segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Fragmento do Homem


“Todos os paraísos tiveram sempre a dimensão do homem, e os deuses que lá habitaram nunca foram mais que o reflexo da sua face branca, da sua face negra. A história dos deuses é o espelho da nossa aflição, da nossa esperança. O paraíso de hoje volta a reflectir as mesmas ilusões: começa a povoar-se de robots. O desamparo inventa sempre uma tábua de salvação: a última é a superstição da técnica. Uma vez mais o homem declina o seu nome, enquanto os deuses mudam de manto e ajeitam a coroa.
Nem cristal nem lixo, mas lixo–e-cristal é o nosso tempo. E não temos outro onde mergulhar as raízes.. Que tempo é o nosso? Há quem diga que é um tempo a que falta amor. Convenhamos que é, pelo menos, um tempo em que tudo o que era nobre foi degradado, convertido em mercadoria. A obsessão do lucro foi transformando o homem num objecto com preço marcado. Estrangeiro a si próprio, surdo ao apelo do sangue, asfixiando a alma por todos os meios ao seu alcance, o que vem à tona é o mais abominável dos simulacros. Toda a arte moderna nos dá conta dessa catástrofe: o desencontro do homem com o homem. A sua grandeza reside nessa denúncia; a sua dignidade, em não pactuar com a mentira; a sua coragem, em arrancar máscaras e máscaras.
E poderia ser de outro modo? Num tempo em que todo o pensamento dogmático é mais do que suspeito, em que todas as morais se esbarrondam por alheias à «sabedoria» do corpo, em que o privilégio de uns poucos é utilizado implacavelmente para transformar o indivíduo em «cadáver adiado que procria», como poderia a arte deixar de reflectir uma tal situação, se cada palavra, cada ritmo, cada cor, onde espírito e sangue ardem no mesmo fogo, estão arraigados no próprio cerne da vida?
Desamparado até à medula, afogado nas águas difíceis da sua contradição, morrendo à míngua de autenticidade - eis o homem! Eis a triste, mutilada face humana, mais nostálgica de qualquer doutrina teológica que preocupada com uma problemática moral, que não sabe como fundar e instituir, pois nenhuma fará autoridade se não tiver em conta a totalidade do ser; nenhuma, em que espírito e vida sejam concebidos como irreconciliáveis; nenhuma, enquanto reduzir o homem a um fragmento do homem. Nós aprendemos com Pascal que o erro vem da exclusão.”

Eugénio de Andrade, in “Os Afluentes do Silêncio”, Editorial Inova Limitada, Porto

1 comentário:

  1. Tudo o que os homens não conseguem superar, hão--de superar, desenvolver, transformar, resolver por eles próprios, de uma forma, de múltiplas formas inesgotáveis e julgadas intransponíveis. A essa formas a esse "modus facient", deram o nome de "deuses", de diversos deuses pictóricos, como entes superiores, resolução de resoluções, à falta de outro nome melhor, por julgarem-se incapazes, insuficientes, de se agigantarem, de se transformarem naquilo que nunca julgarem poder transformar-se. Aos homens cabe eliminarem a exclusão deles próprios, de dentro de si e de dentro das massas multidunárias que forma em colectivo, no seu percurso, no seu processo de aprendizagem, no tamanho da sua realização real e ímpar. Esperemos pelo dia em que os homens se encontrem com os homens, sem a presença de deuses, sem o tolhimento, sem o espartilho, sem o paralizante contágio que os mesmos transmitem ao Homem!... Estamos perante um intrigante texto de Eugénio de Andrade (na vida real, o inspector José Fontinhas dos ex-Serviços Médico-Sociais), estamos em par de um texto-problema, algo "desarticulado" na especificidade com que salta de um conceito para o outro, com a ligeireza com que aflora um choro ou um riso, o trágico ou a comédia da tragicidade do viver, todavia um texto pleno, que reflecte e dá a reflectir a solidão humana nos dias de hoje, a verdadeira identidade do Homem, o conhecimento por ele próprio dessa mesma identidade e do seu passado ancestral, transmitidos na cor, no silêncio interior, e igualmente no vozear, no tumulto, no que refracta do turbilhão que exala da praça pública, no confronto ideológico-político. Em "Afluentes do Silêncio", o Eugénio escreveu fragmentos de prosa extremamente belos do que o presente, muito mais belos, idílicos e suaves, a tal ponto, que a sua prosa (poética), inúmeras vezes chega a submergir o verso esguio e solitário, a febre que exala dos passos pesados ao caminhar, o aconchego do fruto nas mãos pregueadas e ávidas de sumo, cheirando a maça camoeza, a uvas sumarentas e quentes, a lençóis de ternura lavados na ribeira daquela pequena aldeia que lhe serviu de berço na Beira-Baixa, envolvido no amor inesquecível e maravilhoso que a sua mãe lhe soube transmitir. O sabor de uma mãe, os cheiros de lágrimas de quem cuide do homem na sua infância, têm muita importância em qualquer de nós, e muito, muito mais nos dias futuros de um grande Poeta como o Eugénio o foi e continua a sê-lo!... Mesmo na marginal da Foz do Douro, sonhando naquela casa, espelhada de vidraças tão nítidas, que a Edilidade Portuense ofereceu ao poeta enquanto ele residisse na Cidade Invicta, no Porto, o Eugénio nunca esqueceu o calor suado e sadio das terras da sua Beira, as mãos da sua mãe deslizando pelo seu cabelo, o sorriso desa grande mulher, a paisagem desenrolando-se em socalcos prenha de eucaliptais debruçados sobre o Tejo, quando este surge (agora manso... outrora turbulento!...) no começo fronteiriço da terra portuguesa. Excelente momento para recordarmos Eugénio de Andrade!... Melhor, quando revolvemos a sua poesia eterna! - Varela Pires

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