quinta-feira, 27 de setembro de 2012

As minhas cidades


"A CIDADE DO CANAL
                              11 de Outubro de 1951
Prometi uma vez retratar as sete cidades ou burgos em que vivi por mais tempo, e afinal não passei de umas duas. Tendo começado pela terra onde nasci, esqueci-me por lá em minudências saudosas.
Os naturais dos sítios são como os criminosos: voltam ao lugar do delito. Não que eu subscreva àquilo do poeta que diz, que «sempre o pior mal é ter nascido». O mal ou a culpa de Adão remiu-a Cristo com sangue – e Ele próprio se lustrou nas águas do baptismo, ainda que o Santo Espírito o tenha gerado sem mácula. Fora disso, não há mal algum em cá vir. Se o mal existe independente da consciência que o apreende e do coração que lhe dá campo, tal como o bem impassível, os homens de carne e osso os vivem e padecem – pois que o bem-proceder nasce de paixão levantada. Sem suor do rosto, sem alento e outros sinais de existência, como queixar-nos da vida? Isto de Mundo é irrecusável. Só há perdão para a repulsa do Mundo no anelo da Santa Cidade.
Ora, as minhas cidades não seriam santas, decerto, – que nem Jerusalém nem Roma me couberam, – mas eram as melhores que dar-se podiam a um vivo desenraizado. O mais importante nas memórias de homem um pouco peregrino é esse ponto dorido que o coração acusa quando se lembra do transplante. Partir, arrancar de um lugar, é pagar o preço da viagem, que sempre nos sai da pele. Morei em terras estranhas por largos lapsos de tempo e, apesar de as deixar para voltar às nossas, estremecia sempre. Vamo-nos semeando pelo mundo como um punhado de trigo que só numa única leira daria seara que se visse. E estes semeadores salteados, custa-lhes muito a ceifar... «Terra quanta vejas» – é o lema do morar e possuir.
Os pés de barro que tornam o recordar vulnerável são o «eu fiz», «eu aconteci», forçosos na recordação. Mas já me desenganei; – pois, como oficial de escrever e de falar, tenho de me agarrar ao pronome antipático e ostensivo: «eu», «eu» a torto e a direito... Como o bom carpinteiro não larga a plaina da mão, o escritor, mais que a pena ou o teclado da máquina de escrever, não pode largar o «eu». «Que me arrancan mi yo!» gostava Unanumo de gritar, creio que com Michelet. A primeira pessoa do plural, aliás, também não fica bem a quem não apascente ovelhas de redil humano. Oh ! o emprego dos pronomes: a eterna história de O Velho, o Rapaz e o Burro...
Mas dizia eu que o arranque do sítio onde vivemos resume o pó da jornada, fá-lo tragado e sufocante como nenhuma outra curva do caminho. Lembro as pequenas torres das igrejas e da Câmara da Praia, na ilha Terceira, que, deixadas ao alto da Boa Vista, me pareciam sepultar nos seus alicerces de tufo as casas dos meus e dos vizinhos, a escola, as ruas do trânsito e da gandaia, o cais e o areal dos sonhos. Eu chegava a Angra e, pouco a pouco, outras torres, – maiores e tão duramente históricas, que duas delas, as da igreja do Castelo, campeavam entre torreões que haviam sido estrangeiros, assestando bocas de fogo sobre os naturais da ilha inermes, – começavam a organizar em torno de mim a intimidade, a confiança, e dali a bem pouco o apego. Alguns anos bastaram para me naturalizar ali. E confesso até, que, apesar de ter feito o meu transplante num palmo redondo de ilha, nunca uma aclimação me custou mais do que essa.
As raízes então violentadas eram as mais tenazes, as primeiras. Depois, lentamente, a planta humana vai-se acostumando a que o destino, que é jardineiro, a «disponha», – e acaba por ter o seu sistema de implante como que em estado de alarme. Umas gotas de água de rega chegam para lhe tornar algum viço.
Mas dói, custa sempre... Recordo-me mesmo de que a minha segunda transplantação, a de uma ilha para outra, foi que me deu o tema para reviver a terceira, – então já um salto grave, quase transoceânico, das ilhas para estas nossas portuguesas paragens, a que nós, os ilhéus, chamamos «o Continente», de um ponto de vista telúrico que deve ter seu sentido em etnopsicologia. E é curioso que a evocação da largada decisiva tenha surgido noutro transe crucial de filho pródigo: a minha primeira fixação no estrangeiro.
A sempre-mesma visão da terra deixada, em panorama, parecia levar, com o apartamento, a carne do saudoso aderida ! Era outra vez toda a planta arrancada que se retraía e sentia murchar pouco a pouco. Algo assim como estas modestas largadas deve ser o passo do rio de Caronte. A uma perspectiva negra, de eclipse e de fim de mundo, sucederá, mediante a transição adequada, a adesão gradual à perspectiva nova que nos vai convidando e absorvendo. Não custa estar... ser objecto de censo demográfico, de recolher e de alvorada, de almoço, de sesta e ceia. O que dói é tornarmo-nos de repente sujeitos do mundo concluso e ausente, juízes na própria causa subitamente processada ali diante de nós... naquelas casas do amor e do hábito que fogem... que se aninham ao longe e é em nós que se comprimem.”
Vitorino Nemésio, in    "Corsário das Ilhas, ( capítulo X) ", Bertrand, 1956

