terça-feira, 27 de dezembro de 2011

É da tua mão que eu preciso agora

"É da tua mão que eu preciso agora. Há momentos, sabes, que me sinto tão cansado, todos estes dias cheios de palavras que me fogem. Então penso em ti: Joana. Penso: vou contar-te uma coisa. Há pouco tempo morreu a filha de um amigo meu, homem generoso e bom, melhor do que alguma vez fui. Um cemitério é um lugar horrível e a dor dele doía-me. Depois de tudo acabar voltei para o automóvel. Eram muitos passos nas veredas a voltarem para os automóveis. O caixãozinho branco. Aquelas árvores que tu conheces de quando a gente há dois anos. Despedi-me das pessoas um pouco ao acaso, sem sentir os dedos que apertava: têm tantos dedos as pessoas. Nem me lembro já porquê abri a mala do carro. Estavam lá dentro coisas tuas de Espanha: batas, papéis, as inutilidades confusas que estás sempre a juntar. Peguei numa das tuas batas, abracei-a. E desatei num choro de menino, de cabeça inclinada para a mala do carro na esperança de que não me vissem. Depois lá enxuguei o nariz à manga nunca perdi o hábito de enxugar o nariz à manga engoli-me a mim mesmo e vim-me embora. Sempre que me sento no teu carro lembro-me de ti. Também me lembro quando não me sento no carro mas sempre que me sento no carro lembro-me de ti. De ti e de Malanje onde começaste a ser, e as mangueiras tremem-me no interior do sangue.Mas é da tua mão que eu preciso agora. Há momentos em que me farto de ser homem: tudo tão pesado, tão estranho, tão difícil. Eu vou tendo paciência e no entanto, às vezes as coi­sas magoam, há ideias que entram na gente como espinhos. Não se podem tirar com uma pinça: ficam lá. É então que a cara prin­cipia a estragar-se e a gente diz e envelhece. Necessito de muito pouca coisa hoje em dia: uns livros, o meu trabalho de escrever, amigos que se estreitam com o tempo, alguns deixados para trás, não sei onde. A minha avó dizia que fui a pessoa por quem chorava mais. Nunca acre­ditei. Era autoritária, mimada, sedutora: tratava-me tão bem! Jogávamos a ver qual de nós dois conquistava o outro: andáva­mos mais ou menos empatados (sabes como detesto perder)e nisto ela morreu. Recordo-me de sair de sua casa e vir à cervejaria comer. Ainda não tinha tempo de sentir-lhe a ausên­cia. Pedi o jornal desportivo ao empregado. Ao voltar para cima achei-a vestida sobre a cama.Agora é Novembro, tenho frio, ando às voltas com um romance de que não estou a gostar. Nunca estou a gostar do que escrevo, acho aquele em que trabalho o mais difícil, acho que as palavras me derrotam. Frases puxadas como pedras de um poço que não vejo. Banalidades que me indignam por estarem tão longe do que quero. Capítulos que me fogem, o plano da his­tória dinamitado pelos caprichos da minha mão, que não faz o que pretendo: escapa-se sempre, inventa, tenho de apanhá-la a meio de um período inverosímil. Talvez seja por isso que preciso da tua. Ou não por isso: não bebo e no entanto há alturas em que me sinto tão só que é quase o mesmo. E sem essa solidão não me é possível escrever. O meu amigo a quem morreu a filha chama-se José Francisco. Quando sorri os cantos da boca parecem levantar voo. Faz-me bem. Gostava de sorrir assim. Experimentei ao espelho e não é igual. Quer dizer, a boca curvou-se mas os olhos ficaram fixos, duros. Deixei de sorrir e enchi a cara de espuma da barba, até ser apenas nariz e olhos. Então sorri outra vez e os olhos acharam graça e mudaram. Os meus olhos sérios olhavam para os meus olhos divertidos. Pisquei o esquerdo e o espelho piscou o direito. Lavei a cara, apaguei a luz, saí. Por um segundo veio-me a sensação de caminhar em Malanje. Aquele cheiro da terra, demorado, opaco, violento. E pronto, é tarde. Em chegando ao fim da página aca­bou-se. Ponho a tampa na caneta, os cotovelos na mesa e fico a observar a parede. Nem vou reler isto, mando tal e qual. Prefiro observar a parede, deixar-me impregnar devagarinho pela essên­cia das coisas. Esta cadeira, aquele móvel, uma manchinha de cinza no chão, as minhas mãos geladas de frio a acabarem esta crónica. Se calhar amanhã telefono-te. Ou regresso ao romance na teimosia dos cães. Penso: nem que deixe a pele nele hei-de conseguir acabá-lo. Comecei-o no princípio de Outubro, falta muito. Alinho os papéis, ponho tudo em ordem para a escrita. Nem que deixe a pele nele hei-de conseguir acabá-lo. Leio a última frase, continuo. Só por um bocadinho de nada, antes que continue, importas-te de tirar as batas do carro? Importas-te de me dar a mão?"António Lobo Antunes, in Segundo Livro de Crónicas(SLC) ,2006

