sexta-feira, 8 de junho de 2012

Os caminhos da Bioética


BIOÉTICA: ORIGENS E COMPLEXIDADE  por   José Roberto Goldim
A Bioética surge no século 20 como uma proposta de integração do ser humano à natureza.
A crescente complexidade das intervenções científicas, especialmente na área da saúde, provocou uma reflexão sobre essas questões. A Bioética, que antes era uma resposta a problemas, amplia a sua abrangência ao reflectir proactivamente sobre novas situações, utilizando um amplo referencial teórico para dar suporte às suas discussões.
A BIOÉTICA E A ÉTICA
Actualmente, a ética passou a fazer parte do discurso da população, dos meios de comunicação, de profissionais de várias áreas, com o seu significado nem sempre utilizado de forma correcta. Talvez devido ao pouco conhecimento formal que a maioria das pessoas tem da ética, muitas não sabem propriamente o que é a ética, qual a sua finalidade e como ela actua. Muitas vezes, a palavra ética é utilizada também como adjectivo, com a finalidade de qualificar uma pessoa ou uma instituição como sendo boa, adequada ou correcta. Esse uso pode ter sido influenciado pela definição de ética proposta por George Edward Moore, de que ela é “a investigação geral sobre aquilo que é bom” (8). O ideal é sempre utilizá-la na forma adverbial, ou seja, ela própria merecendo ser qualificada – eticamente adequada ou eticamente inadequada –, mas não pressupondo que a ética, no seu sentido substantivo, sempre se associe ao bom, ao adequado e ao correcto. Ricardo Timm de Souza afirmou que a maior revolução epistemológica do pensamento ocidental foi a proposta por Emanuel Lévinas, ao postular que a ética fosse considerada como filosofia primeira, invertendo a subordinação tradicional à lógica e à ontologia (9). Três autores contemporâneos podem auxiliar na compreensão adequada dessas questões fundamentais. Adolfo Sanches Vasques caracterizou a ética como sendo a busca de justificativas para verificar a adequação ou não das acções humanas (10). Joaquim Clotet afirmou que a “ética tem por objectivo facilitar a realização das pessoas. Que o ser humano chegue a realizar-se a si mesmo como tal, isto é, como pessoa” (11). Complementando, Robert Veatch dá uma boa definição operacional de ética ao propor que ela é “a realização de uma reflexão disciplinada das intuições morais e das escolhas morais que as pessoas fazem” (12).
A BIOÉTICA E A HUMILDADE
A humildade é uma virtude, ou seja, um traço adequado do carácter de uma pessoa (13). Potter definiu humildade como sendo a consequência apropriada que segue a afirmação “posso estar errado” e exige responsabilidade de aprender com as experiências e conhecimentos disponíveis (14). Durante um longo período da história da humanidade, pensou-se que seria possível conhecer a totalidade das informações sobre um determinado tema. Ao atingir esse nível de conhecimento, seria possível conhecer todo o seu passado e também o seu futuro. A essa possibilidade, foi dado o nome de “demónio de Laplace”, pois quem detivesse todo esse conhecimento tudo poderia prever. Werner Heisemberg, na década de 1930, formulou o princípio da incerteza, demonstrando a impossibilidade de conhecer simultaneamente a posição e a velocidade de uma partícula. Essa impossibilidade de poder conhecer tudo provocou, em consequência, o “exorcismo do demónio de Laplace” (15).Actualmente, é aceite que o tempo é uma variável fundamental em todo e qualquer processo. Ele provoca mudanças, e mais do que isso: associando-o à indeterminação, os processos não só mudam como podem mudar a sua própria maneira de mudar. A inclusão das noções de indeterminação e de mudanças provocadas pelo tempo alterou definitivamente as discussões científicas. Contudo, não houve a esperada contrapartida de humildade de grande parte dos cientistas e de outros profissionais envolvidos com a geração e aplicação do conhecimento. Hans Jonas, já em 1968, disse que “a humildade seria necessária como um antídoto para a ruidosa arrogância tecnológica actual” (16).
Na Bioética, a humildade é uma característica fundamental. Ao assumir que a incerteza e a mudança são componentes sempre presentes, assume-se, igualmente, que os resultados das reflexões são sempre passíveis de discussão. A humildade permite reconhecer que não são definitivos nem imutáveis.
