sábado, 18 de agosto de 2012

Eça de Queiroz,o artista da palavra

" Tem-se afirmado muitas vezes que a personagem central da obra de Eça de Queiroz - é o próprio Eça de Queiroz.
E é, com efeito, o homem dominado pelo seu destino irresistível de artista da palavra; o homem apaixonado pelo espectáculo da vida, com tudo o que ela comporta de criação humana; o homem profundamente mergulhado na realidade do seu tempo - múltipla e complexa realidade que abrange desde esse cenário castiço de novela camiliana, o  meio século XIX na província portuguesa, até ao tumultuoso palco do mundo em crise que é o  Paris cosmopolita e mundano dos alvores do século XX.
O eu do escritor e a sua circunstância, estreitamente fundidos mesmo quando parecem opor-se ou desmentir-se, formam a substância cálida e viva da obra.
Não é possível, nunca é possível, mas muito menos no caso de Eça Queiroz, desligar o eu criador desse meio, desse tempo - dessa circunstância que o modelou e que foi simultaneamente modelada por ele, reassumida e reelaborada por ele através da alquimia da criação artística. A intemporalidade da obra de arte superior, tantas vezes afirmada, realiza-se , neste caso, justamente a partir de uma matéria que é fortemente temporal, marcada pela mentalidade de uma época bem caracterizada. 
O eu e a circunstância de Eça Queiroz, assim confundidos, erguem-se diante do leitor à medida que le progride no conhecimento da obra.
De maneira que a seca enumeração dos dados biográficos é quase inútil para quem, das páginas da obra, viu surgir inteiro e natural o vulto sedutor  de " verve", de elegância e de fragilidade humana, de generosidade tolerante e de irreverente e luminosa ironia...
A biografia de Eça de Queiroz está, aliás minuciosa e exaustivamente estudada. Mas a melhor forma de conhecer o homem e o artista - nele tão intimamente reunidos - continua a ser a leitura das suas páginas, romances e contos, crónica de actualidade sua contemporânea e reconstituição artística de épocas passadas." Ester de Lemos, in " Páginas de Eça de Queiroz", Editorial Verbo
A obra de Eça é longa  e diversa . Sabe-se que reflecte  o seu tempo e a sua personalidade. No tempo em que esteve em Coimbra, onde estudou Direito, ficaram as crónicas publicadas na Gazeta de Coimbra (de 1886 a 1887) que foram, posteriormente, reunidas num volume com o título escolhido pelo próprio Eça de Queiroz de "Prosas Bárbaras". Dessa obra  transcreve-se  uma crónica. 

A Península
"Ainda ontem eu pensava que nós outros os peninsulares nem sempre tínhamos sido uma nação estreita, de pequenas tendências, sonolenta, chata, fria, burguesa, cheia de espantos e servilidades: e que este velho canto da Terra, cheio de árvores e de sol, tinha sido pátria forte, sã, viva, fecunda, formosa, aventureira, épica!
Ah!, foi há muito tempo.
Era naqueles tempos em que a Itália rodeava os papas severos; e olhavam para o céu as Virgens do Dominiquino. Por esse tempo ia pela Europa uma transformação social. Na Alemanha, Lutero entrava em Worms, com um canto batalhador, em nome do espírito, da alma. O papado ia morrer. Era necessário que todo o Sul se aliasse na cruzada católica.
Toda a revolta de Lutero foi tomada ao principio por um daqueles lentos suspiros alemães, que se perdiam no coro profano, luminoso, embalador e forte do Sul.
Viu-se depois que era a voz imensa da alma do Norte, toda uma humanidade austera e vital, que se movia, que vinha falar, pensar, examinar, revelar, sob o peso das teocracias romanas, dos papados, dos imperadores, das tiranias, dos sacerdócios.
Todo o Sul católico estremeceu; aquela revolta vinha imprevista e rápida; um dia a imperceptível e vasta humanidade, quando fosse uma madrugada para as suas adorações, podia encontrar a velha Roma deserta, e ao longe o catolicismo dissipando-se com um som hierático de salmos e um colorido vermelho de fogueiras.
Era necessário salvar o Sul.
A Itália tinha-se familiarizado com o cristianismo; tinha-se acostumado às santas macerações de Jesus, à transparência ascética das Virgens; os renunciamentos e os medos católicos já a não vergavam para o pó. Ela, cheia de sol e de sons e de forças, começava a olhar a Natureza, as grandes fecundidades. as vitalidades poderosas, as melodias moventes da carne.
