terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Desconstruir o discurso apocalíptico

"Há a luz e há as luzes, as luzes da razão ou do logos, que não são, apesar de tudo, outra coisa. E é em nome de uma Aufklarung que Kant, por exemplo, tenta desmitificar o tom senhorial. Nos dias de hoje não podemos deixar de ter herdado dessas Luzes, nós não podemos e nós não devemos, é uma lei e um destino, renunciar à Aufklarung, ou dito de outra maneira , àquilo que se impõe como o desejo enigmático da vigilância, da vigília lúcida , da elucidação, da crítica e da verdade, mas de uma verdade que ao mesmo tempo encerra em si o desejo apocalíptico, desta vez como desejo de claridade e revelação, para desmitificar ou, se preferirem, para desconstruir o próprio discurso apocalíptico e com ele tudo o que especula sobre a visão, a iminência do fim, a teofania, a parúsia, o juízo final. Então, de cada vez, nós perguntamo-nos teimosamente onde querem chegar, e a que fins, aqueles que declaram o fim disto ou daquilo, do homem ou do sujeito, da consciência, da história, do Ocidente ou da literatura, e as últimas novas sobre o próprio progresso cuja ideia nunca foi tão mal suportada da direita à esquerda. Que efeitos querem produzir esses gentis profetas ou esses eloquentes visionários? Em vista de que benefício imediato ou futuro? O que fazem eles, o que fazemos nós, ao dizer aquilo? Para seduzir ou submeter, intimidar ou dar satisfação, a quem? Estes efeitos e estes benefícios podem ser relacionados com uma especulação individual ou colectiva, consciente ou inconsciente. Podem ser analisados em termos de domínio libidinal ou político, com todas as articulações diferenciais e, portanto, com todos os paradoxos económicos que sobredeterminam a ideia de poder ou de domínio e por vezes as conduzem ao abismo. A análise lúcida destes interesses ou destes cálculos deve mobilizar um grande número e uma grande diversidade de dispositivos interpretativos hoje disponíveis. Ela deve-o e ela pode-o, pois a nossa época talvez seja sobrearmada neste particular; e uma desconstrução, se não se detém aí, nunca se faz apesar disso sem um trabalho segundo sobre o sistema que junta esse sobrearmamento a si próprio, que articula , como se diz , a psicanálise com marxismo ou com qualquer nietzscheísmo, com os recursos da linguística, da retórica ou da pragmática, com a teoria dos speech acts, com o pensamento heiddeggeriano sobre a história da metafísica, a essência da ciência ou da técnica. Uma tal desmistificação deve sujeitar-se à diversidade mais sofisticada das manhas apocalípticas. O interesse ou o cálculo podem aí ser dissimulados sob o desejo de luz, bem escondidos (eukalyptus, como dizemos da árvore cuja fímbria caliciada permanece fechada após a floração), bem escondidos sob o desejo declarado de revelação. E uma dissimulação pode esconder outra. O mais grave, pois agora é interminável, o mais fascinante, respeita a isto: o sujeito do discurso escatológico pode ter interesse em renunciar ao seu interesse, ele pode renunciar a tudo para colocar ainda a sua morte nos vossos braços e fazer-vos herdar por antecipação o seu cadáver, ou seja , a sua alma, esperando chegar assim aos seus fins pelo fim, a seduzir-vos imediatamente prometendo-vos proteger a vossa guarda na sua ausência."
Jacques Derrida, in " De um tom apocalíptico adoptado há pouco em Filosofia", Editora Vega, Passagens

1 comentário:

  1. À volta do pensamento de Jacques Derrida... - Analisemos... Por onde se esconderam as torres fumegantes da derrota, da terra infinda onde se busca a luz e a razão, e não se alcança nem uma nem outra?... Porque se continua a apostar na derrota do Homem, no final do ser que povoa ontologicamnete a sempre lembrada estrada de Damasco, onde primeiro se cega na escuridão do pó que se levanta no ar, para depois se obter a visão primordial da Luz, do conhecimento, do discurso de liberdade e de esperança?... Agora infelizmente sob o centro das atenções e para além de notícia de todas as manhãs, caminho para o martírio dos que lutam pela liberdade, pela sua própria identificação e só recebem luvas de mentira e de golpes de despotismo, chuva de metralha mortífera, apocalíptica, destruidora, bombardeamentos de fome, de sangue e de morte... Há muito que se desbobina, que se desenrola o discurso da guerra, da injustiça, da destruição, fazendo-o passar por cântico de salvação, quando a hipocrisia se enche de larvas e podridão e nada mais há a esperar!... Derrida pede a desmestificação, o recolhimento necessário para pensar, para erguermos uma outra forma de dizer, um outro discurso, que não se pareça com o da mais dramática solidão, com a apologia do fim do bem e da destruição, da amargura do presentimento e da tragédia. Há quanto tempo, em quantas eras se especula sobre o fim do mundo, das gentes, e da Humanidade, da Humanidade que nos coube?!... Foi antes de ontem, foi ontem, é hoje, diz-se ser para o amanhã, ou para o depois?!... Para quê tanta inquietação, tanta verbosidade, tanta crença sem base nem crença, tanta fé irreal e disfórica, esfumada, sem nada de concreto para nos propor, para prosseguirmos. A nível individual, colectivo, político, a nível de massas, de agrupamentos, de partidos, de associações que esperar? O fim?!... Não!... É necessário, (quase) imprescindível começar de novo, propor uma "desconstrução" de tudo o que foi dito, redito e sagrado, e disso foi feito tábua rasa, para propormos o início, a abertura do discurso, de um discurso de construção, activo, ágil, benéfico, coalhado de esperança e de verdade, um discurso sem medo, sem peias, sem recôncavos, onde os profetas da desgraça estejam completamente ausentes, mudos, refugiados numa falsa consciência da História, do que foi e não foi, do que poderia ter sido e também não ocorreu. Porque nos recusamos a aceitar dismorfismos, apocalípticos erráticos e velados, bairros de especulação, terras onde a economia escorraçante se sobreponha ao Poder, à vontade do povo, onde a teocracia seja a bajulação que nos possa jogar no nada, no som, no abismo , num fundo sem recuperação. Oiçamos, pois a voz de cada, individual ou mesmo colectiva, a diversidade das palavras, as interpretações que nos salvem da destruição apregoada e inútil, e pobre e inconsequente. De uma vez por todas, a liberdade de irmos contra, o apelo ao discurso do bem, da elevação! - V. P.

    ResponderEliminar