A BIOÉTICA E A RESPONSABILIDADE
Os conhecimentos e discussões gerados pela Bioética e pela ecologia contribuíram para ampliar a noção de responsabilidade. Durante muito tempo, ela era associada apenas aos deveres existentes entre seres humanos contemporâneos e geograficamente próximos. Peter Singer desencadeou, no início da década de 1970, um grande debate sobre os direitos dos animais.Fritz Jahr, em 1927, já havia proposto, segundo suas próprias palavras, um imperativo bioético: “Respeita, em princípio, cada ser vivo como uma finalidade em si e trata-o como tal, na medida do possível” (1). O próprio título de seu artigo propunha uma visão da Bioética como sendo um “panorama sobre as relações éticas dos seres humanos para com os animais e as plantas”. A inclusão das plantas na discussão bioética é ainda altamente inovadora, mesmo nos dias actuais.
Em 1948, Aldo Leopold, em seu texto sobre ética da terra, fez outra ampliação dessa discussão, quando postulou o direito das gerações futuras a receberem um ambiente preservado (6). Nessa mesma tradição, Hans Jonas, em 1968, propôs um outro imperativo, com a finalidade de prevenir possíveis consequências das acções humanas: “Nas tuas opções presentes, inclui a futura integridade do ser humano entre os objectos da tua vontade” (16). A expansão dessa discussão sobre direitos e deveres com a inclusão de todos os seres vivos, tanto contemporâneos quanto ainda não existentes, amplia a responsabilidade e a perspectiva actual da Bioética, como já haviam antecipado Fritz Jahr e Van Rensselaer Potter. A ecologia profunda, de Arne Ness, que serviu de base para a terceira definição de Bioética de Potter, já havia rompido com a perspectiva usual da relação dos seres humanos com a natureza, no sentido de domínio sobre a mesma – em que o ambiente natural era visto apenas como um recurso para ser desfrutado, considerando os demais seres vivos como inferiores – e de centrar essas discussões políticas apenas no âmbito nacional. A sua proposta visava gerar uma relação harmoniosa com a natureza, reconhecendo-a como tendo valor intrínseco e buscando o reconhecimento da igualdade entre as diferentes espécies, e esta perspectiva deveria ser discutida na abrangência de biorregiões, além de reconhecer as tradições das minorias (7). ambiente natural passou a ser uma tarefa difícil e até mesmo ultrapassada. A diferenciação entre objectos artificiais e objectos naturais, que pode parecer imediata e sem ambiguidade, na realidade não o é. Essas diferenças não são nem imediatas nem estritamente objectivas (17), tamanho o grau da intervenção humana e das inter-relações existentes. A preservação apenas de ambientes naturais intocados por si só os tornaria artificiais, pois, ao protegê-los, estariam sendo impostas barreiras artificiais de acesso e utilização. As reservas e parques naturais são exemplos dessa ambiguidade entre o natural e o artificial, entre o natural e o naturalizado (Lenoir).Na área da saúde, essa questão também está cada vez mais presente. Distinguir os processos de acção naturais do organismo humano dos provocados por intervenções externas a ele pode ser difícil e, em determinadas situações, impossível.
As intervenções, quando avaliadas de uma perspectiva ecológica, deixam de ter apenas uma conotação individual, passando a merecer uma discussão com as demais pessoas directa ou indirectamente envolvidas. A ética da razão comunicativa de Karl-Otto Apel deu uma importante contribuição nesse sentido. Ao levar em conta as consequências directas e indirectas das acções realizadas e por utilizar o discurso argumentativo exercido por todos os indivíduos para obter normas consensuais, torna-os co-responsáveis por todas as acções (18). Hans Jonas, ao propor a ética da responsabilidade, já havia dito que “nenhuma ética anterior tinha de levar em consideração a condição global da vida humana e o futuro distante ou até mesmo a existência da espécie. Com a consciência da extrema vulnerabilidade da natureza à intervenção tecnológica do homem, surge a ecologia” (19) – ecologia que veio trazer uma nova e complexa visão da inserção dos seres humanos no conjunto da natureza.
A BIOÉTICA E A COMPETÊNCIA INTERDISCIPLINAR
A competência interdisciplinar é, das características citadas na definição de Potter, a que mais apresenta confusão e ambiguidade. Várias palavras são utilizadas de forma confusa, como se fossem sinónimos, e à própria palavra interdisciplinaridade têm sido atribuídos diferentes significados. A interdisciplinaridade, segundo Valdemarina B. de Azevedo e Souza, só ocorre quando existe interacção de pessoas; ela necessita da troca de saberes e opiniões.
