segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Fernando Pessoa e a revista "Orpheu"

CARTA DE FERNANDO PESSOA
"- Comecemos por distinguir três coisas que habitualmente se confundem quando se fazem referências ao «Orpheu». Por «Orpheu» entende-se umas vezes a revista com aquele nome, de que saíram só dois números, em Março e Junho de 1915; outras vezes os que estiveram ligados a ela, ainda que como simples espectadores próximos ou amigos, e sem que nela influíssem ou colaborassem; outras vezes ainda, os que escreveram subsequentemente em estilo semelhante ou aproximado ao dos que de facto colaboraram no «Orpheu».
- Ora eu parto do principio de que o que v. quer saber é como se organizou e lançou a revista «Orpheu», e de como foi recebida. É a isso, pois, que vou responder. Isto explicará desde logo, evitando confusões ou melindres que sem esta explicação se poderiam sentir justificados, porque motivo não cito vários poetas e escritores que, pela mesma altura ou mais tarde, escreveram em estilo ou modo parecido com o nosso. Explicará também porque não vou buscar antecedentes, episódios anteriores à preparação do «Orpheu», ou até as origens, reais ou presumíveis, da corrente literária, pois foi uma corrente e não uma escola, que se manifestou no «Orpheu» mas já antes começara.
- Vamos, pois, ao caso do aparecimento da revista. Em princípios de 1915 (se não me engano) regressou do Brasil Luís de Montalvor, e uma vez, em Fevereiro (creio), encontrando-se no Montanha comigo e com o Sá-Carneiro, lembrou a ideia de se fazer uma revista literária trimestral - ideia que tinha tido no Brasil, tanto assim que trazia para colaboração alguns poemas de poetas brasileiros jovens, e a ideia do próprio titulo da revista - «Orpheu». Acolhemos a ideia com entusiasmo, e como o Sá-Carneiro tinha, além do entusiasmo, a possibilidade material de realizar a revista, passou imediatamente a dar o caso por decidido, e desde logo se começou a pensar na colaboração. Contanto mais entusiasmo acolhemos a ideia quanto é certo que ambos nós havíamos projectado varias revistas, mas sempre, por qualquer razão, os projectos haviam esquecido. O que esteve mais próximo de se realizar foi o de uma revista pequena, intitulada «Europa», que abriria por um manifesto, de que escrevi apenas uns quatro parágrafos, com colaborarão ocasional de Sá-Carneiro, e de que me lembro ser uma das principais afirmações a da nossa necessidade de «reagir em Leonino» contra o ambiente - frase tendente, é claro, para a perfeita elucidação do público.
- O certo, porém, é que se decidiu publicar o "Orpheu". Sem perda de tempo se adoptaram o nome e a periodicidade, e se estabeleceu o número de páginas - de 72 a 80 em cada número. E ficou igualmente assente que figurariam como directores o Luís de Montalvor e um dos poetas brasileiros seus amigos - Ronaldo de Carvalho. Digo «figurar como directores» sem intuito algum reservado. A direcção real da revista era, e foi sempre, conjunta, por estudo e combinação entre nós três e também o Alfredo Guisado e o Cortes Rodrigues, de quem falarei a seguir. Ficou assente também, que o Luís de Montalvor escrevesse o prefácio da revista, o que de facto fez, não colaborando porém no primeiro número por não ter pronto ou não considerar pronto o poema com que de facto colaborou no segundo.
No mesmo dia ou no dia seguinte expusemos, Sá-Carneiro e eu, a ideia da revista ao Alfredo Guisado e ao Cortes Rodrigues, e pode dizer-se que o número ficou completo, sobretudo depois de termos obtido a colaboração do Almada Negreiros, que providencialmente tinha completado uma pequena série, interessantíssima, de trechos em prosa, a que pôs o título «Frisos» quando os inseriu na revista.
O «Orpheu» foi logo para a tipografia, ficando eu apenas a completar o «Opiário» da minha  personagem Álvaro de Campos, que embora hipoteticamente escrito antes da «Ode Triunfal» o foi realmente depois.
