sábado, 17 de março de 2012

O sonho do semeador


Já não se pode falar de amor
sem sonhar com uma colheita melhor para esses povos
e sentir a semente palpitante da esperança
germinando novos frutos sobre a terra americana.
Redescobrir a vida nas espigas madurando,
na certeza de uma deslumbrante primavera
e de que haverá um campo de trigo à espera de ser pão.

Já não se pode falar de amor
sem caminhar com a expectativa destes povos oprimidos
pressentindo uma aurora de luz para nós todos
e a carícia  do rocio numa madrugada em marcha
porque a América, irmãos,
está prestes a ser reconstruída em cada punho.

Vamos pois, camaradas
há pouco tempo para a vida
e é urgente compreender
que não foi em vão haver nascido um homem.
Além da noite
além do impasse
há um tempo chegando em nossos passos
e já são muitos os que carregam seu sonho como um fuzil clandestino.
Nos punhos que se fecham
nos corações que se abrem
e em cada gesto partilhado
é preciso reconstruir o mundo.

Tudo é preciso agora....
é preciso sonhar
crer incondicionalmente no amanhã                                                          
e aguardar que os clarins anunciem o novo dia.
É preciso fazer do sonho a última trincheira
porque já não é mais possível viver sem uma fé
e um compromisso.
Mas é preciso esperar ainda
resistir um pouco mais
é preciso conspirar, fingir
morrer se for preciso

A qualquer preço
e ainda que passo a passo
tudo é preciso agora
para conquistar um dia o chão da liberdade.

Poetas da América...
mais que nunca é preciso cantar
é preciso fazer com que as palavras sejam uvas
é preciso embriagar os homens
para que todos conheçam o sabor da vida.
É preciso alistar nosso lirismo
desertado das fileiras dessa luta.
Desertado pelos que não comprometem a estesia do seu canto...
que  falam de flores
indiferentes aos campos calcinados da pátria,
que declamam seus versos de amor
cegos aos transeuntes da fome e do abandono
e é  missão dos poetas cantar seus olhos de súplica
denunciar que a morte  ronda seus ventres
e que eles são milhares nas barriadas
tugúrios e calhampas das vossas cidades
nas favelas do meu país
na verdade eles são milhares em todas as nacionalidades
e é preciso que eles sejam celebrados na beleza da poesia
é preciso decantar seu desencanto
e reconstruir, para eles, a esperança.
E por isso,
quando me perguntam de que vale um poeta no mundo
eu respondo com meu canto de filho proletário
com minha infância descalça e sem brinquedos
com todas as crianças do mundo que fui em meu estômago de água...                                                          
e só assim posso ouvir meu coração de povo
sentir meu canto nascer como um grito de combate
e eis porque deve nascer  uma canção na América
para que possamos semear o sonho no coração dos homens
para que possamos metralhar com um punhado de palavras.

Poetas da América...
nós que herdamos a canção continental de Whitman,
e o homem sincero nos versos  de Martí.
Nós que escutamos ainda próximo
o eco colombiano de Gaitan,
e a sinfonia altiplânica  no verso maior de Vallejo.
Nós que hoje cantamos com Guillén, com Neruda e Benedetti
e que daqui evocamos a Otto René Castilho,
poeta e combatente,
martirizado na fogueira acesa por Méndez Montenegro.
Salve hermano, memória heróica na massacrada Guatemala,
eu te saúdo hasta siempre com o lirismo dos meus versos
e digo  contigo:Vámonos, todos com a  patria a caminar.

E eis porque eu canto...
canto para pronunciar os nomes da bravura ...
e para cuspir na face dos tiranos.
Canto para denunciar o sangue dos caídos,
para escrever com asco o nome dos Stroessners, dos Somozas, dos Duvaliers
e todos seus comparsas  mais discretos.
Vamos pois, companheiros...
quando se vive numa pátria amordaçada
quando se canta com os gritos dos companheiros torturados
com o silêncio dos compatriotas assassinados
e com a face ensanguentada da pátria.
Quando se canta sob pena de morte
e com o pânico de um povo inteiro,
então temos que cantar mais forte
ainda que esta seja nossa última canção...
nossa ternura de poetas
desenhada em palavras de sangue.
E eis porque é também tão dolorosa a missão de um poema,
porque um poema é também um gesto imenso de amargura
um grito de dor que lacera o coração de um justo.

Venham... esse é o tempo das sementes... 
vamos cantar os grãos e as espigas
as flores e os frutos.
Vamos abrir com lirismo nossas almas
e lavrar a terra com as promessas da esperança.
Vamos declamar com coragem os nossos sonhos
e acreditar numa humanidade feita  de irmãos e companheiros.
Não importa se tivermos que morrer às vésperas desse alvorecer
mas o nosso canto há de sobreviver na alma
e nos lábios do homem novo.
Venham todos...
vamos partir daqui,
desta canção.
Ela é apenas um primeiro passo...
oh... venham por favor...
é preciso que cada um faça sua parte
porque é imprescindível acreditar no amanhã.
Oh! eu sei..., eu sei...,
é tão pouco...
é quase nada o que pode a poesia no mundo dos homens,
mas é ela que fermenta o sonho
que contém a chave do coração e o segredo da beleza.
Grande e humilde
a poesia é tão misteriosa como uma semente...
e a semente é um sonho alucinante
porque promete a flor,
o fruto, a sombra
e a floresta deslumbrante. 
Manoel de Andrade, Cochabamba, Outubro de 1969, in " Poemas para a Liberdade", Edição bilíngue,  Escrituras Editora,S. Paulo,  Brasil

1 comentário:

  1. Uma poesia enérgica, corporal, física, cheia de presença e afirmação, a de Manoel de Andrade! Uma poesia não só dirigida aos seus contemporâneos do Brasil, mas a todos os povos do mundo, a todos os políticos e governantes, a modos de um vibrante grito de alerta.

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