sexta-feira, 23 de março de 2012

Memória do Mar

"Cada um de nós não se cansava de fitar pensando os cabelos brancos dos outros. Cabelos de envelhecer. E não era com tristeza que o fazíamos mas sim com uma estranha e singular alegria. Uma íntima alegria histórica. Nesse teimar de nunca nos considerarmos velhos e apenas envelhecermos na imagem dos outros. Mas a imagem dos outros era cada um de nós e nossas vidas haviam percorrido imenso tempo comum. Sem medida e sem cronologia. Naquela tarde, respirávamos o ar quente da superfície. Só que em nossas narinas, em nossas bocas, restava ainda o cheiro e o sabor do tempo. Do tempo passado
Debaixo do mar. Sim. Tínhamos passado muitos anos debaixo do mar. E todo esse mundo aquático e de sedução infinita, trazíamo-lo à flor da pele como se de algas nos tivéssemos oleado e o tempo se medisse, lentamente mas sem cálculo, nas minúsculas bolhas de ar disparadas da boca dos peixes. Tanto tempo! E não foi apenas o capricho do major. O seu amor pela aventura. A paixão pela arqueologia submarina. Não foi apenas isso que nos seduziu. Mais, muito mais, foi a ideia de nos transformarmos sempre. Percorrermos todos os caminhos em todos os sentidos até dominarmos o tempo. Dominar para nós era perceber. E o tempo era mais do que as pessoas, as coisas, a vida. Era o seu sentido. E nunca poderíamos ter conhecido tanto as pessoas se não tivéssemos dominado o tempo.
Durante o tempo que vivemos debaixo do mar, muito em nós se transformou. Tal como acontecera quando da nossa estada na ilha. Muitas vezes chegámos a corrigir o antes com o depois. Outras o depois com o antes. Mas tudo sempre se conjugou no nosso intento."
Manuel Rui (escritor angolano),  in “ Memória do Mar” Edições 70

2 comentários:

  1. Um escritor angolano, Manuel Rui... Uma escrita com cor, muita sensualidade, muito atenta, desbobinante no desenrolar da diegeses até despregar-se, por momentos trémula ainda, mas sempre sentida, colocando cada palavra em reflexão de si própria, antevendo sempre outra, antevendo mais e mais. Uma leitura agradável.

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  2. Corrijo. Onde se lê "diegeses", deve ler-se "diegese".

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