segunda-feira, 24 de setembro de 2012

A vitória nossa de cada dia

“Amor será dar de presente um ao outro a própria solidão? Pois é a coisa mais última que se pode dar de si." Clarice Lispector, in “Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres”

"E então tu não quiseste mais nada. E paraste com a possibilidade da dor, o que nunca se faz impunemente. Paraste apenas e nada encontraste além disso. Eu não digo que tenha muito, mas tenho ainda a procura intensa e uma esperança violenta. Não essa tua voz baixa e doce. E eu não choro, se for preciso um dia grito. Estou em plena luta e muito mais perto do que se chama de pobre vitória humana do que tu, mas é vitória. Eu já poderia ter-te com o meu corpo e a minha alma. Esperarei nem que sejam anos até que também tu tenhas corpo-alma para amar. Nós ainda somos novos, podemos perder algum tempo sem perder a vida inteira. Mas olha para todos ao teu redor e vê o que temos feito de nós e a isso considerado a vitória nossa de cada dia. Não temos amado acima de todas as coisas. Não temos aceitado o que não se entende porque não queremos passar por tolos. Temos amontoado coisas e seguranças por não nos termos um ao outro. Não temos nenhuma alegria que não tenha sido já catalogada. Temos construído catedrais e ficado do lado de fora, pois as catedrais que nós mesmo construímos, tememos que sejam armadilhadas. Não nos temos entregue a nós mesmos, pois isso seria o começo de uma vida larga e nós a tememos. Temos evitado cair de joelhos diante do primeiro de nós que por amor diga: tens medo. Temos organizado associações e clubes sorridentes onde se serve com ou sem soda. Temos procurado salvar-nos, mas sem usar a palavra salvação para não nos envergonharmos de sermos inocentes. Não temos usado a palavra amor para não termos de reconhecer o seu contexto de ódio, de amor, de ciúme e de tantos outros contraditórios. Temos mantido em segredo a nossa morte para tornar a nossa vida possível. Muitos de nós fazem arte por não saber como é a outra coisa. Temos disfarçado com falso amor a nossa indiferença, sabendo que a nossa indiferença é angústia disfarçada. Temos disfarçado com o pequeno medo o medo maior e por isso nunca falamos do que realmente importa. Falar do que realmente importa é considerado uma gafe. Não temos adorado por termos a sensata mesquinhez de nos lembrarmos a tempo dos falsos deuses. Não temos sido puros e ingénuos para não rirmos de nós mesmos e para que no fim do dia possamos dizer "pelo menos não fui tolo" e assim não ficarmos perplexos antes de apagar a luz. Temos sorrido em público do que não sorriríamos quando ficássemos sozinhos. Temos chamado fraqueza à nossa candura. Temo-nos temido um ao outro, acima de tudo. E a tudo isso chamamos a vitória nossa de cada dia." Clarice Lispector, in “Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres”,  Ed. Relógio D’Água, 1999

Recensão:
Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres
de Lispector, Clarice, Ed. Relógio D’Água, 1999
recenseador: Jacinto Lucas Pires, 2005 in “ Rol de Livros”, Leitura Gulbenkian

Este romance, verdadeira obra-prima de Clarice Lispector, conta a história do amor de Lóri e Ulisses – e, de certo modo, também a história do contar dessa história, que é feito na primeira pessoa pela mulher, Lóri ou Loreley –, falando-nos ainda, com assombrosa lucidez, de tudo o resto à volta. O que dificilmente tem nome e que a um olhar corrente parece tantas vezes ínfimo demais para valer uma frase; os milhares de partículas que compõem uma vida – a vida (Clarice ensina-nos que em todo o “um” há um “o” espreitando). 
“Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres” é a história de uma ligação demorada, dolorosa e feliz. Mas é também – como talvez todos os romances da escritora brasileira – a procura de uma identidade e de um pertencer. Uma procura tremenda, e tremendamente livre, que se confunde com a busca de uma linguagem outra, mais justa e mais calada, mais próxima do concreto das coisas, isto é, do seu mistério. Palavras desconcertantes de tão claras. 
Um contar em que se unem narrativas exteriores e interiores, o espiritual e o sexo, com a naturalidade de quem inventa um falar, de quem vê pela primeira vez, com o poder puro de uma permanente interrogação. A história, sem resumo possível, de uma mulher que se chama Lóri e que se chamará só “Eu”.

1 comentário:

  1. Clarice Lispector, escritora, não nasceu no Brasil. Porém, quando chegou ao Brasil, gostou e deixou-se ficar, ficando, escrevendo, pintando costumes, vivências, lendas, oceanos e intimidades, a alma das gentes que a acolheram com nobreza e dignidade. Eis uma boa oportunidade em "Livres Pensantes" para uma homenagem que tardava!...

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