sábado, 5 de novembro de 2011

Um sorriso claro solar


"Mas insensivelmente os lábios foram-se separando um pouco. Um dente. Subtil iluminado de pacificação, serenidade alegria de ser - se te demorasses um pouco. E seres aí a vida rodeada de verdade por todos os lados. Um dente visível. Mas os lábios separaram-se mais e são agora um sorriso claro solar. E instintivamente deixei que se demorasse aí até eu poder reconhecer-lhe o esplendor. É um riso, não vou cometer a imprudência de o perder. Está na linha do céu e do mar, não vou. A juventude sem uma força excessiva de o ser. A confiança - não vou. O futuro dos séculos a quererem vir. A segurança contra o medo a vileza a degradação. A morte. Nem na realidade há nele futuro algum. Porque todos os séculos do futuro e do passado se conglomeram ali no instantâneo presente. O riso. Sem olhos nem face. Nem cabelos. Porque toda a sua ausência está lá. São olhos iluminados de uma festa terrível, cabelos de ar. Fixar-te para sempre, riso da minha pacificação."
Vergílio Ferreira, in "Na Tua Face", Bertrand Editores, 1993 *

*"Na Tua Face" é um dos últimos romances de Vergílio Ferreira e aquele que mais traduz uma aspiração do próprio autor.Ser pintor tal como Daniel,a personagem deste romance. Em "Conta-Corrente", obra diaristica, Vergílio Ferreira anotou: «Não preferi a minha arte. Calhou-me. Ou talvez seja essa a sorte de todas as preferências: escolhe-se sempre o que nos coube, ou seja o que se é. Mas a verdade é que, se na escolha se escolhesse, escolheria a pintura».

2 comentários:

  1. Um sorriso impressiona, grava-se de um modo muito subtil na película sempre sensívelda nossa alma, na película fotográfica mais íntima da nossa capacidade de amar! Olhai!... Um sorriso pode desfazer ódios, como criar empatia, fazer vir ao cimo o desejo... Em termos anatómicos, só o rosto humano possui os músculos em quantidade e qualidade para esboçar um sorriso!... Músculos de finíssimas fibrilhas... Eis... Vergílio Augusto Ferreira, munido daquele carão severo, daquela sisudez, aparentando o que não era, porque em intimidade a sua conversa era doce, pacífica, tranquilizante, desde que não o provocassem a meio das frases com assuntos que o azedavam... Sofreu na infância- como é sabido e ele próprio o contava - o abandono pelos pais, por razões forçadas, razões de emigração dos mesmos e de uma irmã mais velha, para reconstruirem a vida em terras estranhas, nos Estados Unidos da América... Depois sofreu toda aquela saga rígida e amortiçada do estudo no seminário, caminho de ascenção para quem não tinha meios económicos para custear o seu próprio estudo... Escrevia na saleta, as folhas de papel sobre uma prancheta de madeira, com aquela letrinha muidinha, tão uniforme, acertadinha, , quase indecifrável, ao primeiro olhar. Levava assim horas e horas... Disse sempre, meio a rir, que entraria no "paraíso" a escrever... Num dia primeiro de Março disse à Regina, a sua mulher, que se sentia desfalecer... Ela julgou tratar-se de falta de alimento. Foi à cozinha prparar uma sandes e algo par beber. Tudo tão natural!... Eis, que houve um "baque", um estrondo forte lá para os lados da saleta!? Corre, corre... Vergílio estava tombado no chão, inerte, sucumbido. O coração parara-lhe, traindo-o repentinamente. Vergílio Ferreira. Deixou-nos para além da sua obra romanesca e filosófica, existencialista, vários volumes de um Diário só surgido a público após Abril de 74 e o seu "Para Sempre", quanto a nós a sua obra melhor, aquela onde ele está de corpo inteiro, sem anfractuozidades, real, sentido, sentidíssimo. E ainda restos de um convívio solene, educado, agradável, disposto ao humor, à anedota, à galhofa, ao contrário do que a aparência do seu rosto o faria prever!... Vergílio para os seus muitos alunos e amigos... Uma saudade!... - Varela Pires

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