As condições necessárias para que a interdisciplinaridade ocorra são as seguintes: a existência de uma linguagem comum; objectivos comuns; reconhecimento da necessidade de considerar diferenças existentes; domínio dos conteúdos específicos de cada um dos participantes; e elaboração de uma síntese complementar (20). Essa síntese complementar já era prevista na dialéctica de Heráclito como produto da oposição entre a tese e a antítese. A síntese é uma maneira nova e mais complexa de abordar uma mesma questão (21). Carlos Roberto Cirne-Lima comentou que a tese do pensamento pós-moderno é a de que “a razão, una e única, morreu, vivam as múltiplas razões com seus relativismos”. A pós-modernidade, ao negar a existência de princípios ou leis universais, pode gerar uma fragmentação das diferentes visões de mundo. Apesar dessas críticas, uma vantagem desse tipo de posicionamento é que ele gera, talvez, maior humildade e tolerância, por dar mais atenção aos demais envolvidos (21). Uma perspectiva mais contemporânea permite reconhecer que os pensamentos analítico e dialéctico não são excludentes. O pensamento analítico traz consigo maior clareza, mas tem o risco da fragmentação, da compartimentalização de saberes. O pensamento dialéctico, por outro lado, tem a vantagem de permitir a inclusão da totalidade dos elementos considerados, porém também pode gerar uma postura totalitária (21).A incorporação de conceitos da teoria geral de sistemas, como os de sistemas fechados e abertos, é fundamental para a adequada compreensão da interdisciplinaridade necessária à Bioética. Os sistemas fechados têm interacção apenas entre os seus próprios elementos. Os sistemas abertos, por sua vez, mantêm interacção também com elementos externos, trocando informações dentro e fora de seus limites (22)(…) reconhecimento da existência de relações não-lineares e da realimentação. Um efeito pode ser determinado por mais de uma causa, caracterizando uma relação convergente ou multicausal. Da mesma forma, uma única causa pode gerar mais de um efeito, recebendo a denominação de relação divergente. A possibilidade de que um efeito ou consequência altere a sua própria causa é a base da realimentação. Assim, a relação causa/ efeito pode ser invertida, gerando a possibilidade da ocorrência de um ciclo de acções que podem se estimular (realimentação positiva) ou se inibir (realimentação negativa).(…) As estruturas próximas ao equilíbrio são repetitivas e universais, sempre tendo a perspectiva de ir da ordem à desordem. As estruturas distantes do equilíbrio, ao contrário, são específicas e únicas, permitindo ir da desordem a uma nova ordem. Essas estruturas que geram novas ordens, novos equilíbrios, que se auto-organizam, são chamadas de estruturas dissipativas (15).
De acordo com o tetragrama de Edgar Morin (27), a passagem da ordem para o caos se dá pelo aumento do número de interacções. Por outro lado, quando um sistema está em estado caótico, pode surgir um evento ou processo organizador que gere uma nova ordem. O maior organizador é a informação (22). Esta nova ordem, por sua vez, propiciará novas interacções, que possibilitarão esta alternância de estados de ordem e caos, em grau crescente de complexidade. Morin denominou esta perspectiva entre ordem e desordem de dialógica, pois antes de se oporem de forma excludente, estes estados geram um ao outro sucessivamente. Caso não ocorra um evento organizador, o sistema se desintegra devido ao estado de caos em que se encontra (28). Mais recentemente, Onora O’Neall ressaltou ainda mais esta característica quando definiu que a “Bioética não é uma disciplina, nem mesmo uma nova disciplina; eu duvido se ela será mesmo uma disciplina. Ela se tornou um campo de encontro para numerosas disciplinas, discursos e organizações envolvidas com questões levantadas por questões éticas, legais e sociais trazidas pelos avanços da medicina, ciência e biotecnologia” (33).
Os problemas propostos para reflexão bioética ficam mais claros quando discutidos dentro de uma perspectiva interdisciplinar. Muitas das ferramentas apresentadas- convergência, divergência, realimentação positiva e negativa, homeostase, homeorrese, processos de tomada de decisão – podem facilitar a compreensãoe auxiliar na busca de possíveis soluções.
