quinta-feira, 15 de março de 2012

A transcendência é a única alternativa à extinção


"Heureux sont ceux qui peuvent habiter un monde qu’ils portent en eux-mêmes..."    Elsa Triolet, “La vie privée”, in "Le premier accroc coûte  deux cents francs"
Num tempo em que a Europa deixou de ser o ponto de convergência de uma singular ideia de pluralidade para passar a ser a ausência de qualquer  pluralidade singular, continuar a reflectir sobre esta fracassada realidade   impõe-se como  exigência permanente.
Assim, uma série de reflexões  tem sido publicada neste espaço com diversas e diferentes abordagens ao tema . No seguimento dessa prática transcreve-se o artigo de opinião de Anselmo Borges que traduz um diferente e  peculiar olhar sobre uma Europa em extinção.

Secularização e  destino da Europa
Por Anselmo Borges
"Aí está um tema fundamental. Mas, quando se reflecte, é necessário perceber que há vários sentidos de secularização.
1. O primeiro sentido - secularização vem do latim saeculum (mundo) - tem a ver com a autonomia das realidades terrestres. A Bíblia é essencialmente dessacralizadora da natureza, da história e da política, precisamente porque a criação ex nihilo por Deus, pessoal e transcendente, criando, não por necessidade, mas livremente e por amor, implica a autonomia das criaturas.
Este sentido de secularização é particularmente importante para a política, que deve estar separada da religião. O Estado deve ser laico e não confessional. Jesus tinha dito: "Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus." Mas também as ciências, a economia, a filosofia, a própria moral são autónomas, com as suas próprias leis, sem pedir legitimação à religião.
2. Há um segundo sentido de secularização. Tem a ver com aquele processo mediante o qual, concretamente na modernidade, se pretendeu realizar no mundo o Reino de Deus. A modernidade ainda era teológica, na medida em que queria, pela razão, pela ciência, pela técnica, pelo progresso ilimitado, trazer para a imanência, realizando-as, ideias religiosas da fé cristã: messias, salvação, consumação da história - o Além deveria realizar-se no aquém. Pense-se em Feuerbach, Marx, Condorcet, Bloch... O seu ateísmo era de algum modo "positivo", no sentido de que não negava Deus pura e simplesmente: o que queria era realizá-lo no mundo e na história intramundana.
3. Que sucedeu no nosso tempo? As grandes esperanças da modernidade ruíram. O "socialismo real" faliu, o progresso científico-técnico põe problemas graves, sobretudo por causa da ecologia, a razão já se não encontra divinizada, assiste-se ao fim das meta-narrativas - só há pequenas histórias, o pensamento é débil (il pensiero debole, de G. Vattimo). Assiste-se assim a uma crise geral de Deus, na medida em que a descrença parece normal - pelo menos na Europa, já não se sabe se Deus existe ou não, e reina a indiferença, numa sociedade que já é, em grande parte, pós-cristã."
Consequências: encontramo-nos cada vez mais inseguros e assiste-se ao aumento do consumo de drogas e antidepressivos. A perspectiva é cada vez mais pragmática - o que interessa é o aquém sem Além: a vida depois da morte já não parece sequer ser problema. Continua a festa do consumo, mas os europeus andam cada vez mais insatisfeitos. Não há filhos nem futuro. É a desorientação e a consumação do niilismo.
A actual situação é fruto do terceiro sentido de secularização: secularização da secularização, isto é, fim da secularização moderna e secularismo radical. Deste modo, a questão essencial é precisamente a crise dos valores e do sentido. Como viu o filósofo Georges Gusdorf, "Deus morreu, a História enlouqueceu, o Homem morreu: tudo fórmulas desesperadas que exprimem a tomada de consciência, e o ressentimento, da ausência de sentido". Não colocando sequer a questão de Deus enquanto questão, que é a questão do sentido último, a Humanidade europeia sucumbe ao imediatismo, a uma visão fragmentária do aqui e agora, sem horizonte de ultimidade. Aí está então a falta de força anímica, de projecto, de futuro. Thanatos toma conta da Europa.
Isto tem, evidentemente, repercussões também na economia e na democracia. Para quê poupar, por exemplo, e investir no futuro? Václav Havel, um dos europeus mais lúcidos do século XX, preveniu: "Pela primeira vez na História, assistimos ao desenvolvimento de uma civilização deliberadamente ateia. Deve alarmar-nos". "A transcendência é a única alternativa à extinção." E o agnóstico M. Gauchet disse: "O que ameaça a democracia, hoje, é o vazio, a futilidade, o esquecimento, a facilidade, o curto prazo, a superficialidade. As religiões, e o cristianismo em particular, têm o sentido do essencial, do trágico, do mistério da aventura humana, coisas que a democracia facilmente ignora. Elas podem ser decisivas para a democracia."
Anselmo Borges, Padre e Professor de Filosofia, in artigo de opinião publicado no DN de 14/01/2012

1 comentário:

  1. De acordo - nalguns pontos - com o teólogo e filósofo Anselmo Borges, o autor do texto, em fase de reflexão. A civilização pós-moderna a que assistimos afastou-se do religioso, secularizou-se, materializou-sede tal modo, que se Karl Marx voltasse muito o espantaria o rumo que as coisas e as vidas, e a civilização levou em pouco mais de 150 anos, e até muito menos, se pensarmos melhor. Uma mudança ou muitas mudanças que o deixariam inquieto, curiosíssimo, pronto a reflectir com outros dados nas mãos e uma outra visão antiapocalíptica que teria de criar, de formar. E aí levaria tempo... Assistimos, pois, neste temporal moderno à secularização da secularização, ao negativo vivido como positivo continuando negativo, ao fútil, ao rápido, ao comestível sem escolha, ao impensado, ao desperdício e à fome, ao descartável e ao uivar das necessidades mais primárias, ao abalo telúrico que é viver sem esperança, sem futuro, projectando tudo e com todos apenas no dia de agora, no momento em que nos apercebemos que ainda vivemos biologicamente. O mistério, o religioso, um deus, um inferno, a dor, o apetecível, o enigma, o transcendente, o imanente, mesmo que realizável, resta insconsciencializado, focado no absurdo, no material, no finaciamento, na moeda de suporte para algo desconhecido. Desfez-se-nos nos dedos das mãos o futuro, como se fosse bolas de sabão soltando-se à bolina.... Mortal sociedade! Mortal sociedade que se quer ainda mais mortal e falível, incapaz de dar rumo e significado a si própria, completamente à deriva sem a percepção de tal. Só temos como solução - porque tudo o que é biológico tende a ser cíclico - esperar o renascer do espírito, o regresso do acreditar numa divindade prosódica, una, que dê começo novamente, que dê sentido e significante a tudo o que é vivílvel, que nos possa tornar reconhecíveis uns perante os outros e perante a História. Acreditamos que chegará esse tempo após o que vazio em que se vegeta visceralmente, mas não sabemos quando, embora o presintamos próximo por motivos de sobrevivência do Homem e da sociedade. De todos nós.

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