Os velhos deuses da Grécia tinham-se refugiado na alma italiana; ao princípio andavam no fundo, como recordação leve, transfigurados pela dor, encolhidos, soluçantes, miseráveis: depois lentamente foram aparecendo, espalhou-se um cheiro de ambrósia e um som de idílio; e os seus corpos são como astros, ocuparam por fim toda a alma italiana com coreias, derramações de néctares, palpitações de luz, divinos resplandecimentos de vida.
A Itália tinha-se afastado de Dante e das visões devoradoras do infinito; e os poucos que se curvavam sobre a Divina Comédia, não era para ver os castigos e os paraísos, mas para sentir as palpitações, que lá tinham ficado, da alma de Florença.
A Itália seguia Petrarca: mas em Petrarca havia ainda uma religião e um misticismo – o amor: e a Laura dos Sonetos, como a Virgem mística, prendia nas humilhações religiosas todos os cavaleiros do Sul. A Itália então deixou Petrarca e rodeou Ariosto, o aventureiro, o jovial, o descrente, cavaleiro e escarnecedor.
Foi então que se ouviu aquela voz do Norte.
Todas as cortes católicas andavam dispersas, galhofeiras e namoradas, rindo com o Aretino, escarnecendo brutalmente com o poeta Pulei, guiadas por Lorenzo de Médicis e pelo cardeal Bembo, cantando às estrelas, adorando as Violantes, rindo de Fra Angelico, aclamando Ticiano, cobertas das sedas de Veneza, com o peito cheio da religião do Sol, da música e das noites profanas.
Foi então que se ouviu a voz do Norte, o canto de Lutero. Todos os católicos correram instintivamente, rodearam os papas severos, Adriano VI, Clemente VIII, cantaram os salmos e as missas de Marcelo, cheias dos renunciamentos ascéticos, e foram seguindo o Tasso, que voltava, apaixonado e religioso, para Dante e para Deus.
E o papado continuou caminhando, sereno e terrível, deixando as sombras das masmorras de Galileno e de Campanella, e mais longe o fumo das fogueiras de Vanini e de Giordano Bruno.
Tal era a luta do Norte e do Sul.
Ora durante essa luta das regiões e das pátrias, a Península, encolhida nas suas montanhas, cobertas de sol, violenta, sinistro cavaleiro de Deus, armava as caravelas e os galeões para as bandas desconhecidas das ilhas, dos continentes das Índias, dos cabos temerosos. Nós outros, os peninsulares, aparecíamos às outras nações como velhos lobos-do-mar, sempre em viagens, trigueiros, rijos como calabres, sãos como o Sol, ensurdecidos pelo clamor das marés, cheios de legendas e do cheiro das viagens, sobre os tombadilhos, e perdidos, ao longe, perdidos nas brumas terríveis.
De vez em quando desembarcava este povo, bradando que tinha descoberto um mundo, que lá tinham ficado infinitas multidões, negras, bestiais e nuas sob a bênção dos padres: ali mesmo sobre a areia, ao rumor das maresias, escrevia a história trágica da sua viagem, e uma madrugada, tomados das saudades do mar, partiam de novo, radiosos e bons, para a banda das Índias.
Era assim. Todos os anos, aquela multidão imensa de aventureiros embarcava nos galeões, entre os salmos e os coros, e eles iam silenciosos e flamejantes, por entre as sonoras ilimitações, os ventos aflitos e os tremores da água – para os nevoeiros inexplorados.
Iam, em demanda de mundos, levando Deus dentro do peito, sob as constelações augustas, entre as tempestades, os rochedos e as correntes, de pé nos tombadilhos, descobertos às temperaturas, rodeando um Cristo, cantando os salmos ao coro dos furacões, todos reluzentes de armaduras e de divisas de amor, com a alma cheia de altivezas de batalhadores e de doçuras de apóstolos.
Iam como numa glória e em nome de Deus! E quando encontravam as hostilidades e os encrespamentos irados do elemento, as opressões infinitas dos ventos e das águas. erguiam as mãos como para uma excomunhão, e bradavam soberbos àqueles sopros e àquelas maresias os versículos do Evangelho Segundo S. João.
Era assim. Ora aqueles homens marinheiros e batalhadores eram historiadores e poetas. Escreviam os seus feitos.
