quarta-feira, 21 de março de 2012

Celebrar a Poesia

Um mundo que transforma os sons , os cheiros, as cores, as imagens em palavras é um mundo onde reina a POESIA.  Entrar nesse mundo onde os  sentimentos, as  ideias, os  sonhos florescem é descobrir que são os poetas que percepcionam o próprio ritmo da vida e, por isso,  patenteiam, através de indizível ressonância,  o mistério e o sortilégio  da existência humana.
Para além da curva da estrada

Para além da curva da estrada
Talvez haja um poço, e talvez um castelo,
E talvez apenas a continuação da estrada.
Não sei nem pergunto.

Enquanto vou na estrada antes da curva
Só olho para a estrada antes da curva,
Porque não posso ver senão a estrada antes da curva.
De nada me serviria estar olhando para outro lado
E para aquilo que não vejo.

Importemo-nos apenas com o lugar onde estamos.
Há beleza bastante em estar aqui e não noutra parte qualquer.
Se há alguém para além da curva da estrada,
Esses que se preocupem com o que há para além da curva da estrada,
Essa é que é a estrada para eles.

Se nós tivermos que chegar lá, quando lá chegarmos saberemos.
Por ora só sabemos que lá não estamos.
Aqui há só a estrada antes da curva, e antes da curva
Há a estrada sem curva nenhuma.

Alberto Caeiro - Fernando Pessoa "Poemas Inconjuntos", in Poesia de  Alberto Caeiro, Assírio & Alvim 2ª ed. corrigida,Lisboa , 2004


Personagem

Teu nome é quase indiferente
e nem teu rosto já me inquieta.
A arte de amar é exactamente
a de se ser poeta.

Para pensar em ti, me basta
o próprio amor que por ti sinto:
és a ideia, serena e casta,
nutrida do enigma do instinto.

O lugar da tua presença
é um deserto, entre variedades:
mas nesse deserto é que pensa
o olhar de todas as saudades.

Meus sonhos viajam rumos tristes
e, no seu profundo universo,
tu, sem forma e sem nome, existes,
silêncio, obscuro, disperso.

Teu corpo, e teu rosto, e teu nome,
teu coração, tua existência,
tudo - o espaço evita e consome:
e eu só conheço a tua ausência.

Eu só conheço o que não vejo.
E, nesse abismo do meu sonho,
alheia a todo outro desejo,
me decomponho e recomponho.

Cecília Meireles, in "Viagem", 1938, Edições Ocidente


VERBO
Ponho palavras em cima da mesa; e deixo
que se sirvam delas, que as partam em fatias, sílaba a
sílaba, para as levarem à boca – onde as palavras se
voltam a colar, para caírem sobre a mesa.

Assim, conversamos uns com os outros. Trocamos
palavras; e roubamos outras palavras, quando não
as temos; e damos palavras, quando sabemos que estão
a mais. Em todas as conversas sobram as palavras.

Mas há as palavras que ficam sobre a mesa, quando
nos vamos embora. Ficam frias, com a noite; se uma janela
se abre, o vento sopra-as para o chão. No dia seguinte,
a mulher a dias há-de varrê-las para o lixo.

Por isso, quando me vou embora, verifico se ficaram
palavras sobre a mesa; e meto-as no bolso, sem ninguém
dar por isso. Depois, guardo-as na gaveta do poema. Algum
dia, estas palavras hão-de servir para alguma coisa.
Nuno Júdice, in “As Coisas Mais Simples”, Ed. Dom Quixote, Lisboa 2007
Despir Alguém...

Despir alguém peça por peça? Não.
Antes apenas mal despir abrindo
entradas e saídas para o corpo,
ou ver despir-se alguém rapidamente,
perto de nós a desnudar-se inteira
a carne sempre tímida e discreta.

Num caso, as mãos, e noutro caso os olhos,
são quem primeiro rende o que entrevisto
assim se toca ou não se toca nada.
Ardor nas duas vezes mas diverso:
e quanto se possui numa ansiedade
diversamente queima o sempre igual

amor de uma nudez que amor descobre.
Jorge de Sena, 8/11/1972, "Conheço o sal e outros poemas" in " Antologia Poética", Edições Asa

Pela névoa de pesadelo

pela névoa de pesadelo
a dor passa
clandestina
a fronteira dos instantes
e implacável
monta guarda
ao porão dos dias
ao contorno dos gestos
ao ruído das coisas
e
ao sentido das palavras
embaciadas
pela névoa do pesadelo
Arlindo do Carmo Pires Barbeitos, in “Na Leveza do Luar Crescente”, 1998, Lisboa, Editorial Caminho
Escuto

Escuto mas não sei
Se o que oiço é silêncio
ou deus

Escuto sem saber se estou ouvindo
O ressoar das planícies do vazio
Ou a consciência atenta
Que nos confins do universo
me decifra e fita

Apenas sei que caminho como quem
É olhado amado e conhecido
E por isso em cada gesto ponho
Solenidade e risco.
Sophia de Mello  Breyner Andresen, in " Geografia", 1967, Edições Caminho
Crepúsculo

Também os deuses dormem,
E são então montanhas de penumbra
Sem resplendor.
Lassas, as fragas, os divinos ossos,
Baços os horizontes, os sentidos,
- Todo o corpo parece
Uma grande fogueira que arrefece
Por dentro do volume dos vestidos.
Miguel Torga, 1/01/1948, in " Diário IV", Obra completa,Círculo de Leitores

Ao desconcerto do mundo

Os bons vi sempre passar
no mundo graves tormentos;
e, para mais me espantar,
os maus vi sempre nadar
em mar de contentamentos.

Cuidando alcançar assim
o bem tão mal ordenado,
fui mau;  mas fui castigado.
Assim que só para mim
anda o mundo concertado.
Luis de Camões, " Lírica", Publicações Europa-América
Nocturno

O desenho redondo do teu seio
tornava-te mais cálida, mais nua,
quando eu pensava nele... Imaginei-o,
à beira-mar, de noite, havendo lua...

Talvez a espuma, vindo, conseguisse
ornar-te o busto de uma renda leve
e a lua, ao ver-te nua, descobrisse,
em ti, a branca irmã que nunca teve...

Pelo que no teu colo há de suspenso,
te supunham as ondas uma delas...
Todo o teu corpo, iluminado, tenso,
era um convite lúcido às estrelas...

Imaginei-te assim à beira-mar,
só porque o nosso quarto era tão estreito...
- E, sonolento, deixo-me afogar
no desenho redondo do teu peito...

David Mourão-Ferreira, In "A Secreta Viagem", Oficina do Livro


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