 A BIOÉTICA E A COMPETÊNCIA INTERCULTURAL
A competência intercultural poderia ter sido incluída na própria questão da interdisciplinaridade, pois é fruto do reconhecimento da humildade e da tolerância entre diferentes grupos e culturas. A Bioética tem que assumir esta perspectiva intercultural de compreensão da realidade para poder ser utilizada de forma consequente e abrangente. Um dos maiores estudiosos na questão intercultural é Geert Hofstede. Em seus estudos ele conseguiu caracterizar cinco pontos básicos que diferenciam ou igualam as culturas nacionais: a relação com a autoridade; a relação do próprio indivíduo com a sociedade;o conceito individual de masculinidade e feminilidade; as formas de lidar com conflitos e incertezas e a perspectiva de longo prazo (34). Um grande número de populações de diferentes países já foi avaliado através destas características obtendo-se resultados bastante inovadores. Em todos os países também existem peculiaridades culturais regionais que também devem ser consideradas. O importante é lembrar que não existe um só modo de encarar a realidade que seja considerado correcto. A pluralidade deve ser igualmente aqui considerada como fundamental, contudo, sem cair num relativismo onde tudo é considerado como válido, desde que respaldado por uma cultura local.
A BIOÉTICA E O SENSO DE HUMANIDADE
JB Schneewind descreveu que as interacções entre seres humanos migraram de um comportamento egoísta, onde o outro é utilizado por mim para atingir aos meus objectivos, para o altruísmo, quando um indivíduo se doa integralmente ao outro. No dizer de Augusto Comte, criador do termo, altruísmo é “viver para outrem”.Mas existe um estágio posterior onde não há nem o uso nem a doação, mas sim uma troca sincera entre os participantes, quando ocorre a solidariedade (35). André Comte-Sponville definiu “Bioética, como se diz hoje, não é uma parte da Biologia; é uma parte da ética, é uma parte de nossa responsabilidade simplesmente humana; deveres do ser humano para com outro ser humano, e de todos para com a humanidade” (36). Este senso de humanidade é inerente e fundamental à Bioética. Pensar Bioética é pensar de forma solidária, é assumir uma postura íntegra frente ao outro e, consequentemente, frente à sociedade e à natureza. Com base nestas colocações a respeito da definição de Potter para uma Bioética profunda, e retomando a definição inicial de Jahr, é possível afirmar que a Bioética é uma reflexão compartilhada, complexa e interdisciplinar sobre a adequação das acções que envolvem a vida e o viver.
José Roberto Goldim, in Revista HCPA, 2006

8. Moore GE. Princípios éticos. São Paulo: Abril Cultural; 1975.
9. Souza RT. Razões plurais. Porto Alegre: EDIPUCRS; 2004.
10. Vasques AS. Ética. 20a ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 2000.
11. Clotet J. Una introducción al tema de la ética. Psico. 1986;12(1):84-92.
12. Veatch RM. Medical ethics. 2nd ed. Boston: Jones & Bartlett; 2000.
13. Comte-Sponville A. Pequeno tratado das grandes virtudes. São Paulo: Martins Fontes; 1996.
14. Potter VR. Script do vídeo (42 minutos) elaborado e apresentado especialmente para o IV Congresso Mundial de Bioética (4-7 de novembro/1998) em Tóquio. Transcrição e tradução por Léo Pessini. O Mundo da Saúde. 1998;22(6):370-4.
15. Prigogine I, Stengers I. Order out of chaos. Toronto: Bantam; 1984.
16. Jonas H. Ética, medicina e técnica. Lisboa: Veja Passagens; 1994.
17. Monod J. O acaso e a necessidade. Petrópolis: Vozes; 1989.
18. Weber T. Ética e filosofia política: Hegel e o formalismo Kantiano. Porto Alegre: EDIPUCRS;
1999.
19. Jonas, H. Técnica e responsabilidade: reflexões sobre as novas tarefas da Ética. In: Jonas H. Ética, medicina e técnica. Lisboa: Vega Passagens; 1994. Pp. 27-62

1 comentário:

  1. Bioética e ética é sobretudo pensar no outro, no nosso semelhante, nos eventuais benefícios e prejuízos - concomitantemente ou não - que os avanços das Ciências possam causar. Um tema actual e a necessitar de maior divulgação e de mais amplo debate. Em termos genéricos é consensual muito de quanto afirma neste excerto José Roberto Goldim! Tema extenso para opinar neste espaço...

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