quarta-feira, 25 de julho de 2012

Mãe


Mãe!
Vem ouvir a minha cabeça a contar histórias ricas que ainda não viajei.
Traze tinta encarnada para escrever estas coisas! Tinta cor de sangue, sangue! verdadeiro, encarnado!
Mãe! passa a tua mão pela minha cabeça!
Eu ainda não fiz viagens e a minha cabeça não se lembra senão de viagens!

Quando voltar é para subir os degraus da tua casa, um por um. Eu vou aprender de cor os degraus da nossa casa. Depois venho sentar-me a teu lado. Tu a coseres e eu a contar-te as minhas viagens, aquelas que eu viajei, tão parecidas com as que não viajei, escritas ambas com as mesmas palavras.

Mãe! ata as tuas mãos às minhas e dá um nó-cego muito apertado! Eu quero ser qualquer coisa da nossa casa. Como a mesa. Eu também quero ter um feitio, um feitio que sirva exactamente para a nossa casa, como a mesa.

Mãe! passa a tua mão pela minha cabeça!
Quando passas a tua mão pela minha cabeça é tudo tão verdade!

Almada Negreiros, in " A Invenção do Dia Claro", 1921, Ed. Assírio&Alvim

1 comentário:

  1. Almada Negreiros e o Orfeu...
    ...Nós nem queríamos acreditar, Almada, quando entraste naquela luta dantesca com o Dantas, garrettiano até à medula, começando logo nos ademanes e nos punhos de renda do Dr. Júlio... - "Dantas, pum!... Dantas, pim!...", não queríamos acreditar que uma época acabara.
    Acabara definitivamente e nós nem déramos por tal, embevecidos estávamos com a mudança de regime político. Tinham findado oito séculos de Monarquia! (Já o Brasil por esses largos tempos vivia a sua República...) E nós - incipientes... - louvávamos a nossa República recém-nascida... Não queríamos crer, Almada, e tu vieste abrir-nos os olhos!... Inventaste os nosso dias claros e passaste algo das tuas ideias para as nossas cabeças, de modo que com toda a nossa escassa sabedoria pudéssemos servir exactamente como peça útil para a nossa casa, para o nosso país, e fosse a partir de então, "tudo tão verdade!"... Despedímo-nos de ti no inesquecível programa "Zip-Zip" dos saudosos Raul Solnado e Fialho Gouveia, e do Carlos Cruz e do José Nuno Martins... Inolvidáveis tempos!... Até novo dia claro, Almada!...

    ResponderEliminar