O número foi de facto bem organizado. Começava, à parte o prefácio, com uns poemas do Sá-Carneiro e fechava com a «Ode Triunfal» do meu velho e inexistente amigo Álvaro de Campos. E, a propósito de Ode Triunfal. Para dar, mesmo para os próximos de nós, uma ideia de individualidade do Álvaro de Campos, lembrei ao Alfredo Guisado que fingisse ter recebido essa colaboração da Galiza; e assim se obteve papel em branco do Casino de Vigo, para onde passei a limpo as duas composições. Lembro-me ainda do António Ferro e Augusto Cunha, então muito novos, e que frequentemente iam pelos Irmãos Unidos, lerem atentamente, sozinhos numa mesa ao fundo, essas composições inesperadas; assim como me lembro do Almada Negreiros, depois de ler com entusiasmo a «Ode Triunfal», me sacudir fortemente pelo braço, visto a minha falta de entusiasmo, e de me dizer, quase indignado: «Isto não será como v. escreve, mas o que é, é a vida». Senti que só a sua amizade me poupava à afirmação implícita de que Álvaro de Campos valia muito mais do que eu.
- Assim a blague começava em casa?
- A blague? De certo modo. Mas é bom entendermo-nos sobre isso de blague, pois fomos acusados de «fazer blague» em tudo quanto escrevíamos e fazíamos.
Quando vi que o «Orpheu» era dado como propriedade de «Orpheu Ltda.» observei ao Sá-Carneiro que era preferível dizer «Empresa do Orpheu» ou coisa parecida, e não empregar uma designação de sociedade por quotas. «E se alguém se lembrar de pedir a certidão de registo no Tribunal do Comércio?» «Você crê?» disse o Sá-Carneiro. «Deixe ir assim. Gosto tanto, tanto da palavra limitada». «Está bem» respondi, «se o caso é esse, vá. Mas, olhe lá, que serviço é este de o António Ferro figurar como editor. Ele não pode ser editor porque é menor». «Ah, não sabia, mas assim tem muito mais piada!» E o Sá-Carneiro ficou contentíssimo com a nova ilegalidade. «E o Ferro não se importa com isso?» perguntei. «O Ferro? Então v. julga que eu consultei o Ferro». Nessa altura desatei a rir. Mas de facto, informou-se o Ferro e ele não se importou com a sua editora involuntária nem com a ilegalidade dela.
Por exemplo? Revíamos nós, Sá-Carneiro e eu, as provas da primeira folha, quando me surgiu, no prefácio de Luiz de Montalvor, a frase «maneiras ou formas» transformada em «maneiras de formas». Ia a emendar, quando o Sá-Carneiro me suspendeu. «Deixe ir assim, deixe ir assim: assim ainda se entende menos.»
Um sonetilho de Ronald de Carvalho vinha, por distracção ou outro qualquer motivo, mal pontuado. Tinha só um ponto no fim das quadras e outro no fim dos tercetos. Esta deficiência lembrou-me a extravagância de Mallarmé, alguns de cujos poemas não têm pontuação alguma, nem no fim um ponto final. E propus ao Sá-Carneiro, com grande alegria dele, que fizéssemos, por esquecimento voluntário, a mesma coisa ao soneto de Ronald de Carvalho. Assim saiu. Quando mais tarde um critico apontou indignadamente que «a única coisa original» nesse soneto era não ter pontuação, senti deveras um rebate longínquo num arremedo de consciência. Depressa me tranquilizei a mim mesmo. A falta de fim justifica os meios.”

Fernando Pessoa em texto, originalmente dactilografado, publicado como inédito em Nova Renascença, Número 2 - sem indicação do destinatário, nem da data.

1 comentário:

  1. Pela imoportância de que se reveste, venho somente recordar que desde a primeira hora do "Orpheu", corrente literária ou movimento literáro - como se quiser chamar... - surgiu quase que em paralelo em Faro, no Algarve, a revista "O Heraldo", também impressa em Faro, com poemas e prosa na onda Orpheísta, aderindo ao "Orpheu" quese fundara em Lisboa. Em "O Heraldo" colaboraram activamente o pintor Carlos Porfírio e Lyster Franco-Pai, o Mário L. F. e outros, como Alfredo Guisado. Fernando Pessoa chegou a deslocar-se a Faro para apoiar a dita Revista "O Heraldo", nascida nos meios culturais da capital algarvia por volta dos finais de 1915... Para quem o desconhecer, especialmente este envolvimento de Faro no Movimento do Orpheu, aqui fica o apontamento, breve, devido ao espaço de que disponho. - V. P.

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