quarta-feira, 22 de agosto de 2012

Palavras em prosa e em verso


«(…) é o silêncio no interior das ondas e as vozes que me acompanham desde sempre e mal as vozes se calarem levanto-me e regresso a casa. Quer dizer não sei se tenho casa mas é a casa que regresso.» António Lobo Antunes, In “Que cavalos São Aqueles Que Fazem Sombra No Mar?”, Publicações Dom Quixote, 2009.

20000000 (sufi)

Se a palavra que vais dizer
Não é mais bela que o silêncio
Não a digas

Se a palavra que vais
Dizer não é mais
Bela que o silêncio

Se a palavra dizer que vais
Não é mais bela que
Silêncio

Se a palavra
Não é mais bela
Silêncio

Se a que vais dizer
Não é palavra
Mais do que o silêncio

Não a digas bela
Se mais que silêncio
Não é palavra

Se a palavra
Não é mais
Que silêncio

Se o silêncio
Não é mais
Que palavra

Que palavra?
Que silêncio?»

Jorge Fazenda Lourenço, in “Cutucando a Musa com verso longo e curto e outras coisas leves e pesadas”, Relógio d’Água, 2009

REESCRITA

Fender os versos
com a lâmina implacável do
tempo. No umbigo do poema cravar
o sabre rente às vísceras dos verbos,
à linfa de adjectivos. Despedaçar
os músculos dos sentidos. Abrir
a rede viária do sangue. Romper
a velha epiderme. »
Inês Lourenço, in “ Coisas que Nunca",Etc & etc, 2010


«SOB A URSA MAIOR

O rumor dum motor na água
negra a água velha do verão as aves
criam fios um fio que
me guia no regresso
ao conteúdo do espelho em que
se espelha este, laminado ao de leve
pelo quarto minguante da terceira semana
de agosto e no som do silêncio, feito
de enigmas ínfimos, o tempo mede
timbres mais sozinhos sucessões
variáveis sob a constelação
fixa, procuro repetir
o exercício reler o céu, agora
é mais difícil encontrar a distância
entre as estrelas que fecham o quadrado,
perdida
aprendizagem do céu que só na água
sobrevive quando água
significa ave »
Gastão Cruz, in “Os Poemas”, Assírio e Alvim, 2009

Viver na Beira-Mar

Nunca o mar foi tão ávido
quanto a minha boca. Era eu
quem o bebia. Quando o mar
no horizonte desaparecia e a areia férvida
não tinha fim sob as passadas,
e o caos se harmonizava enfim
com a ordem, eu
havia convulsamente
e tão serena bebido o mar.

Fiama Hasse Pais Brandão, in "Três Rostos - Ecos"


« (…) a cozinha é baixa, com outras janelas sobre o mar e o terreiro e, no vendaval que precede o calor, uma filha do país vem agitar as nossas recordações apresentando-se sempre para ficar. Ela própria é, por vezes, uma obra completa de beleza e, noutras, de febre. Nessas manhãs insiste connosco, sem nos deixar um instante de sossego, e ameaça ir dizer às populações vizinhas que a nossa língua não é verdadeira, que o português que falamos é uma impostura.»
 Maria Gabriela Llansol, in “Causa Amante”, A Regra do Jogo, 1984

1 comentário:

  1. Não existem somente prosa e poesia, há palavras, palavras tremendas, e a força telúrica e imaginária que delas brota, nos assalta, nos acompanha, nos projecta para outras aparições!

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