Escreviam-nos entre os assaltos e as tempestades, no convés das caravelas, nos cabos tormentosos, nas florestas sagradas da Índia sob as imobilidades cruas da luz: escreviam cobertos das espumas, enegrecidos pelos fumos, trémulos das iras das batalhas. Por isso enchiam as suas crónicas e os seus poemas de uma estranha prodigalidade de força e de vida. E os seus diários de bordo tinham muitas vezes a simplicidade épica de Homero.
Mas eles também tinham amores, ciúmes, paternidades, paixões, lirismos interiores, e as saudades da pátria nasciam naquelas almas como grandes açucenas que se abrem dentro de um vaso e que o enchem.
De noite, nos tombadilhos, embrulhados nos seus mantos esburacados, deitados entre as cordagens, aos embalos das marés, enquanto os pilotos silenciosos seguem com os olhos as viagens imensas das estrelas, e todo o mar enorme se amolece como um seio cansado, eles contavam em voz baixa, com as cabeças juntas, as histórias de amores, os torneios, as aventuras, as serenatas e a vida da pátria.
No meio daquela vida trágica da aventura eles tinham a alma cheia de amores, de legendas, de saudades, cheia da pátria.
E escreviam poemas, cantatas, sonetos, farsas, comédias e elegias.
E para vestirem o sentimento fecundo, forte, cheio do Sol e do mar tomavam a. forma popular.
Estavam longe da Europa, das plásticas da Itália, dos renascimentos gregos e romanos, das antigas formas rituais, das educações clássicas.
Não conheciam isto.
Mas lembravam-se sempre das cantigas da pátria, das endechas heróicas, dos romances populares, que eles tinham ouvido pelos campos, com que os velhos embalavam, que se cantam de noite às estrelas por Sevilha e por Granada e que os mendigos diziam pelas velhas pontes dos Godos e dos Árabes. Porque o povo na Península tinha uma poesia, sua exclusivamente, que cantava nos trabalhos, com que adormecia os filhos, em que escarnecia os alcaides e celebrava os heróis.
Fazia daquela poesia um uso sagrado: era a sua consolação, o grande leito misterioso onde adormecia as tristezas: era ali que procurava confortos, recompensas e as ideias da pátria.
No Norte, a poesia popular foi a Invisível que levou pela mão os trovadores, filhos das glebas, até às lareiras dos senhores feudais: foi o primeiro suspiro de amor que os pobres poetas da populaça. místicos e sensuais, soltavam para as brancas castelãs que entreviam nos torneios, cobertas de pedrarias: ou passando de noite, brancas, às estrelas, pelos altos terraços; ou entre as árvores, ao entardecer, quando as ogivas cheias do sol oblíquo estão flamejantes como mitras.
E as castelãs abriam os braços para os poetas tristes, indolentes e cheios do Paraíso. Admirável influência da poesia, que produziu pelo amor um renascimento social!
Mas a poesia da Península era unicamente do povo: era a epopeia austera do Cid, exterminador de mouros, e de Bernardo dei Carpio, exterminador de bárbaros. Na Península o povo estava sob uma condição especial; tinha uma importância no estado forte, fecunda e soberba: a Península tinha passado os primeiros anos da sua constituição nas lutas terríveis do forte Maomet e do Cristo místico; ora o popular da Península não era um servo, era um cristão: consagrado pelos baptismos, era uma força individual, que impelia e dissolvia o elemento mourisco, sensual e poderoso.
Ora, foi sob a forma popular que aqueles batalhadores e poetas, que vão hoje tomando a vaga atitude da legenda, escreveram os seus poemas, as suas cantatas, as suas comédias e os seus sonetos.
Então toda a literatura peninsular tem uma originalidade profunda, independente de formas e ritos: a arte, o drama, a poesia saem das tradições populares, do clima, do Sol, de todas as vitalidades meridionais; isto quando pelo resto da Europa todas as nacionalidades esqueciam as suas tradições, a sua história, a sua velha alma, para se envolverem nas formas antigas. Era a Renascença. Então aparece o teatro espanhol original, cavalheiresco, enérgico, apaixonado, cheio de selvagens palpitações, de lances de religião: onde a cruz é uma personagem; onde falam lacaios, heróis, santos, ventos, galeões: todas as formas da vida confundidas; o riso, o choro, a ironia, a sátira, o madrigal: tal é a impressão geral.
