terça-feira, 5 de junho de 2012

Portugal, um país a contas nunca certas com o tempo

                                              Para Eduardo Lourenço
                                             " Uma escrita que flui em subtil transparência
                                              como se fora um sopro do silêncio
                                              Um tremor que resplandece em limites obscuros,
                                              cercando o mistério e a vertigem do fogo.
                                                                         Ramos Rosa


O excesso de passado não nos garante nada

“Em nome do passado, Portugal há muito se outorgou uma percepção mundialista da história e integrou esse dado na sua particular imagem de povo de vocação universalista. Não está errado, e, mesmo que estivesse, esta mitologia do nosso providencial universalismo cria uma exigência que sem ela reduziria a nossa cultura à mera irradiação empírica de povo não hegemónico numa Europa também já não hegemónica. Graças a essa mitologia, sentimo-nos menos desarmados nesta batalha visível e invisível de que as identidades e as culturas particulares – mesmo as de maior espessura no passado – são o verdadeiro objecto, o que está em causa. Mas este excesso de passado, vendo bem, não nos garante nada. Pode ser mesmo, no seu papel reconfortante, um paradoxal inimigo de nós mesmos… (...)É detrás dessa muralha da China do que fomos, ou antes de um passado voluntário e nada inocentemente mitificado, que nos encerrámos para que um futuro onde nos não vemos como nos sonhámos se esqueça de nós e nos deixe à glosa interminável da nossa felicidade onírica.
Na ordem quotidiana, Portugal e os Portugueses adaptam-se às chamadas necessidades do real com um pragmatismo que espanta numa cultura tão lírica. Na ordem do imaginário, esse famoso lirismo … não desmente esse pragmatismo. Mas os seus efeitos são inversos, porque o seu escopo não é o de transfigurar ou superar os obstáculos, mas de os evaporar. Vamos para o século XXI em carruagem-cama, indiferentes às tragédias do mundo e às nossas próprias. Os problemas caem-nos em casa já resolvidos. É o mundo que tem problemas, não nós. Os portugueses que não pensam assim não são bons portugueses. Nunca o foram….No tempo de Salazar imaginou-se que essa maneira nossa de não estar no presente e diferir simbolicamente o futuro era um vezo de uma ideologia assumidamente conservadora. Não era. Apenas uma expressão coerente dela. Vinte anos após o fim de tão longo reino, agora vivendo e vivendo-se com normalidade democrática num tempo europeu e no mais vasto de uma cultura planetária do estilo americano, Portugal e o tempo português não mudaram de configuração. (…)
A que se deve tão extraordinária capacidade de estar fora do tempo como presente … ? Reflexo de velho povo e velha cultura, conscientes de que o seu embate sério com uma sociedade tão incontrolável como a que a cada segundo atravessa os ecrãs planetários nos destruiria? Ou íntima convicção de que, mesmo ganha, a nossa aposta num futuro incontornável nunca nos trará de volta aquela imagem que veneramos sob as várias metamorfoses de um quinto império? (…) Reciclámos os restos imperiais que é o melhor que temos e único sinal de mútuo reconhecimento. (…) Enquanto o tempo da realidade se nos impõe e nos arrasta sem contemplações, o nosso tempo simbólico converte-o – e não só na ficção – em fantasmagoria virtual. (…) entraremos no século XXI. E com ele, queiramo-lo ou não, na história real, a nossa, de pequeno povo e sonhos compensatórios, para que não nos demos conta disso. Será o fim do tempo português e o começo do tempo de Portugal, um país como os outros a contas nunca certas com o tempo. Quer dizer, com a rugosa essência da realidade.” Eduardo Lourenço, in "Tempo português", em "A Nau de Ícaro seguido de Imagem e Miragem da Lusofonia", Lisboa, Gradiva, 1999

1 comentário:

  1. Em pleno século XXI navegamos em luta com o redemoinho, remando teimosamnte entre Cila e Caríbdis, em perigo constante, fugindo ou tentando fugir ao monstro fabuloso do déficit, que não engole os navios no estreito de Messina, mas nos esmaga a todos em austeridade absurda! Como diziam os latinos "dare nemo potest quod non habet neque plus quam habet", ninguém pode dar o que não tem´nem mais do que o que tem! Foi como lucidamente Eduardo Lourenço nos diz, esse excesso de passado que nos perdeu! Esse excesso de passado glorioso, a coberto do religioso e da esperança do milagre esperado, esse excesso de desvario depois da gesta de Quinhentos, da longa permannência da Santa Inquisição, que nos fez ficarmos "sentados" embevecidos e ilariantes, só tradiamente nos acordando os ideais da Revolução Francesa, e depois correndo atrás do "comboio" (para nós perdido...) da Revolução Industrial!... Isolados do mundo, vivemos 50 anos em pleno século XX, ainda sorvidos nesse excesso de passado que teima em não nos largar, sem sabermos construir qualquer futuro. Até hoje!

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