombras da Penha Verde, ouvindo o rumor fresco e gotejante das águas que vão de pedra em pedra; as tardes na várzea de Colares, remando num velho bote, sobre a água escura da sombra dos freixos — e que risadas quando iam encalhar nas ervagens altas e o seu chapéu de palha se prendia aos ramos baixos dos choupos! Sempre gostara muito de Sintra! Logo ao entrar, os arvoredos escuros e murmurosos do Ramalhão lhe davam uma melancolia feliz! Tinham muita liberdade, ela e o primo Basílio. A mamã, coitadinha, toda cismática, com reumatismo, egoísta, deixava-os, sorria, dormitava: Basílio era rico, então, chamava-lhe tia Jojó, trazia-lhe cartuchos de doce. Veio o Inverno, e aquele amor foi-se abrigar na velha sala forrada de papel sangue-de-boi da Rua da Madalena. Que bons serões ali! A mamã ressonava baixo, com os pés embrulhados numa manta, o volume da «Biblioteca das Damas» caído sobre o regaço. E eles, muito chegados, muito felizes, no sofá! O sofá! Quantas recordações! Era estreito e baixo, estofado de casimira clara, com uma tira ao centro, bordada por ela,amores-perfeitos amarelos e roxos sobre um fundo negro. Um dia veio o final. João de Brito, que fazia parte da firma Bastos & Brito, faliu. A casa de Almada, a quinta de Colares, foram vendidas.
Basílio estava pobre, partiu para o Brasil. Que saudades! Passou os primeiros dias sentada no sofá querido, soluçando baixo, com a fotografia dele entre as mãos. Vieram então os sobressaltos das cartas esperadas, os recados impacientes ao escritório da companhia, quando os paquetes tardavam...Passou um ano. Uma manhã, depois de um grande silêncio de Basílio, recebeu da Baía um longa carta, que começava:
Tenho pensado muito e entendo que devemos considerar a nossa inclinação como uma criancice...
Desmaiou logo. Basílio afectava muita dor em duas laudas cheias de explicações: que estava ainda pobre; que teria de lutar muito antes de ter para dois; o clima era horrível; não a queria sacrificar, pobre anjo; chamava-lhe «minha pomba» e assinava o seu nome todo, com uma firma complicada.Viveu triste durante meses. Era no Inverno; e sentada à janela, por dentro dos vidros, com o seu bordado de lã, julgava-se desiludida, pensava no convento, seguindo com um olhar melancólico os guarda-chuvas gotejantes que passavam sob as cordas de água; ou sentando-se ao piano, ao anoitecer, cantava Soares de Passos:
Ai!, adeus, acabaram-se os dias. Que ditoso vivi a teu lado... ou o final da Traviata, ou o Fado do Vimioso, muito triste, que ele lhe ensinara.
Mas então o catarro da manhã agravou-se; vieram os sustos, as noites veladas. Na convalescença foram para Belas: ligou-se ali muito com as Cardosos, duas irmãs magras, estouvadas e esguias, sempre coladas uma à outra, com um passinho trotado e seco, como um casal de galgos. O que riam, Jesus! O que falavam dos homens! Um tenente de artilharia tinha-se apaixonado por ela. Era vesgo, mandou-lhe uns versos, «Ao Lírio de Belas»:
Sobre a encosta da colina  Cresce o lírio virginal...
Foi um tempo muito alegre, cheio de consolações.Quando voltaram no Inverno tinha engordado, trazia boas cores. E um dia, tendo achado numa gaveta uma fotografia que logo ao princípio Basílio lhe mandara da Baía, de calça branca e chapéu panamá, fitou-a, encolhendo os ombros:- E o que eu me ralei por esta figura! Que tola!" 
Eça de Queiroz, in " O Primo Basílio",Lello & Irmão- Editores, Porto

1 comentário:

  1. A mulher sempre foi deusa sem o saber!... Na solidão, na dor, no silêncio, no amor, no murmúrio, na compaixão, na fala, no grito. A mulher pode encontrar momentos felizes através da sua auto-afirmação, da sua capacidade de sofrimento, na prossecução do seu direito de viver e ainda de amar o seu próprio corpo e de fazer dele o uso que entender. Neste contexto pode-se considerar a Luísa de "O Primo Basílio" uma mulher interdita, a proibição absluta de poder ser feliz. Vive cercada. É a mulher do adultério, aquela a quem é proibido qualquer prazer, o agente da violação do sagrado sacramento do matrimónio, aquela que as outras mulheres irão odiar, expurgar do seu círculo de amizades, do convívio entre elas. A mulher perigosa, que pode turvar as águas, quebar o equilíbrio em que as outras mulheres vivem com os seus maridos. Na ida de Jorge para o Alentejo, para esse inferno de isolamento e calor, cobrir-se de poeira e de enjoo, abre-se o espaço para a verdadeira entrada em cena de Basílio, o dandy, o galante, que fingindo amar as mulheres, desprezava-as, quase que as odiava, descartando-se delas quando lhe aprouvesse!... Os mais espontâneos sentimentos de Luísa - como se depreende- são asfixiados na hipocrisia do meio, onde vive. Será para todo o sempre uma das mulheres símbolos de uma certa maneira de encarar o incesto também, e que será condenada, como as outras. E porquê?... Porque eram primos-irmãos os seus protagonistas. Que lhe resta, por fim?... Luísa acaba por morrer de "febre cerebral"... Eis como o Bovarismo de Flaubert se recomenda, e mantém-se vivo, implacável, quase "assassino", numa espécie de assassinato social, se assim se pode chamar a isto...

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