terça-feira, 20 de março de 2012

A razão e o entusiasmo venceram

" Sim, Atenas continuava a ser bela e eu não lamentava ter imposto à minha vida disciplinas gregas. Tudo o que em nós é humano, ordenado e lúcido nos vem delas. Mas acontecia-me dizer a mim mesmo que a seriedade um pouco pesada de Roma, o seu sentido de continuidade, o seu gosto pelo concreto haviam sido necessários para transformar em realidade o que continuava a ser na Grécia um admirável conceito do espírito, um belo impulso da alma. Platão escrevera a República  e glorificara a ideia do Justo, mas éramos nós  quem, instruídos pelos nossos próprios erros, se esforçava penosamente para fazer do Estado uma máquina apta a servir os homens, correndo o menor risco possível de os esmagar. A palavra filantropia é grega, mas é o legista Sálvio Juliano e eu quem trabalha para modificar a miserável condição do escravo. A assiduidade, a previdência, a atenção ao pormenor corrigindo a audácia dos panoramas de conjunto tinham sido para mim virtudes aprendidas em Roma.  Bem no fundo de mim mesmo, acontecia-me rever as grandes paisagens melancólicas de Virgílio e os seus crepúsculos velados de lágrimas; penetrava ainda mais longe; encontrava a escaldante tristeza da Espanha e a sua árida violência; pensava nas gotas de sangue celta, ibero, talvez púnico, que deveriam ter-se infiltrado nas veias dos colonos romanos do município de Itálica; lembrava-me que meu pai havia sido denominado o Africano. A Grécia tinha-me ajudado a avaliar aqueles elementos que não eram gregos. Sucedia o mesmo com Antínoo; tinha feito dele a própria imagem daquele país apaixonado de beleza; seria talvez o seu último deus. E , contudo, a Pérsia requintada e a Trácia selvagem haviam-se aliado na Bitínia  aos pastores da Arcádia antiga; aquele rosto largo de maçãs salientes era o dos cavaleiros trácios que galopam nas margens do Bósforo e que se expandem à noite em cantos roucos e tristes. Nenhuma fórmula era bastante completa para conter tudo.
Concluí naquele ano a revisão da constituição ateniense, começada muito antes. Voltava ali , na medida do possível, às velhas leis democráticas de Clístenes. A redução do número de funcionários aliviava os encargos do Estado; levantei obstáculo à renda dos impostos , sistema desastroso, infelizmente empregado ainda aqui e ali pelas administrações locais. Algumas fundações universitárias, estabelecidas pela mesma época, ajudaram Atenas a tornar-se novamente um importante centro de estudos. Os amadores de beleza que, antes de mim, tinham afluído àquela cidade, haviam-se  contentado em admirar os seus monumentos  sem se preocupar com a penúria  crescente dos seus habitantes. Eu, pelo contrário, tinha feito tudo para multiplicar os recursos daquela terra pobre. Um dos grandes projectos  do meu reinado  realizou-se pouco tempo antes da minha partida;  o estabelecimento de embaixadas anuais , por intermédio das quais  se tratariam  dali em diante em Atenas, os negócios  do mundo grego, restituiu àquela cidade modesta e perfeita  a sua categoria de metrópole. Aquele plano só tomara corpo  depois de espinhosas negociações com as cidades ciumentas da supremacia de Atenas ou que alimentavam contra ela rancores seculares e caducos; pouco a pouco , porém , a razão e até o entusiasmo venceram. A primeira dessas assembleias coincidiu com a abertura do Olímpeon ao culto público; aquele templo tornava-se mais que nunca o símbolo de uma Grécia renovada."
Marguerite Yourcenar, in " Memórias de Adriano" ,1951, Editora Ulisseia

" Memórias de Adriano" tem a forma de uma longa carta dirigida pelo velho imperador , já minado pela doença, ao jovem Marco Aurélio, que deve suceder-lhe no trono de Roma. Uma carta em que lhe promete  contar toda a verdade, sem as reservas próprias da história oficial. Pouco a pouco, através desta serena confissão, suscitada pelo pressentimento de que a morte se aproxima, ficamos a conhecer os episódios  decisivos da vida deste homem notável, que soube pacificar o império, tornar a sociedade romana um pouco mais justa, melhorar a sorte das mulheres e dos escravos. E que foi simultaneamente uma das mais cultas e sábias figuras do seu tempo.
Publicado em 1951 , " Memórias de Adriano" recebeu o Prémio Fémina Vacaresco logo no ano seguinte, em 1952 . É um dos grandes  romances do século XX.
Marguerite  Yourcenar nasceu em Bruxelas em 8 de Junho de 1903 , e morreu em Bar Harbor, nos Estados Unidos  da América , em 17 de Dezembro de 1987. Poeta, tradutora, ensaísta,  historiadora, crítica literária e ficcionista, Yourcenar é uma das mais importantes escritoras de língua francesa do século XX.

1 comentário:

  1. Marguerite Yourcenar levou anos e anos a escrever, a rever, a reler e a voltar a escrever, a voltar a rever e a voltar a ler o seu "Memórias de Adriano"!... Preocupava-se muito com o rigor da sua escrita, com o rigor com que retratou a vida de Adriano e dos Romanos. Em "De Olhos Abertos", ela confessou a Matthieu Galey muitas das suas dúvidas, momentos do seu dia a dia de trabalho em volta dessa obra, e de outras, como "A Obra ao Negro", procurando que lhe saísse o mais fiel retrato possível do Imperador Adriano e da época romana em que este viveu. Convido-os à leitura desta obra, desta colectânea de entrevistas, traduzida e editada em português pela prestigiada Editora "Relógio D'Água" - Lisboa... Aí quer-nos parecer que temos ainda ao vivo, em diálogo tu cá-tu lá, em jeito de confidência, falando da sua vida e dos seus trabalhos literários, a autêntica Marguerite, a mulher, a pensadora, a escritora!... A França só a reconheceu dando-lhe entrada na sua Academia, a primeira mulher a entrar para tão solene e prestigiada Academia, quando já por toda a América e por todo o mundo ela era reconhecida pelo seu valor, pela sua extensa cultura, pela sua Arte, pela sua forte personalidade. Continua a sentir-se que "ninguém é profeta na sua terra", que os outros a tiveram de valorizar primeiro para que os franceses a valorizassem!... Assim foi. Assim é.

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