quinta-feira, 1 de março de 2012

Vergílio Ferreira, para sempre

«Uma língua é o lugar donde se vê o Mundo e em que
se traçam os limites do nosso pensar e sentir. Da minha
língua vê-se o mar. Da minha língua ouve-se o seu rumor,
como da de outros se ouvirá o da floresta ou o silêncio do
deserto. Por isso a voz do mar foi a da nossa inquietação.
»
Vergílio Ferreira


Vergílio  Ferreira, 1916 - 1996,  nasceu  em  Melo (Gouveia), no  dia  28  de Janeiro de 1916. Após oitenta anos ,  morre em  Lisboa a   1 de Março de 1996, ou seja , há 16 anos. Concluiu a Licenciatura em Filologia Clássica na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, em 1940. Foi  Professor de liceu, romancista , ensaísta, poeta. Ganhou vários prémios, entre os quais se destacam  o Prémio Camilo Castelo Branco (" Aparição" 1959), o Prémio da Casa da Imprensa ( " Alegria Breve", 1965), o Prémio Pen Clube ( " Para Sempre", 1984), o Prémio do Centro Português da Associação Internacional de Críticos Literários (1985, pelo conjunto da sua obra), dois Prémios de Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores ( " Até ao Fim ", 1988 e " Na tua Face", 1993), o Prémio Fémina (1990), o Prémio Europália (1991) e o Prémio Camões (1992).
Construiu uma grandiosa obra literária.O talento da sua escrita transformou-o num dos maiores escritores portugueses do século XX. Segundo o próprio Vergílio Ferreira  «um livro é um registo do nosso diálogo com o mundo». Esse longo e magistral  diálogo que tece com o mundo , quer ocorra de uma forma intimista, quer surja em tom provocatório, transporta sempre uma profunda reflexão sobre a condição humana. 
No dia em que  se entrega ao filósofo José Gil o galardão que detém o seu nome,  Prémio literário  Vergílio Ferreira,  dia em que se assinalam dezasseis anos  do seu desaparecimento, é o  tempo certo para voltar a   recordá-lo.  "Cartas a Sandra" de 1996 é uma obra  em registo epistolar, um romance de carácter  fortemente intimista que nos foi legado de forma inacabada. Paulo, também  personagem do romance  " Para Sempre", escreve a  Sandra, a mulher já morta,  e são essas cartas  que preenchem toda a obra. Eis um excerto da última carta: 

" Sandra.(...)Vou ver se ouço, não sei se serei capaz. Penso em ti mas tu não vens, como ouvir sem ti ao pé? É uma música de um prazer que não devia haver na sua dolência melancolia. Vem nela uma amargura terna do que passou, de um lugar incerto, talvez de uma tarde no jardim à beira-rio onde estivéssemos os dois em silêncio. Porque é curioso, raro me lembro do que tivéssemos dito alguma vez. E lembro-me é de te olhar e tu sorrires e não me dizeres nada. E sempre , quase sempre no tempo em que te conheci. Mesmo a tua morte que foi difícil, é muito raro lembrá-la. Também é raro pensar-te quando já envelhecias e eu atravessava a tua imagem até ao tempo do teu esplendor. Porque tu não nasceste para a velhice e a morte. Não franzas o teu rosto, deixa-me dizer. Até ao tempo da tua plenitude, que foi quando os deuses, como te disse, deram o seu trabalho por concluído e te entregaram à vida. A balada enche todo o espaço desta sala, ressoa ainda lá fora na noite. É uma balada de uma longa amargura sem razão, a mais difícil de suportar. E então fecho o aparelho. Mas logo sinto sobre mim a espessura de um silêncio que me aturde. E abro-o outra vez. Era bom que tu fosses mais compreensiva e te sentasses aqui um pouco ao meu lado. E eu prometeria não dizer nada, era só estares. Mas o espectáculo vai terminar. Ouço a balada de despedida nas guitarras como um dobre de sinos. Despedida de tudo, de  nada, é bom ouvir e ceder  um pouco ainda a uma certa dispersão de mim com esta música de um tempo antiquíssimo. E fecho definitivamente o aparelho, venho um pouco até à varanda. A aldeia adormece com a vigília das lâmpadas errantes pelas ruas, a montanha imobiliza-se no seu peso. Tento divisar os caminhos que a percorrem, imaginá-los para a excursão que um dia faríamos  até ao alto. Vejo o choupo ao lado do portão, agita-se  um pouco à aragem da noite. E de súbito, num curto-circuito da memória, lembro-me de quando aqui vieste comigo pela primeira vez. Era o fim do Verão, nós tínhamos ido à praia depois do casamento e eu prometera à Tia Joana estarmos com ela  alguns dias. Vai-nos perguntar se casámos pela Igreja e tu vais mentir-lhe, disseste. Não digas nada, disse eu, deixa o caso comigo. Rolámos no comboio, um em face do outro, tu olhavas os campos verdes com o ar sério e um pouco  distante que sempre te conheci. E eu olhava-te em silêncio, perturbado ainda de que te amava mas pouco depois recuperavas o teu mistério e impossível. E é onde agora te vejo, sempre, quando te penso. Podia pensar-te lembrar-te nos momentos de alguma desavença para que a tua fascinação recuasse para fora de ti. Ou quando simplesmente eu via em ti apenas , como dizer-te? a materialidade que te pertencia. Nunca lembro, estou cego para te ver assim. E o que flutua à minha volta é a tua irrealidade para te amar como nunca te amei." Vergílio Ferreira, in " Cartas a Sandra", Ed. Círculo de Leitores, Maio de 1997 

1 comentário:

  1. Sobre Vergílio Ferreira, em convívio, em diálogo, em termos pessoais, já aqui escrevemos um breve apontamento há meses atrás. Os momentos em que estivemos juntos, e pudemos conhecer e disfrutar da sua amizade, da sua personalidade, da sua maneira de ser, são já uma saudade confortante!... Hoje, 1 de Março, em que assinalamos mais um aniversário da sua morte, volvemos à sua obra. Para um escritor, todos os livros que escreveu são seus "filhos". No entanto, em conversa com V. F. tivemos a certa altura a noção de que "Para Sempre" constituia um filho mais querido, um testemunho especial. Era (foi) o começoda despedida com "As Cartas a Sandra" em paralelo. Ao pintor Júlio Resende anteriormente - soubemo-lo depois - tinha expressado o mesmo. E - confidencialmente - sabíamos por outro amoigo que a releitura de "Alegria Breve" trazia-lhe à memória a sua mãe, a gestação do seu ser, a vivência de um passado em que fora um filho com os pais ausentes por motivo da emigração. Quanto de autobiográfico a sua obra nos deu e continua a oferece?.... Por detrás daquela cara de poucos amigos, com que se apresenatva em qualquer lado, mesmo nas aulas do Liceu Camões, ou já em Évora ou em Faro, existia um coração cheio de ternura e compreensão pelo próximo. Pensar nos outros foi o seu lema. Emocionalmente só, procurando que raros se apercebessem disso. Até breve, Mestre Vergílio!...

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