 "A biografia de Nemésio é bastante o percurso da sua obra, da ficção, das crónicas, principalmente da poesia
A propósito de António Nobre, Nemésio escreveu que a biografia é "uma velha ciência que raro se deu por tal" e que o que lhe dá valor não é o somatório dos factos mas a verdade universal a partir da exemplaridade pessoal. Eis um bom pressuposto para percorrer a vida de Nemésio, açoriano da Terceira, nascido a 19 de Dezembro de 1901, nas vésperas da República e da I Guerra, e projectado a um plano europeu de Prémio Montaigne (1974), professor universitário, romanista, romancista, poeta (poeta de tudo - se considerou), ensaísta, conferencista, homem de rádio e, no fim da vida, de televisão.Instaladíssimo no continente desde que entrou na universidade, o açoriano Nemésio só voltará às suas ilhas em duas viagens, a que chamará "corsos" e relatará depois num volume chamado "Corsário das Ilhas". O "primeiro corso" passa-se em 1946, já Nemésio tinha escrito o "Mau Tempo no Canal". Antes de partir, no navio da Insulana que era o transporte da época, Nemésio está objectivamente "perturbado com os seus fantasmas de infância", como assinala Machado Pires no prefácio. "Oh, solidão das ilhas!... Conquista da terra por firmeza no pouco que se tem e por tino e recuo a tempo no muito que se deseja... Portos fechados, ilhas à vista... Entre nós e o mundo aquela porção de sal que torna incorrupto o aro da terra... Movimento e força; outras vezes tranquilidade e pasmo (...) Ilhas pontuadas naquela brutalidade oceânica que é afinal a única coisa delicada e discreta da nossa vida - o mar do nosso segredo... a volubilidade do nosso ardor que nada estanca... esta inconsistência de projectos humanos (mas desumano é o lógico, o ético e o inflexível! Além disso o vapor da carreira... o boletim meteorológico (grau de humidade à saturação 100...) e o acostamento de Santos com a bandeira de saída... Oiço os rebocadores."
A viagem levá-lo-á de Ponta Delgada à Terceira natal, da Graciosa ao Faial, demorando-se na Horta à qual chama "a cidade do canal" - e ainda há entre os amantes nemesianos quem insista furiosamente que o "Canal" do "Mau Tempo" é o canal Pico-São Jorge! Não é, o que uma leitura atenta do livro e esta referência à Horta deixam claro.
O "Corsário das Ilhas" - uma mistura de registos literários, entre a autobiografia e a crónica de viagem - mostra um Vitorino Nemésio desterrado na sua terra, pela violenta carga emocional que o regresso lhe provoca. Sobre a Horta, onde viveu em 1918, ainda no liceu: "Dois ou três meses bastam para criar entre um forasteiro e o seu efémero exílio uma acomodação razoável. As raízes cortadas longe pegam perto. Há logo ramaria nova, amigos que se admiram de nos conhecer há tão pouco, ruas que nos parecem reboar de passadas que teríamos ouvido no berço. O acerto não vem logo; o tempo decorrido no exílio é retrospectivo, remitente, mais consagrado ao perdido do que ao que se acaba de ganhar. Mas vem a hora do adeus, e tudo o que parecia violência feita à nossa tendência imóvel, que refere a paz e a felicidade ao primeiro lugar que nos calhou, torna-se o 'melhor tempo', o território da lembrança que os faróis da noite vão lentamente dourando e logo remetendo ao escuro... Mau tempo no Canal".
Em 1955, volta Nemésio, desta vez já de avião, que abominava. Mudaram os tempos: "Tornado à casa ancestral onde me criei e cresci, ainda me envolve o antigo silêncio sideral, o cheiro húmido e morno da vegetação sempre verde, a sua perspectiva do relevo ilhéu acamado pelas erupções de lava efusiva (...). Mas de hora em hora quebra-o, primeiro um zumbido, e logo um ronco poderoso do quadrimotor que se aproxima. É que sou vizinho das Lajes, uma das maiores plataformas da era atómica".
Por António Machado Pires, Professor Universitário, presidente do Seminário Internacional de Estudos Nemesianos, in "Público" - Quarta-feira, 19 de Dezembro de 2001

1 comentário:

  1. "Corsário das Ilhas" é um dos mais genuinos e belos registos autobiográficos que alguém possa alguma vez ter escrito!...
    Coube a Vitorino Nemésio tê-lo feito, aqui, neste verdadeiro Diário de Vida, de uma forma cativante, espontânea, literariamente encantadora!
    Em prosa, depois de "Mau Tempo no Canal", "Corsário das Ilhas" é de leitura obrigatória, não só sobre as vivências de Vitorino Nemésio poeta e viajante, mas da gente açoriana, e igualmente de muitos mais.

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