A crónica em António Lobo Antunes reveste características peculiares que distanciam os seus textos do registo cronista convencional. Com efeito, neste autor não há qualquer preocupação em dar conta de um quotidiano, criticar comportamentos e atitudes ou transmitir um qualquer ensinamento. As crónicas antonianas são antes o espaço da ficcionalidade, da intimidade, da subjectividade, num evidente prolongamento ou antes numa total conformidade com o registo romanesco, com o qual tecem um incessante diálogo intertextual. As crónicas de António Lobo Antunes transportam-nos para o universo da intimidade, onde as personagens se debatem com fantasmas e obsessões, recordam episódios ou pessoas, que marcaram a sua existência. Não se adivinhando nenhum fio condutor nem entre os textos que constituem cada um dos livros de crónicas, nem entre as colectâneas, é no entanto possível agrupá-los segundo critérios temáticos. In “Quando a crónica se faz arte”

ANTÓNIO LOBO ANTUNES
“Nasceu em Lisboa, em 1942, tendo passado a infância e a adolescência em Benfica e em Nelas, locais que acabariam por marcar a sua obra. Após a licenciatura em Medicina, foi, no cumprimento do serviço militar obrigatório, mobilizado para Angola, chegando a combater na guerra colonial, entre 1971 e 1973. Especializou-se em Psiquiatria e iniciou a sua actividade no Hospital de Santa Maria, transitando posteriormente para o Hospital Miguel Bombarda. Esta experiência marcou fortemente os seus três primeiros romances. Publicou o seu primeiro romance em 1979 – “Memória de Elefante” – que, imediatamente o posicionou na produção romanesca portuguesa. A este êxito seguiu-se, no mesmo ano, “Os Cus de Judas”, um longo monólogo dramático galardoado como Prémio Literário Franco - Português, em 1987. “Conhecimento do Inferno” (1980), “Explicação dos Pássaros” (1981), “Fado Alexandrino” (1983), “Auto dos Danados” (1985; Grande Prémio de Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores, 1986), “As Naus” (1988), “Tratado das Paixões da Alma” (1990), “A Ordem Natural das Coisas” (1992), “Morte de Carlos Gardel” (1994), “Crónicas” (1995), “Crónicas do Público” (1996), “Manual dos Inquisidores” (1996), “O Esplendor de Portugal” (1997), “Livro de Crónicas” (1998), “Exortação aos Crocodilos” (1999), “Não Entres Tão Depressa Nessa Noite Escura” (2000), “Que Farei Quando Tudo Arde?” (2001), “Apontar com o Dedo o Centro da Terra” (2002), “Boa Tarde às Coisas aqui em Baixo” (2003), “Eu Hei-de Amar uma Pedra” (2004) são alguns dos títulos da sua extensa bibliografia.” MGR in TN D.Maria II

1 comentário:

  1. Oportuno!... António (A.L.Antunes) é um autor que nunca esteve em procura dele próprio, nem é como Ruben A., que teve "sempre" o mundo à sua procura. António desde que escreve, desde o primeiro livro publicado, luta com António, com ele próprio, numa profunda análise de si nos outros, em tudo o que o cerca. Para nosso benefício ainda não terminou!... E ainda bem!... (E ele sabe-o melhor!... Sabe que isto é verdade, daí o seu medo de não ter tempo de escrever só mais um livro, só mais um!...) Esperamos o dia em que o autor "ajuste contas" definitivamente consigo próprio, que o mesmo é dizer com todos os protagonistas e demais personagens que a sua Arte soube criar ao longo do tempo... nos seus muitos livros. Aquele dia pelo qual todos os grandes escritores anseiam!... E recuando no tempo,... longe vão os dias em que o Dr.António entrava apressado no Hospital Miguel Bombarda, subia os degraus, e percorria os corredores, cumprimentando afável e timidamente todos os internados que se cruzavam com ele. Já por esse tempo ocorria na sua oficina de escritor a gestão de "A Explicação dos Pássaros", pela mão de um dos maiores prosadores da Língua portuguesa. A.L.Antunes!... Só saberemos quanto ele vale, quanto nos faz falta, quando um dia o perdermos!... Que esse dia ainda esteja muito longe, são os nossos desejos! António!...Como se modificou a tua personalidade!... Abraço muito amigo! Do colega mais novo... a quem soubeste "abrir" outros horizontes... - V. P.

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