segunda-feira, 11 de junho de 2012

Podia não haver amanhã



"O nosso primeiro beijo foi na estação, num dia de Inverno, era como se estivéssemos dentro de um filme antigo. Nesse mesmo dia arranjaste um quarto perto dali, um daqueles quartos sinistros para onde os homens levam as prostitutas, e eu repetia para dentro que não estava a fazer nada de mal, nada de mal, não recebia dinheiro como as outras, nada de mal. Então a tua carne entrou na minha carne. E foi tudo sem palavras, sem promessas, tudo feito apenas de silêncios, beijos mínimos, o coração cego. Tudo demasiado presente, de tão sem futuro. Atravessavas a minha noite de sombras fundas como se regressasses a casa, a paisagem vazia do meu desejo, o meu corpo de árvores de braços cortados. E, apesar das coisas serem assim, sem cores, muito de passagem, nunca tinha sido feliz daquela maneira. Tudo demasiado presente, de tão sem futuro. Ao longo de um ano, ou quase, vivemos para aquele quarto, pelo menos eu, ou antes, vivemos aquele quarto, vivi aquele quarto, não sei se era amor aquilo, não sei se foi. Quando dava para inventar uma hora, subíamos a escada, fechávamos a porta, misturávamos os nossos cheiros, as nossas não-vozes, acontecíamos iguais a vultos num espelho, separávamo-nos, "até quando", tínhamos combinado nunca dizer até amanhã. Pois podia não haver amanhã. Tudo demasiado presente, de tão sem futuro."

Jacinto Lucas Pires, in “Para Averiguar do Seu Grau de Pureza”, Ed. Cotovia


Sobre o Livro:
“Jacinto Lucas Pires entrou, com este livro, pela porta grande. Para consegui-lo, pôs-nos diante de treze ‘janelas’. Quem ler saberá. Elas dão para um mundo belo e intranquilo.”Fernando Venâncio, JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias
"A qualidade é precisamente essa, a de escrever como quem pinta ou transcreve para uma pauta o que ouve assobiar na rua. O resultado, pretensiosismo à parte, é excepcional." Expresso

Jacinto Lucas Pires (1974) estudou Direito na Universidade Católica de Lisboa e Cinema na New York Film Academy. Publicou o seu primeiro livro em 1996 e trabalha como dramaturgo e cineasta. A sua obra encontra-se publicada em português pelos Livros Cotovia e também em espanhol, croata e tailandês. Várias peças suas estão traduzidas em francês, espanhol, inglês e norueguês. Em Portugal, os seus textos foram encenados por Manuel Wiborg, Ricardo Pais, Marcos Barbosa e João Brites. Alguns dos seus contos foram incluídos em colectâneas na Alemanha, em França, em Itália, na Bulgária, no Brasil e em Espanha. Tem contos em várias antologias portuguesas. Escreveu e realizou duas curtas-metragens: Cinemaamor (1999) – prémio cine-clube no Festival de Cinema Luso-Brasileiro de Santa Maria da Feira – e B.D. (2004).Editou vários livros e, entre eles, estão: "Para Averiguar do seu Grau de Pureza", 1996 (contos); "Universos e Frigoríficos", 1997 (teatro); "Azul-Turquesa", 1998 (ficção); "2 Filmes e Algo de Algodão", 1999 (ficção); "Arranha-Céus", 1999 (teatro); "Abre para cá", 2000 (livro de contos), "Do Sol", 2004 (romance) .

1 comentário:

  1. Um escritor de mérito que tem feito o seu percurso a pulso, Jacinto Lucas Pires! O seu pai, Francisco Lucas Pires, não o desejava escritor, mas... não são os pais a definir o futuro dos filhos. Com ele, com o Jacinto, surgiu no seu devido tempo, um valor na Literatura de Língua Portuguesa!...

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