terça-feira, 26 de junho de 2012

Só a ti canto


Soneto


Amor desta tarde que arrefeceu
as mãos e os olhos que te dei;
amor exacto, vivo, desenhado
a fogo, onde eu próprio me queimei;

amor que me destrói e destruiu
a fria arquitectura desta tarde
- só a ti canto, que nem eu já sei
outra forma de ser e de encontrar-me.

Só a ti canto, que não há razão
para que o frio que me queima os olhos
me trespasse e me suba ao coração;

só a ti canto, que não há desastre
donde não possa ainda erguer-me
para encontrar de novo a tua face.

Eugénio de Andrade, in "Antologia (1940-1961)", Ed. Delfos

Flor da Liberdade

Sombra dos  mortos, maldição dos vivos.
Também nós…Também nós…E o sol recua.
Apenas o teu rosto continua
A sorrir como dantes,
Liberdade!
Liberdade do homem sobre a terra
Ou debaixo da terra.
Liberdade!
O não inconformado que se diz
A Deus, à tirania, à eternidade.

Sepultos insepultos,
Vivos amortalhados,
Passados e presentes cidadãos:
Temos nas nossas mãos
O terrível poder de recusar!
E é essa flor que nunca desespera
No jardim da perpétua primavera.
Miguel Torga, in “Orpheu Rebelde “, 1958, Poesia completa, Círculo de Leitores


A Escrita

a escrita é a minha primeira morada de silêncio
a segunda irrompe do corpo movendo-se por trás das palavras
extensas praias vazias onde o mar nunca chegou
deserto onde os dedos murmuram o último crime
escrever-te continuamente... areia e mais areia
construindo no sangue altíssimas paredes de nada

esta paixão pelos objectos que guardaste
esta pele-memória exalando não sei que desastre
a língua de limos

espalhávamos sementes de cicuta pelo nevoeiro dos sonhos
as manhãs chegavam como um gemido estelar
e eu perseguia teu rasto de esperma à beira-mar

outros corpos de salsugem atravessam o silêncio
desta morada erguida na precária saliva do crepúsculo
Al Berto, in “O  Medo“ (Prémio Pen Clube), Editor Contexto, 1987

2 comentários:

  1. Com Eugénio de Andrade, Miguel Torga e Al Berto, um bom momento de poesia...
    Juntemo-nos a eles, com eles elevemos o nosso canto...
    ...Nascemos nas manhãs orvalhadas / por elas também o nosso canto na humidade do que não possuíamos / e santa seria a oralidade se impávidos / com as mãos em concha molhadas / não violássemos os sepulcros audíveis em todas as partituras / não fosse a música a absolvição de pecados incríveis / e os sons rompendo rasgando escrituras / e mesmo assim subíamos bebendo cantando / sob o olhar de loucura que escorria pelos degraus do trono de um deus / em busca daquela doçura que sobrou / dos sonhos de vidro que nos podem galgar o sono / desse vidro que foi outrora lúcido e transparente e límpido / e já aqui não mora já aqui nos mente / e não nos serve pois já de chorar todo um oceano se entornou...

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  2. Não o sabia assim tão poeta, senhor V. P.!...

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