Depois uma pintura mística e sensual: não é a espiritualização da alma, é antes a imortalização da carne: inspirada daquele misticismo espanhol, que sob a influência da Natureza, do clima, da política, da raça, parece mais cheio das trágicas iras de Jeová do que das doçuras de Jesus.
Depois uma música, como a do Dies Irae, obra dos terríveis dominicanos: um poema de morte; uma das maiores agonias da alma: música ascética e flamejante, onde a Natureza aparece, trágica e desgrenhada figura.
Uma arte onde se torcem todas as chamas do Inferno e todas as pedrarias dos paraísos católicos, que parece uma luta trágica e cómica da vida e da morte: uma Igreja. cheia de renunciamentos místicos, mas onde o misticismo parece mais um desespero de não poder saciar-se dos bens do mundo do que uma aspiração a poder fartar a alma nas contemplações diversas: uma defesa do catolicismo trágica e apaixonada: um amor sublime pelos despotismos e pelos sacerdócios: confusão dos imperadores com os santos e das coroas de metal com as coroas de luz: uma vida super abundante: ascetismos ferozes e onde o sentimento mais aparente e o rancor.
Ao mesmo tempo uma austeridade monástica em tempo de guerra: caravelas que partem, sem rumo, sob as indicações das estrelas: quase, por vezes, uma reconciliação aparente do maometanismo e do cristianismo: uma paixão avara pelo dinheiro; o elemento da intriga que quer entrar na política, vindo substituir o elemento da força: combates cavalheirescos com a Europa vizinha: depois um sol ardente: um sangue exigente: uma carnação soberba: ao longe a América e as Índias como um paraíso de ouro, de metais e de soberanias.
Tal é o aspecto mais geral da Espanha. nas vésperas da Renascença.
É dramática aquela vida.
Não admira por isso que a forma suprema da sua arte –fosse o drama.
Em Portugal não é este rigorosamente o fundo do génio: há mais serenidade na força: o carácter português é mais parecido com o carácter italiano: os nossos sábios, os nossos viajantes, os nossos descobridores tinham mais a lucidez do tempo de Dante: as navegações são prudentes: por isso Portugal não resistiu nada à influência italiana. O renascimento da Antiguidade. a serenidade plástica, a frieza clássica aclimatam-se na Espanha mas com dor e com luta: foi necessário que a Espanha já não acreditasse na sua epopeia cavalheiresca e que Cervantes começasse a fazer trotar pelos caminhos o magro D. Quixote.
Em Portugal não: o génio antigo aclimatou-se: transformou-se mesmo: perdeu o elemento vital e fecundo e ficou-lhe o elemento retórico.
Ó Arcádia! Ó moços pastoris e burgueses! Ó clássicos!." Eça de Queiroz, in " Prosas Bárbaras", Lello & Irmão- Editores, Porto

1 comentário:

  1. Eça de Queiroz, o escritor português mais divulgado e amado no Brasil, país aonde - afinal... - nunca pôde deslocar-se! E quantas amizades cultivou com brasileiros que passavam ou viviam em Paris!... Prado Coelho e outros, por exemplo.
    Ester de Lemos, merece ser recordada. Está esquecida! Quanto escreveu, especialmente para as crianças!... Igualmente, trabalhou em matéria de Literatura Comparada. Quem se lembra das revistas femininas do tempo da "Mocidade Portuguesa"?... Foi professora... e - por esses tempos... - o Regime Político não permitia que alguém se manisfestasse mais. De contrário, a perca do emprego, a prisão, ou o caminho do exílio.
    ... Embora, o "Post" se dedique a Eça de Queiroz, não posso esquecer a Ester como escritora, e mulher do nosso tempo.
    ... De Eça, ainda nos continuam a falar os muitos especialistas da sua obra como o Professor Guerrra e Cal, o João Gaspar Simões, o Engenheiro Campos Matos, o Professor Dr.Carlos Reis, e tantos outros, a quem prestamos a nossa homenagem.
    O Eça, actualíssimo?!... Claro, que está. Profeta?!... Não o creio! Nós, Portugal e os portugueses, é que demoramos uma eternidade a mudarmos, a mudar velhos hábitos, pensamentos obsoletos, hábitos e costumes cobertos de poeira. Nunca passamos do que fomos e somos.

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